A investigação filosófica se divide em várias disciplinas que focam em distintos conjuntos de problemas filosóficos. E volta e meia surgem novas disciplinas que lidam com novos problemas filosóficos tal com a filosofia do filme, por exemplo. Entretanto, há umas poucas disciplinas principais, que lidam com tipos de problemas que perpassam as demais disciplinas. Estas são a metafísica, a epistemologia e a filosofia da linguagem. Em todas as demais disciplinas filosóficas haverão problemas desses três tipos: metafísicos, epistemológicos e linguísticos. Mas há outras disciplinas que merecem destaque por causa da importância dos seus tópicos: a ética, a filosofia política, a estética, a filosofia da mente, a filosofia da ciência e a filosofia da religião. Na verdade, muitas dessas disciplinas mantém zonas de interseção em que certos problemas filosóficos pertencem a mais de uma delas. Esse texto se dedica a uma brevíssima apresentação esquemática daquelas três primeiras disciplinas.
Metafísica
O termo "Metafísica" foi cunhado por Andrônico de Rodes (c. 60 a.C.) para dar nome a um conjunto de livros de Aristóteles. Andrônico estava organizando os livros de Aristóteles e acreditou, por causa da afinidade do assunto, que aquele conjunto particular de livros sem título deveria ser lido depois do livro intitulado "Física", no qual Aristóteles apresenta sua teoria física. Por isso ele nomeou esse conjunto de livros "Metafísica", ou seja, depois da (meta) Física. Depois disso, a disciplina que trata do tipo de problemas filosóficos com os quais Aristóteles lidou nesse conjunto de livros passou a se chamar "Metafísica". Portanto, ao contrário do que muitos pensam, a metafísica ganhou esse nome não porque lida exclusivamente com coisas que não são físicas, que estão "para além da física". Mas qual é a natureza dos problemas com os quais Aristóteles lidou na Metafísica?
A metafísica lida com dois problemas principais: (1) O que existe? (2) Qual é a natureza do que existe? Problemas mais específicos do primeiro tipo são, por exemplo: O mundo exterior (à mente) existe? As entidades postuladas pelas teorias científicas, as entidades teóricas, existem? Existem apenas entidades físicas? Mentes existem? Números existem? Existem entidades lógicas? Existem proposições? Existem entidades abstratas? Existem entidades fictícias? Existem mundos possíveis diferentes do atual? Existem propriedades morais? Existem propriedades estéticas? Existem fatos normativos? Além de indivíduos, existem coisas universais, como propriedades? Existem direitos? Existem relações causais? Existe uma primeira causa de tudo? Deus existe? Toda existência é contingente, ou há coisas cuja existência é necessária? Etc.
Alguém poderia dizer: "Mas não é óbvio que existem números? Não dizemos, por exemplo, que existe um número que é maior que 2 e menor que 4? E isso não é verdade?" Sim dizemos coisas desse tipo e isso que dizemos é verdade. Mas aparentemente os números são diferentes dos numerais, que são palavras, pois embora os numerais "3" e "III" sejam distintos, 3 e III são o mesmo número. Mas se números não são os numerais, o que eles são? Que tipo de coisas os numerais nomeiam, se nomeiam alguma coisa? Trata-se de uma entidade mental? Ou trata-se de uma entidade abstrata, ou seja, uma entidade que não é nem espacial, nem temporal? Ou não existem números e os numerais são apenas símbolos manipulados de acordo com certas regras. Essas perguntas são sobre a natureza do número. Geralmente perguntas da forma "O que é X?" são perguntas sobre a natureza de um certo tipo de coisa. O que elas pedem, idealmente, é uma definição desse tipo de coisa e uma definição é, idealmente, um conjunto de condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para algo ser desse tipo de coisas. Esse conjunto de condições é tradicionalmente chamado de essência ou ser, além de natureza. A definição, portanto, é a formulação linguística que apresenta a essência, ou natureza ou ser de uma coisa. Por exemplo: a definição de "circunferência" é: "circunferência é uma figura fechada cujos pontos equidistam de um mesmo ponto. Outro exemplo: "água é uma substância formada de moléculas que contêm dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio". [1]
Uma questão metafísica importante é justamente se todas as coisas ou ao menos algumas possuem essências. Outra questão é se as essências são ou não objetivas, isto é, independentes da nossa existência e de nosso modo de pensá-las e conhecê-las.
Antes de investigar se isso ou aquilo existe, temos que definir aquilo cuja existência está em questão (ou dar uma descrição da coisa que mais se aproxime de uma definição). Até mesmo um ateu, aquele que nega a existência de Deus, deve definir "Deus", para ficar determinado e claro o que ele está negando que exista. Por isso, devemos perguntar o que são cada uma daquelas coisas cuja existência está em questão nos exemplos acima.
