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quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Critérios, exemplos e teorias



Certa vez eu discutia com um amigo sobre o amor e ele me disse que o amor que sentia pela esposa e que ela sentia por ele em alguns momentos era tão, tão intenso e qualitativamente idêntico que ele passou a acreditar que ambos, quando sentiam o amor, estavam percebendo uma e a mesma coisa, o amor deles. Essa é, na minha opinião, uma maneira bela de se descrever um amor recíproco e intenso. Mas eu estraguei um pouco o barato do meu amigo questionando sua tese.

Sua tese era: em alguns casos pelo menos, duas pessoas não apenas experimentam um sentimento qualitativamente idêntico, como o amor, mas suas experiências qualitativamente idênticas se devem ao fato de serem uma espécie de percepção de uma coisa numericamente idêntica a si mesma, o amor de ambas. É como duas pessoas que olham um objeto físico, digamos, um abajur, do mesmo ângulo: ambas terão experiências visuais qualitativamente idênticas e essa identidade qualitativa é parcialmente explicada pelo fato de serem percepções de um mesmo objeto nas mesmas condições.

Minha questão para meu amigo era a seguinte: você é capaz de fornecer critérios claros para decidir entre um caso em que se trata do sentimento de um e mesmo amor e um caso em que se trata de sentimentos qualitativamente idêntico de amores distintos (se é que se trata de algo análogo à percepção)?

A palavra "critério" é ambígua. Em um certo sentido amplo, dizer que, em um caso, trata-se de sentimentos qualitativamente idênticos de um e mesmo amor e, no outro, trata-se de sentimentos qualitativamente idênticos de amores distintos é dar "critérios" para se "distinguir" um caso de outro, em um sentido muito amplo de "critério" e "distinguir". Mas esse critério abstrato não ajuda em nada na prática, se não temos critérios operacionais, concretos, para decidir sobre casos particulares. A situação aqui é análoga a de uma lei que afirma ser crime caluniar uma pessoa sem fornecer nenhum critério operacional, concreto, para decidir quando uma pessoa foi caluniada e quando ela pensa que foi caluniada sem ter sido. Essa lei, sem tais critérios concretos, é inútil. Aquela distinção, sem tais critérios operacionais, concretos, é inútil, para se dizer o mínimo.

Eu diria que, nesse caso, essa distinção é inútil não apenas para sabermos se se trata de um caso ou de outro, mas para pensarmos os casos a partir dessa "distinção". A falta de tais critérios operacionais nos impede não apenas de encontrarmos casos reais ou imaginários que exemplifiquem essa distinção, mas mostram que tal distinção é, como se costuma dizer, uma distinção sem diferença nenhuma. Ou seja, a falta de tais critérios mostra que se trata de uma pseudo-distinção; é apenas um jogo de palavras, uma tentativa mal sucedida de aplicar a distinção entre identidade qualitativa e identidade numérica na experiência dos sentimentos. O que ocorre aqui é o que Wittgenstein descreve nesta passagem de Cultura e Valor:
Filósofos frequentemente se comportam como crianças pequenas que rabiscam algumas marcas em uma folha de papel ao acaso e então perguntam ao adulto "O que é isso?" -- Aconteceu desse modo: o adulto desenhou figuras para a criança várias vezes e disse: isso é um homem, isso é uma casa, etc. Então a criança faz algumas marcas também e pergunta: o que é isso, então?
Meu amigo, na época, não soube fornecer os critérios que pedi e chegou à conclusão de que ele estava tentando definir uma pseudo-distinção, embora hoje eu ache que ele poderia ter fornecido tais critérios, bastando, para isso, manter-se fiel à analogia com a percepção.

Seja como for, essa história serve para ilustrar um ponto mais geral que acredito ser de extrema importância em muitas discussões filosóficas: o papel dos exemplos na defesa da inteligibilidade, plausibilidade e verdade de uma tese ou teoria. A falta de critérios operacionais para a aplicação de um conceito nos impede de encontrar exemplos, concretos ou imaginários, casos aos quais o conceito se aplique ou se aplicaria verdadeiramente.

E esse ponto está relacionado a outro: o uso dos experimentos mentais na investigação filosófica. Um experimento mental é a descrição de uma situação que, à primeira vista, parece possível, a fim de se extrair conclusões sobre a inteligibilidade, plausibilidade e valor de verdade de uma tese ou teoria. A situação descrita, portanto, contém um exemplo ou contra-exemplo de uma tese ou teoria no que respeita ao ao menos uma daquelas características: inteligibilidade, plausibilidade e valor de verdade. Mas se essa tese ou teoria contém um conceito para o qual não se pode especificar critérios operacionais para sua aplicação, então não conseguiremos construir experimentos mentais em que haja exemplos ou contra-exemplos dessa tese. Isso foi o que aconteceu, creio, com a tese do meu amigo sobre o amor.

Mas pode acontecer também o seguinte: uma tese filosófica pode implicar que não existem (nem nunca existiram) exemplos de coisas de um certo tipo. Isso é o que acontece justamente com teses existenciais negativas, tal como "Não existe verdade". Se o conceito dessas coisas não é definido estipulativamente, então com base no que sua definição é obtida? Certamente não é com base no exame dos exemplos de coisas desse tipo.

