Leia a primeira parte desse texto
aqui.
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Mas que tipo de coisas seriam esses exemplos? Dado que o que queremos são exemplos paradigmáticos e que esses são aqueles em que não há controvérsia sobre se são casos de filosofia, o tipo de coisas no qual devemos nos concentrar é aquele sobre o qual não há controvérsia que encontramos na filosofia. Ou seja, devemos iniciar nossa busca pelo que é mais trivial acerca da filosofia. Em primeiro lugar, dada a distinção entre fazer e descrever o que se faz, está claro que estamos procurando exemplos de uma certa
atividade, a atividade de filosofar. Mas o que há de incontroverso sobre essa atividade por meio do qual possamos começar nossa busca por exemplos? Bem, parece incontroverso que, ao filosofar, os filósofos formulam certas
perguntas e procuram respondê-las do melhor modo possível. É o que viemos fazendo até aqui... Essas perguntas são formulações de
problemas filosóficos.[2] Agora temos ao menos parte da descrição do tipo de coisas que são os exemplos paradigmáticos que procuramos: problemas filosóficos. Quais poderiam ser os melhores paradigmas de problemas filosóficos?
Geralmente os manuais e introduções à filosofia apresentam como exemplos paradigmáticos de problemas filosóficos perguntas que têm a forma do título dessas postagem: "O que é ____?", que, como vimos, em geral pede uma definição, entendida em termos de condições necessárias e suficientes para algo ser o que é. Isso está ligado à idéia popular que a filosofia tem como objeto de estudo a
essência ou
natureza das coisas. Mas ela não estuda a essência de qualquer coisa. A filosofia não estuda a essência das cadeiras, por exemplo. Quais são, pois, os exemplos paradigmáticos de problemas filosóficos dessa forma? Geralmente três desses problemas são apresentados como os principais, sendo os demais de algum modo subordinados a eles. Esses três problemas são:
O que é a verdade?
O que é o bem?
O que e o belo?
Podemos aumentar essa lista:
O que é o conhecimento?
O que é a justiça?
O que é a virtude?
O que é arte?
O que é Deus?
O que é mente?
O que é ciência?
E assim por diante. Esses parecem ser exemplos inequívocos, paradigmáticos, de problemas filosóficos. A fim de tentar definir "filosofia", podemos agora examinar o que esses exemplos têm em comum, fora a forma. O que os conceitos de verdade, bem, beleza, conhecimento, justiça, virtude, etc., têm em comum? Por que os conceitos de cadeira e de ameba, por exemplo, não estão nessa lista? Podemos ver o que esses conceitos têm em comum por meio de um
experimento mental.[3]
Tentemos imaginar como seria a vida de um povo inteiro que não tivesse o conceito de verdade, por exemplo. Se as pessoas desse povo que não tivessem esse conceito, então elas nunca avaliariam suas afirmações como verdadeiras ou falsas. Elas jamais pensariam que o que dizem é verdadeiro, ou que é falso. Para pensar isso, elas deveriam ter o conceito de verdade. É difícil, para dizer o mínimo, imaginar a vida de um tal povo. Essas pessoas poderiam ter linguagem descritiva? Como elas aprenderiam essa linguagem? Como seria seu ensino? Seja o que for que imaginemos, se conseguirmos imaginar alguma coisa, trata-se de uma forma de vida radicalmente diferente da nossa. E quando digo isso, não estou pensando no contraste entre a forma de vida americana e a forma de vida islâmica, por exemplo. Essas duas formas de vida são muito semelhantes entre si, se comparadas com a forma de vida de um povo que não possuísse o conceito de verdade. Isso mostra que a nossa forma de vida é
enformada pela posse desse conceito. Ela é como é porque, entre outras coisas, possuímos o conceito de verdade, porque avaliamos nossas afirmações como verdadeiras ou falsas. Nesse sentido, podemos dizer que o conceito de verdade é um
conceito fundamental: é um conceito tal que não podemos imaginar alguém que não o tenha e não seja radicalmente diferente de nós, que o possuímos. O mesmo parece valer, em graus diferentes, para os demais conceito que aparecem na lista de problemas filosóficos acima. Todos eles, em maior ou menor grau, são conceitos fundamentais, no sentido recém explicado. Tentemos imaginar um povo que não possua conceitos estéticos, por exemplo (belo, feio, sublime, grotesco, harmonioso, etc.), e que, portanto, não avalie nada do ponto de vista estético. Todos esses conceitos enformam nosso modo de pensar sobre o mundo. É difícil imaginar como seria pensar qualquer coisa sobre o mundo sem usar esses conceitos.[4]
Mas se o filósofo, ao perguntar o que é a verdade, por exemplo, quer uma definição de "verdade", por que ele não se contenta com a definição de "verdade" que ele encontra em um bom
dicionário? O que ele teria a dizer a alguém que lhe oferecesse uma definição de dicionário como resposta? Supostamente, definições de dicionários são corretas, pois são feitas por lingüistas que conhecem muito bem o idioma. Sendo assim, um filósofo não pode rejeitar essas definições sob a alegação de que não são corretas, salvo se tiver alguma boa evidência em contrário. Qual é, pois, a diferença entre um filósofo e um lingüista? Uma tentação muito comum nesse ponto é dizer que as definições dos dicionários não são
profundas. Mas geralmente não é nada claro o que se quer dizer com "profunda". Por que as definições do dicionário não são profundas? Quais são as condições para que uma definição seja profunda?