Mas uma outra coisa deve ser feita antes de se investigar se isso ou aquilo existe: determinar o que é para uma coisa existir. O que é a existência? Ela é algum tipo de propriedade? Há critérios gerais para se dizer que algo existe? Alguns filósofos sustentaram que a existência não é uma propriedade de indivíduos, mas de conceitos. Dizer que existem cavalos, por exemplo, é dizer que a extensão do conceito de cavalo, o conjuntos de cavalos, tem elementos. Nesse caso, uma proposição sobre a existência de uma pessoa, por exemplo, de alguma forma deve ser reduzida a uma proposição que diz que a extensão de uma certa descrição tem um elemento. Essa descrição seria uma que seria verdadeira de apenas um indivíduo e seu conteúdo seria o conteúdo dos nomes. Mas isso parece implausível. A que descrição desse tipo um nome próprio pode ser reduzido? Saul Kripke tem três argumentos contra essa redução.
Quine sustentou que o critério geral da existência é este: se proposições existenciais verdadeiras não são elimináveis por meio de uma análise lógica, então aquilo que elas afirmam existir existe. Por exemplo: podemos dizer "Existem 12 deuses olímpicos". Mas essa proposição pode ser analisada assim "Os gregos acreditavam na existência de 12 deuses olímpicos". Portanto, mesmo que tomemos a primeira frase como verdadeira, isso não nos compromete com a existência de deuses olímpicos.
Uma outra questão metafísica importante é sobre a possibilidade da existência de certas coisas. Um mundo com leis naturais diferentes das leis naturais do mundo atual é possível? Alguns experimentos mentais usados em filosofia, ou seja, descrições de certas situações que parecem relevantes para a discussão sobre determinados problemas filosóficos, eventualmente geram questões sobre possibilidade. É possível, como sugere Putnam, mesmo que uma cérebro possa ser mantido vivo em uma cuba e ligado a um supercomputador de tal modo que a troca de impulsos elétricos entre o cérebro e o computador resulte em uma experiência qualitativamente indistinguível da experiência que temos do mundos exterior à mente?
Questões metafísicas surgem em outras disciplinas filosóficas, como veremos no caso da epistemologia e da filosofia da linguagem. As questões "O que é o conhecimento?" e "O que é a linguagem?", por exemplo, são questões sobre a essência dessas coisas. A questão "Existe proposições?" é uma questão sobre a existência de certas entidades supostamente ligadas ao funcionamento da linguagem.
Epistemologia
Uma vez determinado o que as coisas são e que tipos de coisas existem ou ao menos podem existir, podemos perguntar se conhecemos essas coisas e como as conhecemos. Essas perguntas pertencem à epistemologia, aquela disciplina filosófica que lida com problemas filosóficos relativos ao conhecimento. Todavia, um dos principais problemas filosóficos da epistemologia é um problema metafísico, sobre a natureza ou essência do conhecimento: o que é conhecimento?
Tradicionalmente o conhecimento é definido como crença verdadeira justificada, também chamada de definição tripartite. Platão, no Teeteto, já definia conhecimento como opinião verdadeira acompanhada de logos, que em grego significa tanto razão quanto linguagem. Mas Edmund Gettier formulou uma crítica a essa definição. Ele formulou dois contra-exemplos, dois casos em que alguém tem uma crença verdadeira e justificada, mas não tem conhecimento. Se esses são mesmo contra-exemplos, então as condições para o conhecimento estabelecidas pela definição tradicional, embora possam ser necessárias, não são suficientes. Esse problema gerou um grande debate sobre a natureza do conhecimento. Os casos de Gettier são mesmo contra-exemplos da definição tradicional? Se são, qual ou quais condições devem ser acrescentadas à definição para tenhamos um conjunto de condições necessárias e suficientes? Ou o conceito de conhecimento é indefinível?
Independentemente do problema de Gettier, se as condições estabelecidas pela definição tradicional de conhecimento são mesmo condições necessárias, então há mais três questões na nossa agenda epistemológica: O que é crença? O que é verdade? E o que é justificação?
Há um relativo consenso que crer é tomar uma proposição como verdadeira. (Uma proposição, para os presentes propósitos, pode ser definida como o conteúdo de uma frase do modo indicativo.) Quando a proposição acreditada é verdadeira, a crença é verdadeira. Podemos nos enganar, ou seja, tomar uma proposição como verdadeira, quando de fato ela é falsa. E podemos crer sem estarmos justificados. Mas devemos estar justificados para crer? Essa é uma obrigação? É claro que se o objetivo é o conhecimento, a resposta é "sim". Mas devemos perseguir esse objetivo sempre? Ou, embora via de regra isso seja o que devemos fazer, há casos que são exceções? Há uma relativamente nova disciplina filosófica que lida com problemas que estão na zona de intersecção entre a epistemologia e a ética: a ética da crença. Sua principal questão é: as obrigações epistêmicas, aquelas que devemos cumprir para obter conhecimento ou crença justificada, são também obrigações morais?
