Saul Kripke |
Nomes próprios, tal como "Terra", são termos singulares, ou seja, expressões linguísticas que se referem a apenas um objeto. Descrições definidas são expressões da forma "o tal e tal", tal como "o terceiro planeta mais próximo do Sol". Frege e Russell discordam sobre correta análise lógica das frases contendo descrições definidas como sujeito. Frege acreditava que elas eram frases predicativas singulares da forma Fa e que, portanto, as descrições definidas eram nomes complexos, que são termos singulares. Russell argumentava que tais frases eram quantificações disfarçadas que não continham nenhum nome.
Em Naming and Necessity, Saul Kripke formula uma série de argumentos contra aquilo que ele denomina teoria descritivista dos nomes próprios, a saber, a teoria dos nomes próprios segundo a qual nomes próprios são abreviações disfarçadas de descrições definidas no idioleto de um falante[1]. A descrição definida "o terceiro planeta mais próximo do Sol", por exemplo, poderia ser abreviada pelo nome "Terra" no idioleto de alguém. Kripke atribuiu essa teoria a Frege, Russell e, hesitantemente, a Wittgenstein. Wittgenstein certamente não defendia a teoria descritivista clássica dos nomes próprios de Frege e Russel, segunda a qual há uma única descrição definida associada a cada nome próprio. Nas Investigações Filosóficas ele diz:
Se alguém diz: "Moisés não existe", isso pode significar várias coisas. Pode significar que os israelitas não tinham um único líder quando eles abandonaram o Egito - ou: o seu líder não se chamava Moisés - ou: não pode ter havido ninguém que realizou tudo que a Bíblia atribui a Moisés - ... Mas quando eu faço um enunciado sobre Moisés, - estou sempre disposto a substituir "Moisés" por algumas daquelas descrições? ... Eu decidi o quanto deve ser provado ser falso para desistir da minha proposição como falsa? O nome "Moisés" Tem um uso inequívoco para mim em todos os casos possíveis? [Investigações Filosóficas, §79]Nessa passagem, Wittgenstein parece sustentar o que se costuma denominar teoria do feixe de descrições, segundo a qual o significado e, portanto, a referência de um nome próprio são determinados por um feixe de descrições, e não por uma única descrição.
A teoria descritivista dos nomes próprios parece explicar bem como fixamos a referência dos nomes próprios: associamos descrições definidas a eles e, então, os nomes próprios passam a ter a referência da descrição definida. Uma outra motivação para a teoria descritivista dos nomes próprios é que ela é capaz de oferecer uma solução para o enigma de Frege. O enunciado "Hesperus é Phosphorus", diferentemente do enunciado "Hesperus é Hesperus", é informativa porque associamos diferentes descrições aos nomes "Hesperus" e "Phosphorus" e é necessário uma investigação para saber que ambas as descrições são satisfeitas pelo mesmo objeto. A teoria descritivista dos nomes próprios parece também solucionar o problema dos enunciados existenciais negativos, tais como "Sherlock Holmes não existe". Como tais enunciados podem ter sentido e serem verdadeiros? Se "Sherlock Holmes" tivesse que se referir a algo para que tivesse significado e para que o enunciado, por sua vez, tivesse sentido e valor de verdade, então essa frase não poderia ser verdadeira. Mas "Sherlock Holmes" abrevia uma descrição definida, "o detetive que mora na Baker Street, em Londres, e tinha um assistente chamado Watson", então o que o enunciado existencial negativo diz é que essa descrição não é satisfeita por nada.
Dado que nomes são termos singulares, a descrição definida que um nome abrevia deveria ser tal que ela seja satisfeita por apenas um objeto. Russell, como vimos, não acreditava que descrições definidas fossem nomes, mas ele incluía na sua análise das descrições definidas uma cláusula de unicidade. Ele analisava o artigo definido como uma generalização contendo uma identidade: existe um x tal que x é F e, para todo y, se y é F, então y=x (onde F seria a descrição unicamente satisfeita). Se a descrição abreviada pelo nome "Terra" é, no idioleto de um falante, "o terceiro planeta mais próximo do Sol", então o falante desse idioleto deve saber a priori que o referente desse nome é o terceiro planeta mais próximo do Sol, pois isso redundaria em saber que o terceiro planeta mais próximo do Sol é o terceiro planeta mais próximo do Sol. Ademais, enunciados da forma "a é o tal e tal", tal como "A Terra é o terceiro planeta mais próximo do Sol", de acordo com o descritivismo, são necessários, pois se "Terra" abrevia "o terceiro planeta mais próximo do Sol", então a forma analisada do enunciado "A Terra é o terceiro planeta mais próximo do Sol" é "O terceiro planeta mais próximo do Sol é o terceiro planeta mais próximo do Sol", que é necessário.