Vou ilustrar o ponto em questão com uma discussão sobre a tese central do ceticismo global. Segundo o ceticismo global, de modo geral, não existe conhecimento (na sua versão mais fraca) ou não pode existir conhecimento (na versão mais forte).[1] É claro que, para negar a existência ou possibilidade de uma coisa, deve-se já ter (minimamente) claro o que essa coisa é. Um ateu, por exemplo, tem de ter claro o que é Deus para que sua negação da existência de Deus seja compreensível. Mas como o cético esclarece o conceito de conhecimento, dado que, se sua principal tese estiver correta, ele não conhece um exemplo sequer de conhecimento? Ele não pode basear seu esclarecimento no modo como usamos a palavra "conhecimento" ou "saber", pois, segundo ele, toda vez que dizemos algo da forma "s sabe que p", estamos dizendo algo falso. Sendo assim, ou nunca satisfazemos os critérios para aplicar a palavra "conhecimento", ou os satisfazemos, mas esses critérios são insuficientes para o conhecimento. Seja qual for o caso, com base em que o cético pode dizer quais são esses critérios? Com base em que ele sabe que tais critérios, no segundo caso, são insuficientes para o conhecimento? Não é examinando os casos em que a palavra é aplicada. Entretanto, esse não é um termo definido estipulativamente,  ou seja, por meio de uma definição por meio da qual não se pretende de expressar um conteúdo já previamente determinado. A definição ou esclarecimento do conteúdo de "conhecimento" deve ser o resultado de uma análise desse nosso conceito que já é de posse comum a todos nós. Na ausência de exemplos de conhecimento, parece que o que resta a um cético apelar para explicar como ele obteve clareza sobre o que o conhecimento é ou dizer que o conceito de conhecimento é inato e acessível por algum tipo de introspecção, ou dizer que esse conceito é uma entidade abstrata e acessível por meio de algum tipo de intuição intelectual. Mas isso, me parece claro, seria explicar o obscuro por meio do pouco claro.[2] A tese existencial negativa do cético o deixa com a tarefa de esclarecer o conteúdo de um conceito definível não estipulativamente sem apelar para o conhecimento de exemplos aos quais o conceito se aplica verdadeiramente. E essa parece ser uma tarefa inexequível.

A negligência com relação a exemplos ou a critérios operacionais dos nossos conceitos parece ser, como procuro mostrar nessa reflexão, uma fonte de problemas filosóficos.

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[1] Teses existenciais negativas em filosofia são geralmente entendidas da seguinte forma: embora o verbo "existe", nessas teses, esteja no presente, a tese está afirmando que nem existe, nem nunca existiu o tipo de coisas em questão. É o que queremos dizer quando dizemos, por exemplo, que unicórnios não existem. Quando queremos relatar a extinção de uma espécie de animais, por exemplo, não dizemos que tais animais simplesmente não existem, mas que eles não existem mais, deixando subentendido que eles já existiram. O conceito de tais animais foi definido com base no conhecimento de exemplos de tais animais, conhecimento esse constituído pelas evidências históricas sobre tais exemplos.

[2] O problema não é tanto um conceito ser inato ou ser uma entidade abstrata, mas ser acessível por uma introspecção ou intuição intelectual,  independentemente do seu uso e, portanto, da competência do seu usuário.



quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Conceitos, subjetividade e arte

Pichação em Pompéia, que na época era
chamada de grafite. Atualmente, no português,
usamos esse par de palavras para
marcar uma diferença.

Conceitos são elementos dos nossos pensamentos. Por meio deles pensamos sobre o mundo. Um conceito, como disse Peter Strawson, serve para classificar as coisas. Por exemplo: por meio do conceito de jogo, traçamos uma fronteira entre as coisas que são jogos e as coisas que não são jogos. Tal fronteira, na maioria dos conceitos, não é precisa, o que significa dizer que os conceitos, na sua maioria, são vagos. Há casos fronteiriços para os quais é indeterminado de que lado da fronteira estão. A natureza dessa indeterminação, se epistêmica, metafísica ou linguística, é matéria de uma grande controvérsia com a qual não vou me ocupar aqui. O que me importa enfatizar é que fronteira vaga é fronteira. Todavia, para que haja fronteira, deve haver casos não fronteiriços. Se é indeterminado para todas as coisas se elas são ou não são jogos, por exemplo, então a palavra "jogo" não expressa um conceito.

Mas o que no conceito determina esta fronteira? Seja o que for, para a maior parte dos conceitos (excetuando-se os conceitos primitivos), podemos dizer que são critérios (não triviais[1]) de aplicação do conceito que determinam essa fronteira. Alguns vão dizer que esses critérios determinam a fronteira independentemente da aplicação do conceito. Não vou debater sobre isso aqui. Para mim basta que seja verdade que a aplicação da maior parte dos conceitos seja guiada por tais critérios, de tal forma que a inexistência de critérios de aplicação implique a inexistência do suposto conceito. Outro ponto importante a ser destacado é que tais critérios não necessitam ser condições necessárias e suficientes. Um ponto epistemológico: em alguns casos, talvez seja necessário realizar uma investigação para se ter conhecimento reflexivo sobre tais critérios. Todavia, se a aplicação de um um suposto termo conceitual não é guiada por nenhum critério (supondo-se que não se trata de um termo conceitual primitivo), então esse termo não expressa um conceito. Quem o usa e pensa que está pensando algo sobre as coisas está sob o efeito de uma ilusão; está a dizer coisas sem sentido.