Outras questões importantes sobre a crença: toda crença é consciente? Podemos nos enganar sobre quais crenças temos? A crença é um estado mental ou uma disposição para o comportamento? As crenças são voluntárias? Temos algum controle sobre nossas crenças? O que é uma proposição?
Há uma grande controvérsia sobre como definir a verdade. Mas há uma controvérsia anterior: quais são os portadores de verdade, ou seja, de que coisas dizemos que são verdadeiras? Os principais candidatos são: frases, proposições, enunciados, e pensamentos. Há quem ofereça resistência a reconhecer quaisquer desses candidatos porque defendem uma concepção de verdade como identidade, segundo a qual o que a frase verdadeira "Sócrates é sábio", por exemplo, expressa é o próprio fato que Sócrates é sábio. A verdade não seria sobre os fatos, mas seria os próprios fatos. Proposições verdadeiras seriam o mesmo que os fatos. Dizer que uma frase expressa uma proposição verdadeira seria o mesmo que dizer que ela expressa um fato. Mas essa concepção de verdade enfrenta vários problemas, tal como esse: eu posso lembrar da proposição verdadeira que Sócrates é sábio sem saber que ela é verdadeira e posso não lembrar do fato que Sócrates é sábio. Portanto, a proposição verdadeira que Sócrates é sábio não é o fato que Sócrates é sábio.
A definição de verdade mais aceita e intuitiva, que tem um apelo inicial mais forte, é a definição correspondencista de verdade: a verdade seria uma relação de correspondência entre um portador de verdade, geralmente uma proposição, e um fato, o modo como as coisas estão no mundo. Mas o caráter intuitivo dessa definição vai se desvanecendo quando passamos de proposições empíricas para proposições modais, proposições da matemática, proposições morais e proposições estéticas. O que constitui os fatos modais? O que constitui os fatos matemáticos? O que constitui os fatos morais? O que constitui os fatos estéticos?
Uma outra definição, menos aceita, é a definição pragmatista de verdade, segundo a qual uma proposição é verdadeira quando a crença nela é, de alguma forma, útil. Essa definição é contra-intuitiva porque parece haver verdades inúteis e falsidades úteis.
Uma terceira definição de verdade é a coerentista, segundo a qual uma proposição é verdadeira quando faz parte de uma totalidade abrangente e coerente de proposições. Essa definição é contra-intuitiva porque parece ser possível haver totalidades distintas de proposições igualmente abrangentes e coerentes e incompatíveis entre si.
Por fim há a concepção deflacionista de verdade, segundo a qual a verdade não pode ser definida em termos de condições necessárias e suficientes, tal como almejam os adeptos das três definições anteriores. A verdade seria um conceito cujo conteúdo pode ser totalmente elucidado pelo esquema T: "p" é verdadeira se e somente se p, onde p é uma proposição qualquer. Estamos dispostos a tomar como verdadeiras todas as instâncias desse esquema. O conceito de verdade teria como única função possibilitar construir certas generalizações que, sem ele, não poderíamos ("A primeira coisa que você disser amanhã é verdadeira", por exemplo). Nos demais casos ("É verdade que chove", por exemplo) ele simplesmente torna sintaticamente explícito que a proposição está sendo afirmada.
O correspondencismo às vezes é estimulado por uma certa confusão entre uma verdade lógica, o esquema T, e o esquema da correspondência. Mas enquanto que o esquema T é uma equivalência e, por isso, pode ser investido sem que seu conteúdo seja modificado, o esquema da correspondência, a saber, "p" é verdadeira porque p, não pode ser invertido sem mudança de conteúdo. Dizer que p porque "p" é verdadeira é dizer que o fundamento do fato que p é que a proposição "p" é verdadeira. Mas que sentido faz dizer que chove porque "Chove" é verdadeira?
Há também uma grande controvérsia sobre o que é uma justificação. Há um relativo consenso que a justificação é aquele elemento que tem o papel de eliminar, tanto quanto possível, o fator sorte da nossa aquisição de crenças. Se uma crença é justificada, então não será por pura sorte que ela é verdadeira. Todavia, há divergência sobre como a justificação exerce essa função: ela torna a verdade da proposição acreditada provável, ou ela implica logicamente que a proposição acreditada é verdadeira? É ou não possível que uma crença falsa seja justificada?
