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quinta-feira, 16 de julho de 2015

O problema de Gettier

Edmund Gettier
Edmund Gettier ficou famoso na filosofia por sua monumental obra constituída de um artigo de três páginas.[1] Nesse artigo ele procura apresentar contra-exemplos à milenar definição tradicional de conhecimento como crença verdadeira justificada. Seu objetivo é mostrar que as condições para o conhecimento elencadas na definição tradicional não são suficientes para o conhecimento, mesmo que sejam necessárias. Ou seja, ele procura exibir casos que satisfazem a definição tradicional, mas, não obstante, não são conhecimentos. Ele apresenta dois contra-exemplos. Entretanto, antes, ele chama atenção para dois princípios sobre os quais a análise desses casos como contra-exemplos se baseia.

O primeiro princípio pode ser chamado de princípio falsidade justificada. Mesmo que a justificação seja uma condição necessária para o conhecimento, sozinha ela não é uma condição suficiente, de tal forma que alguém pode estar justificado em crer em uma proposição falsa. Isso chama atenção para o fato de que apenas conjuntamente as três condições da definição tradicional são suficientes, de acordo com a definição tradicional de conhecimento. Isoladamente, nenhuma delas é suficiente. Mais importante: elas não possuem relações de dependência. Se uma crença for justificada, mas falsa, não é conhecimento. Se for verdadeira mais injustificada, não é conhecimento. Se alguém estiver justificado a acreditar numa proposição que é verdadeira, mas não acreditar nela, então ele não sabe que ela é verdadeira.

O segundo princípio é o princípio do fechamento da justificação. Gettier o formula assim: "[P]ara toda a proposição P, se S está justificado em acreditar que P e P implica Q e S deduz Q de P e aceita Q como resultado desta dedução, então S está justificado em acreditar que Q". Em outras palavras: uma pessoa está sempre justificada a creditar numa proposição que ela sabe ser implicada por outra proposição que ela está justificada em acreditar.


O primeiro contra-exemplo (ligeiramente modificado)

O primeiro contra-exemplo é baseado no fato de que podemos ter justificação para acreditar em uma generalização existencial cuja base é falsa. Suponhamos que Paulo esteja justificado a acreditar que João vencerá um concurso para professor no qual Paulo também concorre (ele ouviu acidentalmente dos membros da banca que João será aprovado em primeiro lugar). Suponhamos também que Paulo esteja justificado a acreditar João tem dez moedas no bolso. Disso Paulo pode inferir validamente que aquele que vai vencer o concurso tem dez moedas no bolso. Ele realiza uma generalização existencial da seguinte forma:
Fa
Ga
Logo, Ex(Fx&Gx)
De acordo com o princípio do fechamento da justificação, Paulo está justificado em crer na conclusão geral, pois ele a infere validamente de premissas nas quais ele está justificado em acreditar. Mas suponhamos que quem vencerá o concurso seja Paulo e que, sem que ele saiba, ele tem dez moedas no bolso. Isso significa que uma das premissas da inferência de Paulo é falsa, embora justificada, o que está de acordo com o princípio da falsidade justificada. Como podemos ver, Paulo acredita na conclusão, ela é verdadeira e Paulo está justificado em acreditar nela. Todavia, parece claro que Paulo não sabe que a conclusão é verdadeira, pois o que a torna verdadeira é o fato de que ele, Paulo, vencerá o concurso, e de que ele tem dez moedas no bolso, e ele não acredita nem que vencerá o concurso, nem que tem dez moedas no bolso.


O segundo contra-exemplo (ligeiramente modificado)

O segundo contra-exemplo está baseado na possibilidade de se acreditar na conclusão da introdução da disjunção, mesmo quando sua premissa é falsa. Suponha que João está justificado em acreditar que Paulo possui um carro e não faz idéia do paradeiro de Paulo. João então infere dessa proposição as seguintes disjunções:
Ou Paulo possui um carro, ou Paulo está em São Paulo.
Ou Paulo possui um carro, ou Paulo está em Curitiba.
Ou Paulo possui um carro, ou Paulo está em Salvador.
Cada uma das conclusões acima é obtida por meio de uma inferência da seguinte forma válida:
P
Logo, P ou Q
onde Q é uma proposição qualquer. Segundo o princípio do fechamento da justificação, João está justificado em acreditar em cada uma dessas conclusões. Mas suponhamos que a premissa dessas inferências seja falsa, mesmo que justificada. O carro de Paulo é alugado. Todavia, ocorre que Paulo está em Curitiba, mesmo que João não saiba. Portanto a segunda conclusão que João infere de sua premissa falsa, porém justificada, é verdadeira. Mas ela não é verdadeira porque Paulo possui um carro. Ela é verdadeira porque Paulo está em Curitiba. Logo, João acredita que essa conclusão é verdadeira, ela é verdadeira e João está justificado em crer que ela é verdadeira. Mas João não sabe que ela é verdadeira, pois ele ignora o fato que a torna verdadeira: o fato de Paulo estar em Curitiba.

Há muitas tentativas de resolver ou dissolver o problema formulado por Gettier. As tentativas de resolver o problema procuram ou modificar uma das condições para o conhecimento ou introduzir uma quarta condição. Vou chamar atenção apenas para uma tentativa de dissolver o problema, por causa do seu caráter peculiar: aquela que se baseia na idéia de sorte epistêmica. Normalmente a justificação é pensada como aquilo que elimina o fator sorte na aquisição de crenças verdadeiras. Mas há quem acredite que ela não o faz totalmente, de tal forma que podemos obter conhecimento devido à sorte. O que os exemplos de Gettier mostrariam seria, não que conhecimento não seja crença verdadeira justificada, mas que essas condições às vezes estão satisfeitas por sorte. Mesmo que esses casos sejam estatiticamente minoritários, ou até raros, o que Gettier teria mostrado é que eles não são impossíveis.

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[1] E. Gettier. É a crença verdadeira justificada conhecimento? (Crítica na Rede)


Leituras

Jonathan Jenkins Ichikawa, The analysis of knowledge (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Stephen Hetherington, Gettier problems (Internet Encyclopedia of Philosophy)

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