O primeiro argumento de Kripke contra o descritivismo é o argumento modal, que ataca a última consequência mencionada do descritivismo: que enunciados da forma "a é tal e tal" são necessários. Parece ser um fato perfeitamente contingente que a Terra seja o terceiro planeta mais próximo do Sol. Se é assim, deveríamos poder descrever um mundo possível em que a Terra é o segundo planeta mais próximo do Sol, por exemplo. Mas, se "Terra" é uma abreviação de "o terceiro planeta mais próximo do Sol", então dizer que a Terra poderia não ser o terceiro planeta mais próximo do Sol seria o mesmo que dizer que a Terra poderia não ser a Terra. Os nomes, segundo Kripke, são designadores rígidos, ou seja, eles se referem à mesma coisa em todos os mundos possíveis. Quando dizemos que a Terra poderia não ser o terceiro planeta mais próximo do Sol, estamos descrevendo um mundo possível usando "Terra" para se referir ao mesmo objeto a que nos referimos quando usamos esse nome para dizer que a Terra, no mundo atual, é o terceiro planeta mais próximo do Sol. Descrições, por outro lado, são designadores não-rígidos. Há mais de um mundo possível em que a descrição "o terceiro planeta mais próximo do sol" não é satisfeita por nada. Estes seriam mundos em que o sistema solar tem dois planetas ou menos. Há outros mundos possíveis em que essa descrição é satisfeita, mas não pela Terra.
O segundo argumento de Kripke contra o descritivismo é o argumento epistêmico. Ele ataca a consequência epistêmica do descritivismo: que enunciados da forma "a é tal e tal" são cognoscíveis a priori. Que a Terra seja o terceiro planeta mais próximo do Sol é algo que foi descoberto empiricamente. Se o enunciado "A Terra é o terceiro planeta mais próximo do Sol" fosse cognoscível a priori, então teríamos que saber a priori que as situações possíveis em que a Terra não é o terceiro planeta mais próximo do sol não são o caso. Teríamos que saber a priori, por exemplo, que não há um planeta entre a Terra e Vênus. Sabemos que não há, mas não de modo a priori. Não sabemos a priori nem mesmo que a Terra se chama "Terra".
O terceiro argumento contra o descritivismo é o argumento semântico. Suponha que seja descoberto um planeta entre as órbitas da Terra e de Vênus que seja batizado com o nome "Vulcano". Se isso fosse o caso, todas as vezes que se falou sobre a Terra se falou, na verdade, sobre Vulcano? Isso deveria ser o caso, se "Terra" fosse a abreviação de "o terceiro planeta mais próximo do Sol", pois Vulcano, não a Terra, seria o terceiro planeta mais próximo do Sol. Mas isso não é o caso. Se fosse, sequer poderíamos enunciar a descoberta de que Vulcano, não a Terra, é o terceiro planeta mais próximo do Sol, pois isso equivaleria a dizer que Vulcano é a Terra, o que é um juízo de identidade falso.
Esse último argumento aponta para uma distinção importante na filosofia da linguagem de Kripke: uma coisa é fixar a referência de um termo, outra coisa é determinar seu significado. As descrições definidas são usadas para fixar a referência de nomes e termos singulares em geral, mas elas não determinam o seu significado, ou seja, o nome não passa a ser sinônimo da descrição. O caso contrafactual de Vulcano descrito acima mostra que a fixação da referência de um nome pode ser feita inclusive por meio de uma descrição falsa. Se aponto para uma pessoa que parece estar usando um casaco de couro e digo "A pessoa de casaco de couro é João", então fixo a referência de "João", mesmo que João esteja de fato usando um casaco de material sintético.
Kripke usa essa distinção para criticar o que Wittgenstein diz sobre o metro padrão nas Investigações Filosóficas. Wittgenstein afirma que não faz sentido dizer do metro padrão nem que ele tem um metro, nem que ele não tem um metro. Kripke pensa que Wittgenstein diz isso porque ele acredita que somente se pode falar com sentido de fatos contingentes e não é contingente que o metro padrão tenha um metro, dado que comprimento do metro padrão é o padrão para um metro.[2] Segundo Kripke, é perfeitamente contingente que a barra que chamamos de metro padrão tenha um metro. A referência de "metro", para Kripke, não é a barra que chamamos de metro padrão, e sim uma certa entidade abstrata, um comprimento. A barra serviu para fixar a referência de "metro" porque ela tinha o comprimento determinado que agora chamamos "metro". Mas o significado de "metro" não é o mesmo de "o comprimento desta barra". "Metro" é um designador rígido que se refere à mesma entidade abstrata em todos os mundos possíveis. "O comprimento desta barra" não é um designador rígido, pois em mundos possíveis onde o comprimento da barra é diferente de um metro, essa descrição é satisfeita por uma entidade abstrata, um comprimento, diferente daquela que chamamos "metro".