Algumas vezes na ânsia para negar que um conceito determine fronteiras precisas, alguns defendem teses cuja consequência é que o tal conceito não determina fronteira alguma. Isso ocorre com certa frequência em discussões onde diz-se que o conceito em questão possui critérios subjetivos. Antes de mais nada, a palavra "subjetivo", assim como seu contrário, "objetivo", é extremamente ambígua. Para começar, algo pode ser metafisicamente objetivo/subjetivo ou epistemicamente objetivo/subjetivo. Algo é metafisicamente subjetivo quando sua existência e natureza dependem da existência e natureza do sujeito. Mas aqui temos uma nova ambiguidade: o sujeito, nesse caso, pode ser tanto a existência e natureza comum de todos os sujeitos, quanto a existência e natureza individual dos sujeitos. As crenças, por exemplo, são metafisicamente subjetivas, pois sua existência e natureza dependem da existência e natureza comum dos sujeitos. Não há crença que não seja crença de ao menos um sujeito. Isso é diferente de dizer que o conjunto da totalidade de crenças que cada indivíduo possui geralmente difere de indivíduo para indivíduo. Esse é um outro sentido em que as crenças são metafisicamente subjetivas: elas são individuais. Sejam individuais ou comuns, a natureza da crença (e alguns acreditam que o seu conteúdo também) é epistemicamente objetiva. Algo é epistemicamente objetivo quando é independente das crenças e/ou conhecimento que o sujeito possui. A crença é metafisicamente subjetiva no primeiro sentido independentemente das crenças que se tem sobre isso. Portanto, seu ser metafisicamente subjetiva é epistemicamente objetivo. Ademais, a ambiguidade comum/individual reaparece na objetividade epistêmica: a natureza ou existência de algo pode ser pensada como independente de todos os sujeitos ou como independente apenas de parte dos indivíduos. Por exemplo: mesmo que o conteúdo de um conceito seja independente do conhecimento de alguns indivíduos, disso não se segue (sem argumento adicional) que ele seja independente do conhecimento de todos os indivíduos.

Esse preâmbulo analítico serve para mostrar que dizer que os critérios de aplicação de um conceito são subjetivos é dizer algo altamente ambíguo. Num certo sentido, pode-se pensar, todos os critérios de aplicação de todos os nossos conceitos são subjetivos, pela boa razão de que todos os critérios de aplicação de seja lá o que for são subjetivos no seguinte sentido: não há critério de aplicação que não seja adotado por algum sujeito para realizar a aplicação. Se um critério não é adotado por ninguém para aplicar algo, então esse não é um critério de aplicação. Se não houvessem aplicações realizadas por sujeitos, não haveria critérios de aplicações. Nesse sentido, um critério de aplicação de um conceito pode muito bem ser subjetivo sem ser individual. Mas seria possível que os critérios de aplicação de um conceito fossem individuais, de tal forma que eles variassem de indivíduo para indivíduo? Isso teria como consequência que não haveria um conceito comum. Cada indivíduo estaria aplicando um conceito distinto embora estivesse usando o mesmo termo para essa aplicação. Por exemplo: se A diz que X é arte e B diz que X não é arte, mas A e B têm critérios distintos para a aplicação do conceito expresso por "arte", então a afirmação de A não contradiz a afirmação de B, pois em ambas afirmações "arte" não possui o mesmo sentido. Se alguém insistir que os critérios de A e B são de um mesmo conceito, a consequência será que esse suposto conceito é auto-contraditório e, por isso, não é um conceito, na medida em que não determina uma fronteira, nem mesmo vaga, entre o que é e o que não é arte. Se algum platonista quiser insistir que ele é um conceito, embora sua abstrata extensão seja necessariamente vazia, então a consequência é que não há nada no mundo que seja arte, pela boa razão de que não há nada no mundo a que um conceito auto-contraditório se aplique verdadeiramente. Seja como for, tal conceito será completamente inútil, ao menos no que tange a saber como o mundo é. Portanto, se os critérios de aplicação do conceito de arte são individuais e incompatíveis entre si, então ou há tantos conceitos de arte quanto critérios individuais de sua aplicação e, portanto, aqueles que afirmam e negam que algo seja arte usado conceitos diferentes não estão discordando, ou há um único conceito auto-contraditório de arte que não serve para nada no que tange a saber como o mundo é.

Mas vamos examinar melhor a afirmação de que os critérios para aplicação de um conceito são subjetivos. Se eles realmente existem, então deve haver uma diferença entre aplicar o conceito de acordo com tais critérios e pensar que se aplica o conceito de acordo com tais critérios. Por que? Porque de outra forma a aplicação do suposto conceito seria puramente arbitrária e, novamente, não haveria uma fronteira, nem mesmo vaga, determinada pelo conceito. Talvez seja isso mesmo o que alguns "subjetivistas" sobre a arte tenham em mente: dizer que algo é arte é o mesmo que dizer que se pensa que algo é arte. Nesse caso, o enunciado "Tal e tal coisa é arte" seria não uma descrição de tal e tal coisa, mas daquele que faz o enunciado. Ou talvez não seja uma descrição de tal sujeito, mas a expressão do que ele sente em contato com tal e tal coisa. Resta saber que expressão é essa. Nessa situação, qualquer um estaria tão correto ao dizer que tal e tal coisa é arte quanto aqueles que dizem que tal e tal coisa não é arte, o que significa dizer que, nesses contextos, parafraseado Wittgenstein, não faz mais sentido falar de "correto". Isso implica que tais subjetivistas não têm como justificar que a afirmação de que algo não é arte é falsa, se tal afirmação for feita de acordo com critérios diferentes e incompatíveis com os seus. Mas isso não é assim porque todas essas afirmações sejam verdadeiras, mas porque elas não são nem verdadeiras, nem falsas.