Há uma concepção de justificação que está na origem de um famoso problema cético: o trilema de Agripa. Se a justificação consiste em inferir validamente a proposição acreditada de outras proposições justificadas, então toda proposição é justificada inferencialmente. Mas isso gera um regresso das justificações: uma crença é justificada porque é inferida de outras, que são justificadas porque são inferidas de outras, que são justificadas porque são inferidas de outras, e assim por diante. Esse regresso pode ter apenas três estruturas, mas nas três, argumenta-se, nenhuma crença é justificada: ou o regresso é infinito, ou ele é circular, ou ele termina em alguma crença não justificada. Todavia, esse concepção de justificação não necessita ser aceita.
Há uma teoria da justificação, o externismo, segundo a qual é possível que algumas crenças sejam justificadas sem que aquele que possui a crença saiba o que justifica essa crença. Isso é o que parece acontecer, por exemplo, com aquelas pessoas que são capazes de dizer o dia da semana de qualquer data, sem que elas saibam dizer como são capazes disso. Parece haver um mecanismo gerando crenças nessas pessoas e esse mecanismo parece justificar suas crenças, pois as crenças geradas são geralmente verdadeiras. Mas, se é assim, então talvez o regresso das justificações termine em crenças que não são justificadas inferencialmente.
Há uma grande controvérsia epistemológica sobre se há ou não conhecimento a priori, ou seja, sobre se há ou não como justificar crenças verdadeiras de modo independente da experiência sensível. Duas ciências muito importantes parecem fornecer exemplos de crenças verdadeiras justificadas a priori: a lógica e a matemática. A experiência sensível confirma as crenças justificadas nessas ciências. Mas não parece ser a experiência que as justifica. Se alguém contar dois conjuntos de 5 bolas de gude e encontrar 11 como resultado não vamos tomar isso como a refutação de que 5+5=10. Vamos pensar que ou houve um erro na contagem, ou uma bola de gude foi acrescentada desapercebidamente a um dos conjuntos. Mas se a experiência não é fonte de refutações de crenças aritméticas, então tampouco é sua fonte de justificações. Semelhantemente, não parece ser a experiência que justifica a crença de que nenhuma contradição é verdadeira ou que ou que toda proposição ou é verdadeira, ou é falsa, por exemplo. Tampouco examinamos todos os solteiros para constatar que nenhum deles é casado. Mas no que consiste uma justificação a priori? Se a percepção sensível não desempenha nenhum papel na obtenção de conhecimento a priori, como o obtemos? Todavia há filósofos, como Quine, por exemplo, que sustentam que todas as crenças, inclusive matemáticas e lógicas, são, direta ou indiretamente, justificadas pela experiência, na medida em que o que é justificado não são crenças particulares, mas sempre uma totalidade de crenças que constitui nossa melhor teoria sobre o mundo.
Há uma grande e longa controvérsia sobre se a metafísica produz conhecimento e, no caso de produzir, se é um conhecimento a priori ou empírico. Como podemos saber quais tipos de coisas existem? Como podemos conhecer a essência das coisas? Como podemos saber quais mundos são possíveis? Os empiristas radicais, claro, argumentam que não há conhecimento metafísico a priori, sendo a metafísica, no melhor dos casos, um inventário das entidades postuladas pelas nossas melhores teorias empíricas. Os racionalistas, por sua vez, argumentam que a metafísica produz genuíno conhecimento a priori, que pode inclusive contrariar teorias científicas. Outros, como Wittgenstein, argumentam que as essências nada mais são do que critérios linguísticos por meio dos quais usamos nossos predicados e que podem ser alterados conforme a utilidade prática da linguagem. Quando descobriu-se que a maior parte do que se chamava água era formado por moléculas de H2O, fez-se uma mudança conceitual na química, substituindo os antigos critérios para o uso de "água" por novos, mais úteis para os propósitos da ciência.
Os empiristas radicais têm dificuldade para acomodar um tipo de conhecimento que parece ser a priori: o conhecimento inato. A ironia é que as evidências para a existência desse tipo de conhecimento são empíricas. Tudo que aprendemos por meio da experiência parece depender de reagirmos naturalmente a ela de um modo que não aprendemos com a experiência. Chomsky, por exemplo, argumenta que a aquisição da linguagem depende de um conhecimento inato de uma gramática universal. Estudos parecem mostrar que, mesmo antes de aprender uma linguagem, os bebês identificam expressões e comportamentos empáticos e não-empáticos, reagindo com simpatia aos primeiros e com antipatia aos segundos.