Alguém poderia dizer que, enquanto o lingüista está interessado na linguagem, na
palavra "verdade", por exemplo, o filósofo está interessado na
própria verdade, na
verdade em si mesma. Mas se esse interesse na verdade é um interesse na essência da verdade e se a definição de "verdade" do dicionário apresenta essa essência, então essa não é uma boa explicação da diferença entre um lingüista e um filósofo.
Para saber que diferença é essa, temos que investigar a
motivação do filósofo para fazer suas perguntas. Por que o filósofo quer saber, por exemplo, o que a verdade é? Um lingüista quer encontrar definições porque ele é um cientista da linguagem e, como tal, está interessado em quaisquer conhecimentos sobre a linguagem. O filósofo não está interessado em quaisquer conhecimentos sobre a linguagem. Ele está interessado em conhecimentos lingüísticos apenas na medida em que eles são úteis para lidar com um tipo de problema com o qual o lingüista não lida. Por isso, esses problemas com os quais o lingüista não lida são os verdadeiros problemas filosóficos. Tais problemas são os
paradoxos formulados com os conceitos que aprecem nas perguntas filosóficas da forma "O que é ____?".
Um paradoxo, de modo geral pode ser pensado como um problema que mostra um certo conflito (real ou aparente) entre nossas
intuições. Uma intuição, no sentido em que dizemos que uma afirmação é intuitiva ou contra-intuitiva, é uma afirmação que à maioria de nós parece verdadeira à primeira vista, que a maioria de nós está inclinada a considerar verdadeira à primeira vista. Algumas afirmações intuitivas são banais e particulares. Outras são importantes e gerais. Por exemplo: o princípio de não-contradição, que diz que não é possível que uma afirmação e sua negação ("Chove" e "Não-chove", p.ex.) sejam ambas verdadeiras, é uma intuição muito importante e geral. Um paradoxo é um problema que mostra que, ao menos aparentemente, algumas dessas intuições gerais e importantes estão em conflito.
Um exemplo paradigmático de paradoxo é um dos assim chamados
paradoxos de Zenão. A apresentação informal desse paradoxo começa com uma definição de movimento. Um objeto
a se move se, e somente se, em instantes de tempo diferentes
a estiver em pontos diferentes do espaço. Suponhamos que
a se mova do ponto A ao ponto B. Antes de chegar ao ponto B,
a deve passar pelo ponto C, que eqüidista de de A e B. Mas antes de passar por C,
a terá que passar pelo ponto D, que eqüidista de A e C. E antes de passar por D,
a terá de passar pelo ponto E, que eqüidista de A e D. E assim por diante,
ao infinito. Isso sugere que entre A e B e, portanto, entre quaisquer dois pontos, há infinitos pontos e, por isso, infinitos intervalos de espaço. Portanto, se
a se move de A a B, ou de um ponto qualquer do espaço para outro, então
a percorre infinitos intervalos de espaço. Agora, para qualquer ação, se ela é composta de um número infinito de etapas, então trata-se de uma ação impossível, que não pode ser realizada. Se pudesse ser realizada, então isso significa que todas as etapas teriam sido realizadas e, portanto, não seriam infinitas. Mas ir de um ponto a outro do espaço percorrendo infinitos intervalos de espaço é justamente uma ação composta de infinitas etapas. Portanto, se percorrer infinitos intervalos de espaço é necessário para que um objeto qualquer se mova, ou seja, para que vá de um ponto do espaço a outro, então nenhum objeto pode se mover. Logo, o movimento é impossível.