A teoria descritivista dos nomes próprios, de acordo com Kripke, teria nascido de uma confusão entre a fixação da referência e a determinação do significado. Nós de fato fixamos a referência de um nome próprio por meio de descrições. Mas isso não determina o significado desses nomes.
Mas se as descrições não determinam o significado de um nome, o que determina? Segundo uma interpretação largamente aceita de John Stuart Mill, Mill acreditava que o significado dos nomes próprios é constituído pelo objeto ao qual os nomes se referem. Essa teoria do significado dos nomes próprios é conhecida, por isso, como millianismo. Kripke chama a atenção para o fato de que essa interpretação de Mill é provavelmente errada e que ele próprio não defende o millianismo. A razão para rejeitar o millianismo é que ele não consegue solucionar o enigma de Frege, ou seja, não consegue explicar a diferença cognitiva entre enunciados da forma "a=a" e "a=b", pois, se o significado do nome fosse constituído pelo objeto ao qual o nome se refere, então aqueles dois enunciados, se verdadeiros, expressariam a mesma proposição e, portanto, não se difeririam cognitivamente. Kripke não apresenta uma teoria do significado dos nomes próprios e, por isso, é incapaz de dar uma solução não-descritivista para o enigma de Frege.
Como uma teoria da referência, a teoria kripkeana dos nomes próprios costuma ser chamada de teoria da referência direta dos nomes próprios. O descritivismo seria uma teoria da referência indireta. Frege, por exemplo, defende que todas as expressões que são partes lógicas de um enunciado, não apenas os nomes, têm sentido e referência. O sentido seria aquilo que viemos chamando de significado do nome até aqui. O sentido de um nome próprio é o modo de apresentação do objeto referido, que pode ser expresso por descrições definidas, e esse objeto é a sua referência. O nome só se refere a um objeto porque expressa um sentido e esse sentido, por sua vez, se refere a um objeto. Por isso a relação de referência de um nome se estabelece indiretamente, via sentido. Segundo Kripke, embora a referência dos nomes possa ser fixada por meio de descrições definidas, essas descrições não determinam o significado do nome e, portanto, a referência do nome não é determinada pelo seu significado. Um nome adquire referência por meio de um batismo inicial de um objeto, que pode ocorrer diante do objeto, usando-se demonstrativos, ou por meio de descrições definidas. Kripke chama a atenção para o fato de que esse último modo de batismo foi o que ocorreu no caso de Netuno: ele foi batizado por meio da descrição "o corpo celeste que perturba a órbita de Urano", antes mesmo que a existência de Netuno fosse diretamente constatada. Após o batismo inicial, o nome é transmitido por meio de uma cadeira histórico-causal que tende a preservar a referência original do nome, porque os falantes que aprendem o nome têm a intenção de usá-lo com a mesma referência que o nome tem para aqueles que o transmitiram. Por causa do seu apelo a essa cadeia causal de transmissão da referência original do nome, essa teoria é também conhecida como teoria causal da referência.
O fato de conceber os nomes como designadores rígidos permite a Kripke explicar por que os enunciados de identidade não-triviais são necessários. Se os nomes "a" e "b" referem-se ao mesmo objeto, então referem-se ao mesmo objeto em todos os mundos possíveis e, portanto, o enunciado "a=b" é verdadeiro em todos os mundos possíveis, ou seja, é necessário. Mas dado que alguns enunciados dessa forma são conhecidos por meio da experiência, tais enunciados, Kripke sustenta, contra Kant, são enunciados necessários a posteriori. Sua teoria também o possibilita sustentar, também contra Kant, que há enunciados contingentes a priori. Um dos exemplos de enunciados contingentes a priori é justamente a afirmação contingente de que a barra que usamos tem um metro de comprimento, quando essa afirmação é feita por aquele que batizou o comprimento dessa barra com o nome "metro". Depois do batismo, de fixar a referência de "metro", essa pessoa não precisa fazer uma investigação empírica para saber que aquela barra tem um metro de comprimento. O ato de fixar a referência é suficiente para que ele saiba que "Esta barra tem um metro de comprimento" é verdade.
Entretanto, como a teoria referência dos nomes próprios de Kripke pode ser usada para solucionar o problema dos enunciados existenciais negativos? Como essa teoria poderia explicar que enunciados como
(1) Sherlock Holmes não existesão intuitivamente verdadeiros? Parece que, se esse enunciado é verdadeiro, então o nome "Sherlock Holmes" é vazio, ou seja, não possui referência. Mas é justamente isso que torna difícil explicar como o enunciado é verdadeiro. Do que estamos dizendo que não existe? Kripke sustenta que em enunciados como (1), o nome "Sherlock Holmes" não é vazio, mas refere-se a uma entidade abstrata, um personagem de ficção. Mas isso implicaria que (1) é falso, o que fere nossa intuição. Perece que deve haver um sentido em que (1) é verdadeira, porque estamos negando que Sherlock Holmes exista como Dilma Rousseff, por exemplo, existe.