Além da percepção sensível, outras fatores desempenham um papel na aquisição de conhecimento empírico, tal como a introspecção, a memória, o testemunho e a autoridade de especialistas, por exemplo. A introspecção é o que nos possibilita o autoconhecimento, ou seja, o conhecimento da mente de si, embora muitas vezes obtenhamos esse tipo de conhecimento através de uma reflexão sobre nosso próprio comportamento, como no caso do autoconhecimento das nossas crenças, desejos e temores. Mas ninguém reflete sobre o comportamento de si para saber que vê vermelho, ou que está ouvindo um barulho, por exemplo. A memória, por sua vez, não desempenha um papel apenas epistêmico. Ela parece desempenhar um papel metafísico crucial na constituição da identidade pessoal ao longo do tempo. Ser a mesma pessoa ao longo do tempo parece implicar a capacidade de unificar e acessar os conteúdos da mente de si por meio da memória. Muitos conhecimentos que temos são obtidos de modo indireto, seja porque uma testemunha confiável relatou um evento, seja porque examinamos os registros de conhecimentos obtidos por especialistas.
Há filósofos que argumentam ou que não temos muito do conhecimento que alegamos ter ou que, pior ainda, não podemos ter muito do conhecimento que alegamos ter. Estes são os céticos, que existem desde a antiguidade grega. Os céticos ou argumentam ou contra a existência de conhecimento, alegando que há tanta razão para crer quanto para não crer no que se alega saber, ou contra a possibilidade do conhecimento. Agripa, referido acima, era um cético da Grécia antiga que justamente, com o seu trilema, procurava mostrar que o conhecimento não é possível. Mas há uma diferença entre o ceticismo dos antigos e o ceticismo moderno, como aquele da Primeira Meditação de Descartes.[2] Os filósofos antigos, em geral, inclusive os céticos, não faziam uma separação entre teoria e prática, mas procuravam viver de acordo com o que pensavam quando filosofavam. Isso colocava um problema para os céticos, pois como eles poderiam levar suas vidas de acordo com a alegação de que não temos conhecimento? Para evitar esse problema, Descartes distinguiu entre vida teórica e vida prática e alegou que podemos duvidar da verdade de uma proposição enquanto estamos fazendo uma investigação teórica e tomá-la como verdadeira na vida prática, para podermos levar a cabo nossos afazeres. Mas essa distinção é controversa.
Os céticos em geral não apenas duvidam, mas procuram justificar suas dúvidas por meio de argumentos, para que suas dúvidas sejam racionais. Os argumentos céticos principais formulados por Descartes são dois, um baseado na hipótese cética de que estamos sonhando quando alegamos conhecer o mundo por meio da percepção sensível e a hipótese cética de fomos criados de tal forma por um gênio maligno que tudo no que acreditamos é falso e não podemos descobrir a falsidade de nossas crenças para nos corrigirmos. O primeiro argumento foi destinado a colocar em dúvida as crenças sobre o mundo exterior e o segundo, as crenças matemáticas. Hilary Putnam formulou um argumento cético que se destinava a pôr em dúvida nosso conhecimento do mundo exterior, tal como o argumento do sonho de Descartes. Mas sua hipótese cética era a de que somos cérebros em uma cuba, tal como formulado acima, quando falei sobre questões acerca de possibilidades. Mas, tal como Descartes, Putnam não formulou esse argumento para defender o ceticismo, mas para mostrar as virtudes de sua teoria do significado, que ele alega poder ser usada para refutar o ceticismo. Descartes, por sua vez, ao refutar os seus próprios argumentos céticos, almejava encontrar a certeza absoluta e dar novos fundamentos para as ciências.[3]
Hume iniciou uma tradição cética em relação ao que parece ser uma das principais ferramentas para a obtenção de conhecimento empírico ou crenças baseadas na experiência: a indução. A indução é um tipo de raciocínio em que as premissas descrevem observações particulares de que certos tipos de coisas possuem certa propriedade e a conclusão é uma generalização sobre todas as coisas desse tipo. Por exemplo: cada observação de um corvo preto gera uma premissa da indução e a conclusão seria que todos os corvos são pretos. Essa conclusão, se verdadeira, é verdadeira não apenas dos casos observados, mas dos casos ainda não observados. A indução é dedutivamente inválida: é sempre possível que suas premissas sejam verdadeira e sua conclusão seja falsa. Hume argumentou que esse tipo de raciocínio está baseado no princípio geral segundo a qual a natureza, no futuro, se comportará do mesmo modo regular que fez no passado. Mas esse princípio, segundo ele, não pode ser justificado. Ou ele é justificado a priori, ou por meio da experiência. Se fosse justificado a priori, com base apenas no conhecimento das "relações entre as idéias", então aquele princípio seria necessário e isso tornaria a indução dedutivamente válida. Se fosse justificado pela experiência, ele seria justificado pela indução. Mas isso geraria uma petição de princípio, ou seja, um raciocínio que de alguma forma contém entre as premissas a sua conclusão. A indução seria baseada em um princípio que seria justificado pela indução.
