Essa postagem se destina a ser material didático introdutório usado nas minhas aulas do Curso de Graduação em Filosofia da UFPR. Ela inaugura uma série que vai ter a etiqueta "Material Didático". Comentários e críticas são bem-vindos.
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Uma inferência, ou argumento, grosso modo, é um conjunto de afirmações das quais uma delas, a conclusão, é extraída das demais, as premissas. Por exemplo:
(1) João acabou de sair de sua casa para vir para cá.(2) João leva no mínimo 30 minutos para vir da sua casa até aqui.(3) Aqui, em 10 minutos, vamos ter uma reunião onde João é aguardado.(4) Portanto, João chegará atrasado à reunião.
Na inferência acima, (1)-(3) são as premissas e (4) é a conclusão. A expressão "portanto" é um indicador de conclusão, assim como "logo", "consequentemente", "disso se segue que", etc. Um indicador de conclusão é sempre colocado imediatamente antes da conclusão de uma inferência. A mesma inferência acima pode ser apresentada na ordem inversa, onde a conclusão é enunciada antes da premissas:
(4) João chegará atrasado à reunião, pois (1) João acabou de sair de sua casa para vir para cá, (2) João leva no mínimo 30 minutos para vir da sua casa até aqui e (3) aqui, em 10 minutos, vamos ter uma reunião onde João é aguardado.
A expressão "pois", assim como "porque", "dado que", etc., é um indicador de premissas. Um indicador de premissas é sempre colocado imediatamente antes de uma premissas ou conjunto de premissas. Embora apresentada de modo diferente nos dois casos, trata-se da mesmíssima inferência.
Uma inferência serve principalmente para justificar uma afirmação, serve como um meio racional de convencimento da verdade de uma afirmação. As premissas servem de razão para acreditar na verdade da conclusão. Uma vez afirmado que João chegará atrasado à reunião, alguém poderia perguntar: por que? Com essa pergunta, essa pessoas pede razões para acreditar que João chagará atrasado à reunião, ou seja, para considerar verdadeira a afirmação que ele chagará atrasado à reunião.
Mas nem todas as inferências são boas o suficiente para justificar a sua conclusão. Uma inferência pode não ser boa o suficiente para esse propósito por no mínimo duas razões principais. Considere a seguinte inferência:
(5) Todo brasileiro é gaúcho.(6) Todo portoalegrense é brasileiro.(7) Portanto, todo portoalegrense é gaúcho.
Por que essa inferência não serve para justificar a afirmação que todo portoalegrense é gaúcho? Porque embora saibamos que (7) é verdadeira, (7) não é verdadeira porque (5) e (6) são verdadeiras, pela boa razão que, como sabemos, (5) é falsa. Uma afirmação falsa não pode ser razão para que outra seja verdadeira. Essa é uma das razões pelas quais uma inferência pode não ser boa o suficiente para justificar uma afirmação: conter ao menos uma premissa falsa. Para ser boa o suficiente para justificar sua conclusão, ela deve conter apenas premissas verdadeiras. Mas isso, no caso de uma inferência dedutiva, não é suficiente. (Nem toda inferência é dedutiva. veja o final dessa postagem.)
Agora considere a seguinte inferência:
(8) Se chove, então o chão está molhado.(9) O chão está molhado.(10) Portanto, chove.
Suponhamos que (8) e (9), as premissas, sejam ambas verdadeiras. Essa inferência, com premissas verdadeiras, seria suficiente pra justificar a sua conclusão? Parece que não, pois, sem cometer nenhuma contradição, uma pessoa poderia aceitar as premissas, considerá-las verdadeiras, e rejeitar a conclusão, considerá-la falsa. Ela não está obrigada a aceitar a conclusão, uma vez aceitas as premissas. Essa inferência pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa, mesmo que a conclusão seja de fato verdadeira. (O chão poderia estar molhado por inúmeras outras causas.) Uma inferência dedutiva que seja suficiente para justificar sua conclusão, além de ter premissas verdadeiras, deve ser tal que seja impossível que suas premissas sejam verdadeiras e sua conclusão seja falsa. Uma inferência dedutiva desse tipo chama-se dedutivamente válida. A seguinte inferência é dedutivamente válida (suponha que "eu", em (12) e (13), refere-se a mim, Alexandre):
(11) Todo aquele que vive em uma casa de vidro é Napoleão.(12) Eu vivo em uma casa de vidro.(13) Portanto, eu sou Napoleão.
Sabemos que todas as afirmações dessa inferência são falsas. Mas, necessariamente, se as premissas, (11)-(12), fossem verdadeiras, a conclusão, (13), também seria verdadeira. Seria impossível que as suas premissas fossem verdadeiras e sua conclusão fosse falsa. Por isso, mesmo tendo apenas afirmações falsas, a inferência (11)-(13) é válida. Se eu pronunciasse as afirmações dessa inferência com sinceridade, provavelmente é porque estaria com algum problema mental. Mas esse problema não seria minha incapacidade de inferir corretamente. Ele seria a minha incapacidade anormal de distinguir o que é verdadeiro do que é falso.