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[1] Um critério trivial é, por exemplo: um critério para que algo seja jogo é que ele seja... um jogo. Embora correto, é um critério inútil, se eu ainda não sei o que é ser um jogo.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Incoerência anti-socrática


Sócrates
É curioso como alguns anti-socráticos se aliam a Sócrates quando julgam estar criticando os socráticos. Por “anti-socráticos” eu considero aqueles que se opõem a tese de que parte essencial da filosofia consiste em buscar definições adequadas dos nossos conceitos fundamentais. Essa incoerência se mostra em especial numa espécie de falácia da indeterminação, que consiste em inferir que não podemos saber se algo é F ou não é F, se F for um conceito que contém algum grau de indeterminação. Na sua forma mais simples, o argumento é, por exemplo, este:
(i) Não há nenhuma definição adequada de “arte”.
(ii) Logo, não é possível justificar a afirmação de que algo é ou não é arte.
É claro que por “definição adequada” quer-se dizer o mesmo que “condições necessárias e suficientes”. Portanto, quem assim argumenta supõe que saber se algo é F ou não é F implica estar de posse de uma definição de “F” em termos de condições necessárias e suficientes. E alegada razão para isso é que saber se algo é F ou não é F implica saber o que é F e saber o que é F é estar de posse de uma definição de “F” em termos de condições necessárias e suficientes. Com essa falácia, os anti-socráticos julgam estar colocando em xeque o modo socrático de filosofar e abrindo espaço para entender a arte, ou qualquer coisa representada pelos nossos conceitos fundamentais, como algo relativo.

Todavia, a afirmação “saber o que é F é estar de posse de uma definição de ‘F’ em termos de condições necessárias e suficientes” é justamente uma das teses de Sócrates. E esta tese está longe de ser óbvia. Além disso, o que poderia justificar a afirmação de que uma pessoa não está de posse de uma definição de "F" em termos de condições necessárias e suficientes quando ela apresenta uma definição de "F"? Não é por meio da socrática apresentação de contra exemplos, ou seja, de casos que ou se ajustam à definição, mas não são F, ou de casos que são F, mas não se ajustam à definição? Mas como esses casos poderiam ser reconhecidos como contra-exemplos da definição, se não podemos saber se algo é F ou não é F? Portanto, a justificação de que a definição de "F" apresentada por alguém não é a definição de "F" em termos de condições necessárias e suficientes e, portanto, a justificação da premissa do argumento acima, é incompatível com a sua conclusão. Se não é possível justificar a afirmação de que algo é F ou não é F, então o afirmação de que algo é um contra-exemplo de uma definição de "F" não pode ser justificada.

Mas como podemos saber se algo é F ou não é F se não estamos de posse de uma definição de "F" em termos de condições necessárias e suficientes? A resposta a essa pergunta pode ser obtida por meio de uma reflexão sobre como adquirimos conceitos que não são definíveis ou não são definidos em termos de condições necessárias e suficientes. Nós os adquirimos aprendendo a identificar exemplos paradigmáticos de coisas que são F e que não são F. Exemplos paradigmáticos são aqueles sobre os quais não resta nenhuma dúvida racional sobre se são F ou não são F. Não ensinamos o conceito de verde, por exemplo, exibindo verdes azulados para as crianças, o ensinamos por meio de exemplos paradigmáticos de verde, tal como a cor da grama. O mesmo vale para o conceito de jogo. O mesmo vale para os conceitos vagos, como o conceito de pilha e de calvo. Saber o que é F, em todos esses casos, é saber identificar exemplos paradigmáticos de Fs. Saber o que não é F é saber identificar exemplos paradigmáticos de não-Fs. Mas como alguém sabe identificar tais exemplos? Há no mínimo dois critérios: o grau de uma certa propriedade, no caso de conceitos vagos, e a semelhança, no caso de conceitos de semelhança. Algo é jogo se é semelhante aos exemplos paradigmáticos de jogos. Algo é uma pilha se possui, em grau elevado, as propriedades de exemplos paradigmáticos de pilhas.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O paradoxo do conceito de cavalo e as elucidações

Figura sapo-cavalo
No seu artigo "Conceito e objeto", Frege traça a distinção entre, por um lado, conceito e objeto e, por outro, entre nome (termo singular) e expressão funcional (predicado). Numa frase predicativa singular como "Sócrates é sábio", "Sócrates" é o nome, uma expressão saturada, isto é, completa, sem necessidade de complemento. O resto, é a expressão funcional, que é insaturada, ou seja, necessita de um complemento. Marcamos o lugar para o complemento da expressão funcional usando uma variável, assim: "x é sábio". Os complementos das expressões funcionais são justamente os nomes. Conceito é um tipo de função, cujo valor é sempre um valor de verdade. Funções são entidades insaturadas, isto é, entidades que necessitam de complemento. Os complementos das funções são justamente os objetos, que são entidades saturadas, sem necessidade de nenhum complemento. Nenhum conceito é um objeto e nenhum objeto é um conceito.[1]