Questões epistêmicas surgem em outras disciplinas filosóficas. Por exemplo: "Há conhecimento metafísico?", "Há conhecimento semântico?", "Há conhecimento moral?". "Há conhecimento estético?", "Há conhecimento religioso?", "Como conhecemos entidades abstratas, dado que não mantemos nenhuma relação causal com elas?", etc.
Filosofia da linguagem
Acima falamos sobre definições, sobre o significado de certas expressões que figuram em certos problemas filosóficos, sobre proposições. Geralmente questões filosóficas sobre esse tipo de coisas, e outros referente à linguagem usada para formular os problemas filosóficos, fazem parte de uma antesala de muitas disciplinas filosóficas. Mas há uma disciplina que lida com os problema filosóficos mais gerais sobre a linguagem, a filosofia da linguagem.
Alguns dos principais problemas da filosofia da linguagem são metafísicos. Mas outros são epistêmicos. O principal problema é justamente a questão sobre o que é a linguagem. Ela consiste em um sistema de sinais, sem dúvida. Mas o que é um sinal? Quantos sinais há em um quadro negro quando escrevemos duas vezes a apalavra "casa" nele? Um escrito duas vezes, ou dois?[4] Sinais são coisas que compreendemos/entendemos. Mas o que é compreender/entender um sinal? É ter um certo estado mental? É ter uma certa disposição? O que compreendemos é o conteúdo/significado do sinal. Mas o que é o conteúdo/significado? Uma entidade mental? Algo que temos em mente? Uma entidade abstrata que apreendemos com a mente? O modo como usamos o sinal? Quando usamos um sinal com um certo conteúdo/significado, então certos usos desse sinais são corretos e outros são incorretos, ou seja, há critérios de correção para seu uso. Isso significa que o significado é essencialmente normativo? Usar uma palavra com certo significado implica comprometer-se com certas obrigações subjetivas? Devemos usar o sinal de um determinado modo quando o usamos com um determinado significado? Que o uso de um determinado sinal tenha critérios de correção significa que ele é usado de acordo com uma regra. Mas o que é uma regra? É uma entidade mental? É uma entidade abstrata? Ou é simplesmente uma disposição para o uso de um sinal?
Um dos problemas mais específicos mas muito importante da filosofia da linguagem foi aludido acima: os termos gerais são todos definíveis em termos de condições necessárias e suficientes? Termo gerais são aquelas expressões que podem ser predicadas verdadeira ou falsamente das coisas, tal como os termos "conhecimento", "verdade", "tigre", "planeta", "guerra", etc. Eles possuem, portanto, uma generalidade: há uma totalidade, ou conjunto, ou classe de coisas que são conhecimentos, verdades, tigres, planetas, guerras, etc. Essa totalidade/conjunto/classe pode não conter nenhum elemento, ou um elemento, ou mais elementos, dependendo do termo geral. Até onde sabemos, a totalidade dos unicórnios, por exemplo, é zero. A totalidade dos números naturais, por outro lado, é infinita. A questão, então, é: há condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que algo pertença à totalidade de qualquer termo geral? Há quem defenda, como Frege, que sim, ao menos para os termos gerais que não sejam primitivos. Termos primitivos são aqueles que estão no final da cadeia de definições em termos de condições necessárias e suficientes. Esquematicamente: o termo T é definido pelos termos T1 e T2, T1 é definido por T3 e T4, T2 é definido por T5 e T6, e assim por diante, até que chegamos aos termos Tn... Tm, os termos primitivos que são indefiníveis. Quem defende essa posição pode ser chamado de essencialista, na medida em que defende que, com exceção dos termos primitivos, todos os termos gerais expressam uma essência. Mas há quem defenda, como Wittgenstein, que muitos termos não-primitivos não são definíveis nos termos de condições necessárias e suficientes, ou ao menos que nossa competência no uso desses termos não está baseada no conhecimento de nenhuma essência.
Um potencial exemplo desse tipo de termo são os termos vagos. Um termo T é vago quando embora haja exemplos paradigmáticos do que é T e do que não é T, há casos que são indeterminados. Por exemplo: temos casos paradigmáticos do que é do que não é uma pessoa calva, ou do que é e do que não é um monte de arroz; mas com quantos fios de cabelo na cabeça alguém passa a ser calva e com quantos grãos um conjunto de grãos de arroz passa a ser um monte de arroz? A fronteira entre ser e não ser calvo, ou entre ser ou não ser um monte, parece difusa. Por isso, termos vagos não parecem ser passíveis de uma definição em termos de condições necessárias e suficientes. Mas os termos vagos parecem colocar um problema para o princípio da bivalência, segundo o qual toda proposição é ou verdadeira ou falsa. Se João é um caso fronteiriço entre calvice e não-calvice, qual é o valor de verdade de "João é calvo"? Essa frase não expressa uma proposição? Ou o princípio de bivalência é falso porque há proposições que não são nem verdadeiras, nem falsas?