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[1] Idioleto é a linguagem de um indivíduo.
[2] Creio que essa interpretação de Kripke está errada. Além disso, creio que Kripke está errado sobre a questão filosófica a qual ele dá uma resposta diferente da resposta de Wittgenstein. Mas aqui não é o lugar para debater esse assunto.
Leituras
Sam Cumming, Names
Marga Reimer, Reference
Saul Kripke, Naming and Necessity
Saul Kripke, Philosophical Troubles
Não acredito na teoria da referência direta e estou distanta há tempos dessa discussão fantástica sobre os nomes próprios. Mas, penso que, em relação aos enunciados existenciais negativos, Kripke diria que eles são falsos justamente por que não há ato batismal primevo. Desse modo, a sentença "Sherlock Holmes não existe" significa o mesmo que "Ninguém foi batizado de "Sherlock Holmes"".
ResponderExcluirVc está dizendo que o enunciado "Sherlock Holmes não existe" é sistematicamente ambíguo? Em um sentido ele é falso porque o personagem existe e em outro ele é verdadeiro porque estamos dizendo que o personagem não é uma pessoa?
ExcluirNão, não penso que existenciais negativos, como o que expressaste, sejam sistematicamente ambíguos. O que pretendi foi dizer que a teoria do Kripke parece ter um recurso para explicar a verdade (e não a "falsidade", como escrevi não intencionalmente, por conta da correria) da sentença "Sherlock Holmes não existe". O recurso parece consistir no apelo à inexistência de ato batismal de algo/alguém com o nome em jogo. Não te parece que a teoria dele teria tal recurso?
ExcluirMas isso implica uma ambiguidade sistemática, sim, pois Kripke acredita que enunciados como "Sherlock Holmes não are médico", que não é nenhuma das frases dos livros de Doyle e é dito por nós, o nome "Sherlock Holmes"se refere a uma entidade abstrata, um personagem de ficção. Portanto, Sherlock Holmes, essa entidade, existe e o enunciado "Sherlock Holmes não existe" é falso. Se vc diz que há um outro sentido em que "Sherlock Holmes não existe" é verdadeiro, então esse enunciado é sistematicamente ambíguo, não?
ExcluirPois é... Não me sinto seguro em pensar que a teoria do Kripke se comprometeria com a tese de que sentenças como "Sherlock Holmes não existe" seriam ambíguas sistematicamente ao assumir que "Sherlock Holmes" designa uma entidade abstrata e assumir, como sugeri como resposta, que a sentença "Sherlock Holmes não existe" fosse parafraseada em "Nenhum ser humano foi batizado até agora de "Sherlock Holmes"". Mas, isso pode identificar apenas desinformação minha sobre detalhes da teoria. Parece-me que, ao falar de "entidades abstratas", ele fala de entidades que são vinculadas à atividade humana. E se não estou enganado, ele assume que sentenças existenciais seriam ambíguas mesmo. Não sei se ele precisaria fazer isso, caso a paráfrase que sugeri acima saia naturalmente de sua proposta dele. Nota que a proposição expressa pela sentença parafrásica decorre mesmo do sentido que exploramos ao presumirmos que a sentença "Sherlock Holmes não existe" é verdadeira. Claro, isso faria apenas transferir a dificuldade para situações de ambiguidade. Afinal, caso alguém já tenha sido batizado de "Sherlock Holmes", então a sentença "Sherlock Holmes não existe" é falsa.
ResponderExcluirUma dificuldade adicional para tua interpretação é o fato que, para Kripke, mesmo que existisse uma pessoa com todas as propriedades do personagem Sherlock Holmes, essa pessoa, necessariamente, não seria esse personagem. Um personagem de ficção, necessariamente, não é um item do mundo concreto.
Excluire referente ao enunciado " Sherlock Holmes é um detetive", qual sua opinião em relação a teoria de kripke?
ExcluirE qual a conclusão sobre um enunciado do tipo: Deus é bom? Em que se difere de Sherlock Holmes é bom detetive?
ResponderExcluirEsse enunciado é como "Jesus é bom". O nome "Jesus" não é o nome de um personagem de ficção, mas pode se revelar vazio.
ExcluirQueria algo introdutorio ira emtender filosofia da linguagem oq eu deveria ler?
ResponderExcluirVocê poderia começar com "Introdução à Filosofia da Linguagem" de Carlo Penco. Se procurar na internet, encontra o PDF.
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