Nomes referem-se apenas a objetos e expressões funcionais referem-se apenas a conceitos. Não é possível que um nome refira-se a um conceito ou que uma expressão funcional refira-se a um objeto. Dentre as expressões que Frege considera nomes, e diferentemente de Russell, estão as descrições definidas. Descrições definidas são expressões da forma "O tal e tal" ou "A tal e tal", em que ocorre um artigo definido (por isso descrição definida) e uma descrição.[2] Dentre as descrições definidas está "O conceito de cavalo", que podemos usar em frases como "O conceito de cavalo é de fácil apreensão" ou "O conceito de identidade é uma função diádica". Mas, se não é possível que um nome refira-se a um conceito e a descrição definida "O conceito de cavalo" é um nome, então esse nome não se refere a um conceito, mas a um objeto. Portanto, seja o que for aquilo ao qual "O conceito de cavalo" se refere, não é um conceito. Isso é exatamente o que é dito pela seguinte frase paradoxal:
(P) O conceito de cavalo não é um conceito.
Essa frase é paradoxal porque ela não apenas parece falsa, mas necessariamente falsa, como o é a frase "Esta cadeira não é uma cadeira". Essa ultima frase é analiticamente falsa. No sujeito, atribui-se a algo a propriedade de ser uma cadeira por meio da descrição e no predicado nega-se que essa mesma coisa tenha essa propriedade. Entretanto, Frege "morde a bala" e afirma que P é verdadeira. A consequência geral disso é que nenhuma descrição definida da forma "O conceito tal e tal" refere-se a um conceito.

O problema que isso gera é que Frege não pode abster-se de usar descrições definidas com essa forma, pois ele precisa falar sobre conceitos para introduzir sua conceitografia, ou seja, a linguagem artificial de símbolos, cujas formas expressariam as formas lógicas dos pensamentos. Os símbolos da conceitografia não são auto-elucidativos. Eles precisam ser elucidados usando-se as frases da linguagem comum, tal como a frase "O conceito de identidade é uma função diádica". Frege chama as frases da linguagem comum usadas para elucidar os símbolos da conceitografia de elucidações. O problema é, portanto, que embora Frege precise falar sobre conceitos por meio das elucidações da forma "O conceito tal e tal é F", tais frases não dizem nada sobre conceitos.

Frege reconhece essa dificuldade e pede ao seu leitor caridade interpretativa, que seu leitor preste mais atenção no que ele quis dizer e que literalmente não disse e menos no que ele literalmente disse. Todavia, como podemos determinar o que ele quis dizer, dado que parece não haver nenhuma frase que possa expressar o que ele quis dizer? Às vezes queremos dizer algo, escolhemos mal nossas palavras e acabamos dizendo outra coisa. Mas nos casos ordinário em que isso acontece, podemos muito bem escolher as palavras corretas para expressar o que queríamos dizer e não dissemos. O caso das elucidações é diferente. Como podemos justificara suposição de que quisemos dizer algo determinado por meio delas, dado que não há frase que expresse isso que quisemos dizer? Como o interlocutor de Frege pode saber ao que ele deve prestar atenção, dado que não é ao sentido literal das elucidações?

A tese de que a lógica é indizível, que Wittgenstein "expressou" no seu Tractatus, e o consequente caráter paradoxal das elucidações do Tractatus podem ser vistos como uma generalização desse problema das elucidações de Frege. Mas, enquanto as elucidações de Frege têm sentido, embora o errado, as elucidações do Tractatus não possuem sentido. Há, entretanto, um problema comum: como a tentativa fracassada de falar sobre a lógica pode levar alguém a ver a lógica corretamente?

Creio que Frege foi negligente com perguntas importantes. Que objetos são esses a que descrições definidas da forma "O conceito tal e tal" se referem? Se não estamos falando sobre conceitos em frases da forma "O conceito tal e tal é F", sobre o que estamos falando? Qual é o sentido "errado" dessas frases? E como é possível que nos entendamos por meio dessas frases, dado no seu uso supomos erroneamente que estamos falando sobre conceitos?

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[1] Objetos são o que normalmente se denomina de particulares, que, para Frege, podem ser concretos (temporais ou espaço-temporais) ou abstratos (não-temporais e não-espaciais). Os conceitos, que são entidades abstratas, são uma versão realista do que normalmente se denomina de universais, por oposição à versão nominalista.

[2] Descrições indefinidas tem a forma "Um tal e tal" ou "Uma tal e tal". Diferentemente de descrições definidas, as descrições indefinidas não são nomes, pois não se referem um um objeto determinado. Elas são quantificações disfarçadas. Dizer "Um presidente da república do Brasil suicidou-se" é o mesmo que dizer "Há pelo menos um presidente do Brasil que suicidou-se".


segunda-feira, 12 de abril de 2010

O que é filosofia? (Parte 2)

Leia a primeira parte desse texto aqui.
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Mas que tipo de coisas seriam esses exemplos? Dado que o que queremos são exemplos paradigmáticos e que esses são aqueles em que não há controvérsia sobre se são casos de filosofia, o tipo de coisas no qual devemos nos concentrar é aquele sobre o qual não há controvérsia que encontramos na filosofia. Ou seja, devemos iniciar nossa busca pelo que é mais trivial acerca da filosofia. Em primeiro lugar, dada a distinção entre fazer e descrever o que se faz, está claro que estamos procurando exemplos de uma certa atividade, a atividade de filosofar. Mas o que há de incontroverso sobre essa atividade por meio do qual possamos começar nossa busca por exemplos? Bem, parece incontroverso que, ao filosofar, os filósofos formulam certas perguntas e procuram respondê-las do melhor modo possível. É o que viemos fazendo até aqui... Essas perguntas são formulações de problemas filosóficos.[2] Agora temos ao menos parte da descrição do tipo de coisas que são os exemplos paradigmáticos que procuramos: problemas filosóficos. Quais poderiam ser os melhores paradigmas de problemas filosóficos?