Um outro tipo de termo que parece conter uma indeterminação semelhante, porém distinta, são os termos para semelhanças de família. Parece haver condições necessárias para que algo seja um jogo, por exemplo, tal como ser uma atividade, mas parece que não há um conjunto de condições necessárias e suficientes para algo ser um jogo. Identificamos algo como jogo talvez por identificar que ele satisfaz certas condições necessárias para algo ser um jogo e, ademais, por causa da sua semelhança com exemplos paradigmáticos do que chamamos jogos, isto é, exemplos sobre os quais não há dúvida de que sejam jogos.
Um outro conjunto de problemas importante da filosofia da linguagem diz respeito aos nomes próprios. Parece que a função de um nome próprio, como de qualquer termo singular, é se referir a um indivíduo, para que, assim, possamos dizer alguma coisa sobre ele, mesmo que falsa. Todavia, há alguns casos que desafiam essa intuição. Por exemplo: usamos o nome "Jesus" como um nome próprio de uma pessoa que supostamente nasceu a 2023 anos atrás. Mas fora a Bíblia, as evidências históricas de que ele tenha existido são muito escassas, tanto que alguns duvidam que ele tenha existido. Se esse for o caso, então o nome "Jesus" não possui referência, ou como se diz em filosofia da linguagem, é vazio. A consequência disso parece ser que o que dizemos sobre Jesus não é nem verdadeiro, nem falso. Para que fosse falso que Jesus nasceu em Belém, por exemplo,, Jesus deveria ter existido e ter nascido em outra cidade. Por outro lado, nomes de personagens de ficção tampouco parecem ter referência. Mas se digo que Sherlock Holmes é um cantor de pagode, parece que digo algo falso. Como isso pode ser falso, se Sherlock Holmes não existe? Esse é o velho problema que surgiu na filosofia antiga sobre como é possível falar sobre o que não existe ou sobre o nada.
Um outro problema filosófico sobre os nomes próprios é justamente o que determina a relação de referência nos casos em que o nome claramente tem uma? O que faz com que um nome se refira a um determina indivíduo? Alguns sustentaram que isso ocorre porque o conteúdo/significado de cada nome é uma certa descrição que se aplica verdadeiramente a apenas um indivíduo. O conteúdo/significado de "Aristóteles", por exemplo, seria o mesmo de "O autor da Metafísica". Mas Kripke formulou objeções a essa teoria. Aristóteles ainda seria o mesmo Aristóteles mesmo que nunca tivesse escrito a Metafísica, por exemplo. Além disso, sabemos que Aristóteles é o autor da Metafísica de maneira empírica, e não a priori por conhecermos o conteúdo/significado do nome "Aristóteles". Aliás, como poderíamos ter descoberto que Aristóteles não é o autor da metafísica se "Aristóteles" fosse sinônimo de "O autor da Metafísica"? Kripke defendeu que a referência é fixada por um batismo e é transmitida por uma cadeia histórica ao longo do tempo, ou perdida, quando essa cadeia é interrompida de alguma forma. Graças a essa cadeia, que incluiu a modificação do nome grego quando foi introduzido no português, hoje podemos nos referir a Aristóteles e falar sobre ele.
Há um clássico problema filosófico normalmente apresentado como um problema metafísico, mas que pode ser apresentado, com algumas vantagens, como um problema de filosofia da linguagem. Trata-se do problema dos universais. Como vimos, termos gerais são aqueles que podem ser predicados verdadeira ou falsamente das coisas. Isso parece significar que as coisas das quais predicamos verdadeiramente um termo geral têm algo em comum a muitos, algo universal (por oposição a particular ou individual). Mas elas têm mesmo algo em comum? O que é isso? Normalmente dizemos que essa coisa em comum é uma propriedade. Por exemplo: se as frases "João é professor" e "Maria é professora" são ambas verdadeiras, se predicamos verdadeiramente "professor" de João e de Maria, então parece que João e Maria têm uma propriedade em comum, ser professor, que é expressa ou referida pelo termo geral. Essa propriedade existe mesmo? O que ela é? Algo que constitui João e Maria (realismo moderado)? Algo independente dos indivíduos João e Maria mas que mantêm uma relação com eles (realismo extremo)? Um conceito na mente de quem predica (conceitualismo)? Ou não há uma tal propriedade mas apenas o termo geral que usamos de certa forma (nominalismo)?