Quando uma inferência dedutiva é válida, dizemos que as suas premissas implicam logicamente sua conclusão, ou que a conclusão se segue logicamente das premissas.
Quando uma inferência dedutiva parece válida, mas não é, dizemos que se trata de uma falácia.
Nem toda as inferências são dedutivas. E algumas inferências, embora sejam dedutivamente inválidas, nem por isso constituem erros de raciocínio ou são inúteis. Tratam-se das inferências indutivas, tal como a seguinte:
(14) Fulano sempre chegou atrasado para as reuniões.(15) Portanto, ele chegará atrasado para a próxima reunião.
Nessa inferência, inferimos algo sobre um caso particular desconhecido de um certo tipo a partir do que sabemos sobre um conjunto de casos conhecidos do mesmo tipo. Essa é uma previsão indutiva. Ela é uma inferência dedutivamente inválida, porque é possível que sua premissa seja verdadeira e sua conclusão falsa. A seguinte inferência também é indutiva:
(16) Todos os corvos observados são pretos.(17) Portanto, todos os corvos são pretos.
Nesse caso, inferimos uma afirmação sobre a totalidade de determinado tipo de caso (conhecidos ou não) de uma afirmação sobre a totalidade os casos conhecidos desse mesmo tipo. Essa é uma generalização indutiva. A pergunta que as inferências indutivas põem é a seguinte: se é sempre possível que as premissas de uma inferência indutiva sejam verdadeiras e sua conclusão falsa, ou seja, se uma inferência indutiva, por melhor que seja, não transmite a verdade das suas premissas para sua conclusão, tal como a inferência dedutiva o faz, então o que elas transmitem? O que faz com que uma inferência indutiva seja boa e outras ruins? Existe algo como a validade indutiva?
Leituras
Logical Consequence (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Relevance Logic (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Logical Form (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
The Problem of Induction (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Fallacies (The Internet Encyclopedia of Philosophy)
Guia das Falácias (Stephen Downes, Crítica)
Lógica e Filosofia (Desidério Murcho, Crítica)
Argumentos indutivos são irredutíveis a argumentos dedutivos (Eros Carvalho, Filosofemas)
Argumentos indutivos são irredutíveis a argumentos dedutivos (Eros Carvalho, Filosofemas)
Tem um conto que eu nunca me canso de ler, sobre falácias. Se chama "O amor é uma falácia". Conhece?
ResponderExcluirSegue abaixo:
http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/amorfalacia.htm
Alexandre,
ResponderExcluirBem legal teu material didático. Fiquei curioso sobre o que vais escrever sobre indução.
Excelente, Alexandre! Só tenho um reparo e uma sugestão.
ResponderExcluirDizes: "Uma inferência, ou argumento, grosso modo, é um conjunto de afirmações das quais uma delas, a conclusão, é extraída das demais, as premissas".
É estranho dizer que "é extraída" no caso de argumentos inválidos; pelo que a tua definição se aplica apenas a argumentos válidos, rigorosamente falando. E não é isso que queres, com certeza. Por isso, deves antes escrever "se pretende extrair". Este é um pequeno erro que é muito comum e vejo-o em muitos livros de lógica. Não estás sozinho, portanto... E se o teu post não fosse tão bom, não me dava ao trabalho de falar disto. Não vais dizer a alguém que está imundo que tem uma nódoa quase invisível na camisa...
E agora a sugestão: algumas pessoas sofrem de uma coisa esquisita que não lhes permite ler textos sobre fundo preto sem ficar com vertigens. Eu sou uma dessas pessoas. Assim, sugiro ou que se possa ler a totalidade dos teus posts nos feeds (o que podes configurar) ou que mudes o blog para fundo branco.
Sim, Felipe, conheço o conto. Muito engraçado.
ResponderExcluirFlávio: vou escrever sobre o ceticismo cartesiano, pois é um dos problemas que resolvi abordar em introdução à filosofia. Não vou abordar o problema da indução. Ao menos não nesse semestre.
ResponderExcluirDesidério: Obrigado! Não te preocupes, pois críticas são sempre bem-vindas. Usei a expressão "extrair" na postagem para me referir ao ato de inferir, seja corretamente, seja incorretamente. Mas acho que deveria ter usado "concluir". Não há dúvidas que podemos concluir de forma errada.
ResponderExcluirQuanto à cor do blog, vou tentar configurar os feeds, pois sofro do problema inverso: blogs brancos me cegam, pois tenho fotofobia...
Texto esclarecedor. Foi muito útil na resolução de exercícios da disciplina Lógica 1 sobre validade da argumentação. Obrigado prof. Alexandre.
ResponderExcluirPor nada!
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