Geralmente os manuais e introduções à filosofia apresentam como exemplos paradigmáticos de problemas filosóficos perguntas que têm a forma do título dessas postagem: "O que é ____?", que, como vimos, em geral pede uma definição, entendida em termos de condições necessárias e suficientes para algo ser o que é. Isso está ligado à idéia popular que a filosofia tem como objeto de estudo a essência ou natureza das coisas. Mas ela não estuda a essência de qualquer coisa. A filosofia não estuda a essência das cadeiras, por exemplo. Quais são, pois, os exemplos paradigmáticos de problemas filosóficos dessa forma? Geralmente três desses problemas são apresentados como os principais, sendo os demais de algum modo subordinados a eles. Esses três problemas são:

O que é a verdade?
O que é o bem?
O que e o belo?

Podemos aumentar essa lista:

O que é o conhecimento?
O que é a justiça?
O que é a virtude?
O que é arte?
O que é Deus?
O que é mente?
O que é ciência?

E assim por diante. Esses parecem ser exemplos inequívocos, paradigmáticos, de problemas filosóficos. A fim de tentar definir "filosofia", podemos agora examinar o que esses exemplos têm em comum, fora a forma. O que os conceitos de verdade, bem, beleza, conhecimento, justiça, virtude, etc., têm em comum? Por que os conceitos de cadeira e de ameba, por exemplo, não estão nessa lista? Podemos ver o que esses conceitos têm em comum por meio de um experimento mental.[3]

Tentemos imaginar como seria a vida de um povo inteiro que não tivesse o conceito de verdade, por exemplo. Se as pessoas desse povo que não tivessem esse conceito, então elas nunca avaliariam suas afirmações como verdadeiras ou falsas. Elas jamais pensariam que o que dizem é verdadeiro, ou que é falso. Para pensar isso, elas deveriam ter o conceito de verdade. É difícil, para dizer o mínimo, imaginar a vida de um tal povo. Essas pessoas poderiam ter linguagem descritiva? Como elas aprenderiam essa linguagem? Como seria seu ensino? Seja o que for que imaginemos, se conseguirmos imaginar alguma coisa, trata-se de uma forma de vida radicalmente diferente da nossa. E quando digo isso, não estou pensando no contraste entre a forma de vida americana e a forma de vida islâmica, por exemplo. Essas duas formas de vida são muito semelhantes entre si, se comparadas com a forma de vida de um povo que não possuísse o conceito de verdade. Isso mostra que a nossa forma de vida é enformada pela posse desse conceito. Ela é como é porque, entre outras coisas, possuímos o conceito de verdade, porque avaliamos nossas afirmações como verdadeiras ou falsas. Nesse sentido, podemos dizer que o conceito de verdade é um conceito fundamental: é um conceito tal que não podemos imaginar alguém que não o tenha e não seja radicalmente diferente de nós, que o possuímos. O mesmo parece valer, em graus diferentes, para os demais conceito que aparecem na lista de problemas filosóficos acima. Todos eles, em maior ou menor grau, são conceitos fundamentais, no sentido recém explicado. Tentemos imaginar um povo que não possua conceitos estéticos, por exemplo (belo, feio, sublime, grotesco, harmonioso, etc.), e que, portanto, não avalie nada do ponto de vista estético. Todos esses conceitos enformam nosso modo de pensar sobre o mundo. É difícil imaginar como seria pensar qualquer coisa sobre o mundo sem usar esses conceitos.[4]

Mas se o filósofo, ao perguntar o que é a verdade, por exemplo, quer uma definição de "verdade", por que ele não se contenta com a definição de "verdade" que ele encontra em um bom dicionário? O que ele teria a dizer a alguém que lhe oferecesse uma definição de dicionário como resposta? Supostamente, definições de dicionários são corretas, pois são feitas por lingüistas que conhecem muito bem o idioma. Sendo assim, um filósofo não pode rejeitar essas definições sob a alegação de que não são corretas, salvo se tiver alguma boa evidência em contrário. Qual é, pois, a diferença entre um filósofo e um lingüista? Uma tentação muito comum nesse ponto é dizer que as definições dos dicionários não são profundas. Mas geralmente não é nada claro o que se quer dizer com "profunda". Por que as definições do dicionário não são profundas? Quais são as condições para que uma definição seja profunda?

Alguém poderia dizer que, enquanto o lingüista está interessado na linguagem, na palavra "verdade", por exemplo, o filósofo está interessado na própria verdade, na verdade em si mesma. Mas se esse interesse na verdade é um interesse na essência da verdade e se a definição de "verdade" do dicionário apresenta essa essência, então essa não é uma boa explicação da diferença entre um lingüista e um filósofo.

Para saber que diferença é essa, temos que investigar a motivação do filósofo para fazer suas perguntas. Por que o filósofo quer saber, por exemplo, o que a verdade é? Um lingüista quer encontrar definições porque ele é um cientista da linguagem e, como tal, está interessado em quaisquer conhecimentos sobre a linguagem. O filósofo não está interessado em quaisquer conhecimentos sobre a linguagem. Ele está interessado em conhecimentos lingüísticos apenas na medida em que eles são úteis para lidar com um tipo de problema com o qual o lingüista não lida. Por isso, esses problemas com os quais o lingüista não lida são os verdadeiros problemas filosóficos. Tais problemas são os paradoxos formulados com os conceitos que aprecem nas perguntas filosóficas da forma "O que é ____?".