Esse paradoxo é uma inferência, um raciocínio, que parece ter as seguintes três características: ela parece ter
premissas verdadeiras, parece ser uma
inferência válida e parece ter uma
conclusão falsa. Mas isso não é possível. Uma inferência válida é justamente uma que
não pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa. Portanto, se essa inferência é realmente válida, então ou ao menos uma de suas premissas, embora pareça muito intuitiva, é falsa, ou a conclusão, embora pareça muito contra-intuitiva, é verdadeira. Se nenhuma dessas opções é o caso, então só pode ser porque essa inferência, embora pareça válida, é inválida. Seja qual for a opção correta, o paradoxo mostra que
temos que abandonar alguma intuição. E na investigação sobre qual opção é correta, o filósofo pergunta: O que é o movimento? O que é um ponto? O que é a divisibilidade infinita do espaço? O que é o infinito? Ele faz perguntas dessa forma a fim de lidar com esse paradoxo. Um lingüista não estuda a linguagem com o objetivo de lidar com paradoxos.
Os verdadeiros problemas filosóficos são os paradoxos.[5] Eles formam a parte submersa de um iceberg cuja ponta é formada pelas perguntas da forma "O que é ____?". Eles são o que motivam o filósofo a fazer perguntas dessa forma. É claro que um físico, por exemplo, pode lidar com paradoxos também, em meio às suas investigações e teorizações físicas. Se assim for, ele estará às voltas com problemas filosóficos em meio à sua atividade como físico. Os paradoxos mostram que não temos uma clareza
reflexiva sobre o conteúdo de conceitos fundamentais e, portanto, de intuições fundamentais que são expressas por meio desses conceitos. A importância de se lidar com esses problemas é, pois, diretamente proporcional à importância de se ter clareza sobre tais conceitos e intuições.
A filosofia não é determinada apenas pelos problemas com os quais os filósofos lidam. Ela também é determinada pelo modo como eles lidam com esses problemas. E é nesse ponto em que as diferenças mais profundas entre os filósofos se fazem mais sentidas. Alguns defendem, por exemplo, que os problemas filosóficos devem ser resolvidos por meio de uma teoria
empírica sobre aquilo que é representado pelos conceitos que aparecem na formulação desses problemas. Outros acreditam que tais problemas devem ser tratados de forma
a priori, isto é, independentemente da experiência, seja porque eles devem ser
dissolvidos por meio de análise lógica da linguagem, seja porque eles devem ser
resolvidos por meio de conhecimento
a prori.[6] E muitas outras diferenças metodológicas poderiam ser listadas. Mas, mesmo nesse ponto, devemos ter em mente a distinção entre fazer algo e descrever o que se faz. Se um filósofo diz que a filosofia é empírica, por exemplo, então o que devemos fazer é examinar como o seu filosofar de fato depende de conhecimento empírico. Obviamente, ele
dizer que seu filosofar é uma atividade empírica não a torna empírica.
Mutatis mutandis, o mesmo vale para o filósofo que diz que seu filosofar é uma atividade
a priori.
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[2] Em geral um problema é uma pergunta cuja resposta não sabemos e, por alguma razão, precisamos saber. Por isso, nem toda pergunta cuja resposta não sabemos é um problema. Se não precisamos saber a resposta a uma pergunta, ela não é um problema.
[3] Um experimento mental, ou experimento de pensamento, não é um experimento psicológico, mas sim a descrição de uma situação, real ou fictícia, que serve para enfatizar certos aspectos dos nossos conceitos. Descrita a situação, nos perguntamos como deveríamos usar um determinado conceito nessa situação, ou se poderíamos usá-lo, ou se o teríamos, etc. Conforme a resposta, aspectos desse conceito se tornarão mais evidentes.
[4] Mesmo um naturalista como Quine, que não reconhece uma diferença categorial entre a filosofia e as demais ciências, pois vê ambas como contínuas, quando perguntado sobre a natureza da filosofia, não diz algo muito diferente do que foi dito acima. Leia
aqui uma transcrição de um trecho de uma entrevista em que Quine diz o que acredita ser a filosofia.
[5] Russell dizia que os
puzzles (literalmente, quebra-cabeça) têm uma função na filosofia da lógica análoga à função que a experiência tem na física: servem para testar as teorias filosóficas, assim como a experiência serve para testar as teorias científicas ("Sobre a Denotação"). Entre os
puzzles estão os paradoxos.
[6] Um problema é dissolvido quando algum tipo de erro suposto pela sua formulação é exibido. Esse erro tanto pode ser uma crença falsa quanto uma confusão conceitual. Uma vez descoberto o erro, a pergunta não é respondida, o problema não é resolvido, mas simplesmente abandonado. Ele deixa de ser um problema.
Leituras
Analysis (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Concepts (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Metaphysics (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Convention (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Theories of Meaning (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
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Agradeço ao amigo Prof. Eros de Carvalho por comentários à primeira versão desse texto.
Imagem: gravura de
M.C. Escher