Essa é a maneira metafísica de se formular o problema. Mas creio que a maneira linguística é melhor porque é mais neutra em relação às suas possíveis respostas, pois não parte da aceitação aparentemente intuitiva da existência de propriedades, entendidas de alguma forma realista. Na sua formulação linguística, o problema seria: termos gerais têm alguma referência? Se sim, o que é sua referência? Algo que constitui os indivíduos? Algo independente dos indivíduos? Ou algo na mente? Se eles não possuem referência, como explicar o uso de termos gerais? Seja qual for a formulação em que o problema seja apresentado, uma pressuposição parece ser assumida: que termos gerais têm um uso uniforme, que têm de ser encontrada uma resposta a essas perguntas que seja verdadeira de todos os termos gerais. Todavia, há uma teoria sobre o termo geral "verdade", como vimos, que afirma que esse termo não se refere ou expressa qualquer propriedade substancial, ou seja, algo comum a tudo que é verdadeiro, mas é um mero recurso lógico-sintático que nos permite fazer certas generalizações. Não há uma propriedade comum que todas as proposições possuem que seria a propriedade da verdade. Portanto, aquela suposição do problema não parece ser verdadeira desse caso, mesmo que seja verdadeira de outros.
Por falar em verdade, embora tenha sido apresentado na seção sobre epistemologia, o problema sobre se o termo "verdade" pode ser definido e, se sim, sobre qual é a sua definição correta é também um problema da filosofia da linguagem. Ele foi apresentado como um problema da epistemologia porque o conceito de conhecimento é definido tradicionalmente por meio do conceito de verdade. Mas podemos dizer de frases que são verdadeiras ou falsas. Determinar o que é para uma frase ser verdadeira é uma questão da filosofia da linguagem.
Há muitas questões da filosofia da linguagem importantes para disciplinas filosóficas específicas. Já vimos que a definição de "conhecimento" é central para a epistemologia, por exemplo. Mas há outras: enunciados éticos e estéticos são verdadeiros ou falsos? Predicados éticos e estéticos se referem a ou expressam algum tipo de propriedade? Enunciados normativos, sobre deveres, proibições e permissões, podem ser reduzidos a enunciados não normativos sobre fatos naturais?
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[1] Aristóteles concebia a investigação metafísica como uma investigação sobre o ser na qual se procura determinar o que é ser um número, por exemplo, o que é ser físico, o que é ser biológico, o que é ser mental, etc. Mas ele também formulou uma questão mais geral que essas. Ele concebeu uma questão não sobre o que é para uma coisas ser desse ou daquele tipo de coisas, mas o que é para uma coisa simplesmente ser: o que é o ser como ser? Uma dificuldade para essa questão é a ambiguidade do verbo "ser". Platão, no seu diálogo Sofista, foi um dos primeiros a notar essa ambiguidade. Frases como "João é professor" e "João é Joca" o verbo "ser" não parece significar a mesma coisa. Com a primeira frase estamos dizendo que uma pessoa, João, tem uma certa propriedade, ser professor. Com a segunda não estamos dizendo que uma pessoa possui a propriedade de ser Joca, mas estamos dizendo que a pessoa João e a pessoa Joca são a mesma pessoa. A primeira frase é uma frase predicativa singular, em que predicamos algo de um indivíduo. A segunda frase é uma frase de identidade, em que dizemos que uma coisa é idêntica a si mesma. Mas o verbo "ser" também tem mais um significado no português. Na bíblia há afirmações como "Deus é", que significa o mesmo que "Deus existe". Esse é um uso arcaico do verbo "ser", mas pertence ao português. Tudo isso torna difícil, para dizer o mínimo, determinar o que é para uma coisa, em geral, ser.
[2] Embora Descartes ele próprio não seja um cético, ele se serviu do método da dúvida cética para encontrar a certeza absoluta. Sua estratégia era a seguinte: se duvidarmos de tudo que pode ser (racionalmente) duvidado, então, se houver uma certeza absoluta, ela será o resíduo dessa dúvida máxima.
[3] Para uma exposição mais detalhada desses argumentos céticos, ver essa postagem.
[4] Uma resposta aqui seria: ambos, dois e um. Há dois sinais concretos que são instâncias ou exemplos concretos do mesmo sinal tipo. Quando perguntamos quantas letras o alfabeto possui, por exemplo, não estamos perguntado nada sobre sinais concretos usados em diferentes contextos, mas sobre sinais tipo, que são uma espécie de entidade abstrata, que não estão em lugar nenhum e não são destruídos mesmo que todos os sinais concretos sejam destruídos. A palavra "casa", por exemplo, é uma das milhares palavras tipo do português. E nessa última frase eu usei um exemplo concreto dessa palavra para falar sobre essa palavra tipo.