Um paradoxo, de modo geral pode ser pensado como um problema que mostra um certo conflito (real ou aparente) entre nossas intuições. Uma intuição, no sentido em que dizemos que uma afirmação é intuitiva ou contra-intuitiva, é uma afirmação que à maioria de nós parece verdadeira à primeira vista, que a maioria de nós está inclinada a considerar verdadeira à primeira vista. Algumas afirmações intuitivas são banais e particulares. Outras são importantes e gerais. Por exemplo: o princípio de não-contradição, que diz que não é possível que uma afirmação e sua negação ("Chove" e "Não-chove", p.ex.) sejam ambas verdadeiras, é uma intuição muito importante e geral. Um paradoxo é um problema que mostra que, ao menos aparentemente, algumas dessas intuições gerais e importantes estão em conflito.

Um exemplo paradigmático de paradoxo é um dos assim chamados paradoxos de Zenão. A apresentação informal desse paradoxo começa com uma definição de movimento. Um objeto a se move se, e somente se, em instantes de tempo diferentes a estiver em pontos diferentes do espaço. Suponhamos que a se mova do ponto A ao ponto B. Antes de chegar ao ponto B, a deve passar pelo ponto C, que eqüidista de de A e B. Mas antes de passar por C, a terá que passar pelo ponto D, que eqüidista de A e C. E antes de passar por D, a terá de passar pelo ponto E, que eqüidista de A e D. E assim por diante, ao infinito. Isso sugere que entre A e B e, portanto, entre quaisquer dois pontos, há infinitos pontos e, por isso, infinitos intervalos de espaço. Portanto, se a se move de A a B, ou de um ponto qualquer do espaço para outro, então a percorre infinitos intervalos de espaço. Agora, para qualquer ação, se ela é composta de um número infinito de etapas, então trata-se de uma ação impossível, que não pode ser realizada. Se pudesse ser realizada, então isso significa que todas as etapas teriam sido realizadas e, portanto, não seriam infinitas. Mas ir de um ponto a outro do espaço percorrendo infinitos intervalos de espaço é justamente uma ação composta de infinitas etapas. Portanto, se percorrer infinitos intervalos de espaço é necessário para que um objeto qualquer se mova, ou seja, para que vá de um ponto do espaço a outro, então nenhum objeto pode se mover. Logo, o movimento é impossível.

Esse paradoxo é uma inferência, um raciocínio, que parece ter as seguintes três características: ela parece ter premissas verdadeiras, parece ser uma inferência válida e parece ter uma conclusão falsa. Mas isso não é possível. Uma inferência válida é justamente uma que não pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa. Portanto, se essa inferência é realmente válida, então ou ao menos uma de suas premissas, embora pareça muito intuitiva, é falsa, ou a conclusão, embora pareça muito contra-intuitiva, é verdadeira. Se nenhuma dessas opções é o caso, então só pode ser porque essa inferência, embora pareça válida, é inválida. Seja qual for a opção correta, o paradoxo mostra que temos que abandonar alguma intuição. E na investigação sobre qual opção é correta, o filósofo pergunta: O que é o movimento? O que é um ponto? O que é a divisibilidade infinita do espaço? O que é o infinito? Ele faz perguntas dessa forma a fim de lidar com esse paradoxo. Um lingüista não estuda a linguagem com o objetivo de lidar com paradoxos.

Os verdadeiros problemas filosóficos são os paradoxos.[5] Eles formam a parte submersa de um iceberg cuja ponta é formada pelas perguntas da forma "O que é ____?". Eles são o que motivam o filósofo a fazer perguntas dessa forma. É claro que um físico, por exemplo, pode lidar com paradoxos também, em meio às suas investigações e teorizações físicas. Se assim for, ele estará às voltas com problemas filosóficos em meio à sua atividade como físico. Os paradoxos mostram que não temos uma clareza reflexiva sobre o conteúdo de conceitos fundamentais e, portanto, de intuições fundamentais que são expressas por meio desses conceitos. A importância de se lidar com esses problemas é, pois, diretamente proporcional à importância de se ter clareza sobre tais conceitos e intuições.

A filosofia não é determinada apenas pelos problemas com os quais os filósofos lidam. Ela também é determinada pelo modo como eles lidam com esses problemas. E é nesse ponto em que as diferenças mais profundas entre os filósofos se fazem mais sentidas. Alguns defendem, por exemplo, que os problemas filosóficos devem ser resolvidos por meio de uma teoria empírica sobre aquilo que é representado pelos conceitos que aparecem na formulação desses problemas. Outros acreditam que tais problemas devem ser tratados de forma a priori, isto é, independentemente da experiência, seja porque eles devem ser dissolvidos por meio de análise lógica da linguagem, seja porque eles devem ser resolvidos por meio de conhecimento a prori.[6] E muitas outras diferenças metodológicas poderiam ser listadas. Mas, mesmo nesse ponto, devemos ter em mente a distinção entre fazer algo e descrever o que se faz. Se um filósofo diz que a filosofia é empírica, por exemplo, então o que devemos fazer é examinar como o seu filosofar de fato depende de conhecimento empírico. Obviamente, ele dizer que seu filosofar é uma atividade empírica não a torna empírica. Mutatis mutandis, o mesmo vale para o filósofo que diz que seu filosofar é uma atividade a priori.

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[2] Em geral um problema é uma pergunta cuja resposta não sabemos e, por alguma razão, precisamos saber. Por isso, nem toda pergunta cuja resposta não sabemos é um problema. Se não precisamos saber a resposta a uma pergunta, ela não é um problema.

[3] Um experimento mental, ou experimento de pensamento, não é um experimento psicológico, mas sim a descrição de uma situação, real ou fictícia, que serve para enfatizar certos aspectos dos nossos conceitos. Descrita a situação, nos perguntamos como deveríamos usar um determinado conceito nessa situação, ou se poderíamos usá-lo, ou se o teríamos, etc. Conforme a resposta, aspectos desse conceito se tornarão mais evidentes.

[4] Mesmo um naturalista como Quine, que não reconhece uma diferença categorial entre a filosofia e as demais ciências, pois vê ambas como contínuas, quando perguntado sobre a natureza da filosofia, não diz algo muito diferente do que foi dito acima. Leia aqui uma transcrição de um trecho de uma entrevista em que Quine diz o que acredita ser a filosofia.

[5] Russell dizia que os puzzles (literalmente, quebra-cabeça) têm uma função na filosofia da lógica análoga à função que a experiência tem na física: servem para testar as teorias filosóficas, assim como a experiência serve para testar as teorias científicas ("Sobre a Denotação"). Entre os puzzles estão os paradoxos.

[6] Um problema é dissolvido quando algum tipo de erro suposto pela sua formulação é exibido. Esse erro tanto pode ser uma crença falsa quanto uma confusão conceitual. Uma vez descoberto o erro, a pergunta não é respondida, o problema não é resolvido, mas simplesmente abandonado. Ele deixa de ser um problema.

Leituras

Analysis (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Concepts (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Metaphysics (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Convention (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Theories of Meaning (Stanford Encyclopedia of Philosophy)

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Agradeço ao amigo Prof. Eros de Carvalho por comentários à primeira versão desse texto.

Imagem: gravura de M.C. Escher

sábado, 10 de abril de 2010

O que é filosofia? (Parte 1)

Pilatos perguntando a Jesus:
O que é verdade?
(Nikolaj Nikolajewitsch Ge,
1831–1894)
O que essa pergunta pede? Geralmente perguntas da forma "O que é ____?" pedem uma definição, entendida como a especificação de condições necessárias e suficientes para que algo seja o que é. No presente caso, são as condições necessárias e suficientes para que algo seja filosofia que estão em questão. Mas agora que já temos uma idéia do que essa pergunta pede, como podemos respondê-la? Se alguém nos pergunta qual é o peso de um certo objeto, sabemos o que devemos fazer para responder à pergunta. Devemos procurar uma balança, colocar o objeto no local apropriado e olhar para o mostrador da balança para ver o que ele registra. Essas são as instruções que devemos seguir, desde o começo, para responder à pergunta sobre o peso de um objeto. Mas quais são as instruções que devemos seguir na tentativa de responder à pergunta "O que é filosofia?" É claro que nem a filosofia é um objeto físico, nem a pergunta pede informação sobre alguma característica física da filosofia. Sendo assim, qual a primeira coisa que devemos fazer ao tentar responder a essa pergunta? É claro, também, que devemos pensar, refletir, sobre a filosofia. Mas como devemos fazer isso? Qual é o primeiro passo nessa reflexão?

Para quem está no início dos seus estudos filosóficos, uma resposta tentadora a essa meta-pergunta (ou seja, a essa pergunta sobre outra pergunta) consiste em dizer que devemos examinar a história da filosofia, prestando atenção no que os grandes filósofos disseram sobre a filosofia. Dado que são grandes, pensa-se, eles devem ter tido uma excelente compreensão do que a filosofia é. Portanto, no que essas autoridades no assunto disseram sobre a filosofia, deve estar a resposta à pergunta "O que é a filosofia?". Essa estratégia tem vários problemas que a tornam irremediavelmente errada.

(1) A natureza ou essência da filosofia é matéria de enorme controvérsia entre os filósofos. Alguns deles dizem coisas sobre a natureza da filosofia que são mutuamente incompatíveis, ou seja, coisas que não podem ser todas verdadeiras. Aqui há duas alternativas. Se as afimações dos filósofos forem contraditórias entre si, então uma delas é verdadeira e a outra é falsa. Se forem contrárias, então talvez ambas sejam falsas.[1] Se tais afirmações forem, de um jeito ou de outro, incompatíveis entre si, se for o caso que nem todas as afirmações dos filósofos sobre a filosofia podem ser verdadeiras, como podemos saber quais são as verdadeiras e quais são as falas?

(2) Mesmo que as afirmações dos filósofos sobre a natureza da filosofia não fossem incompatíveis entre si, se examinarmos a história da filosofia e descobrirmos o que os filósofos disseram sobre a natureza da filosofia, então o conhecimento que obteremos nesse exame é sobre o que? É sobre a natureza da filosofia? Não. Se descobrirmos o que os filósofos disseram sobre a natureza da filosofia, obteremos conhecimento sobre... o que os filósofos disseram sobre a natureza da filosofia. Para disso obter conhecimento sobre a natureza da filosofia, devemos saber que o que os filósofos disseram é verdade. E o que eles disseram não é verdade apenas porque foram eles, grandes filósofos, que disseram, mas porque a filosofia é tal como eles disseram que ela é.

(3) Nada garante que o que um filósofo diz sobre a natureza da filosofia, mesmo um grande filósofo, seja verdadeiro. Isso fica evidente a partir do ponto (1). Se o que grandes filósofos dizem é incompatível, então ao menos uma de suas afirmações é falsa. Portanto, ao menos um grande filósofo disse algo falso sobre a natureza da filosofia. Mas como isso é possível? Como se explica que um filósofo, especialmente um grande filósofo, diga algo falso sobre a natureza da filosofia? Em parte isso se explica pela distinção entre duas habilidades. Em geral, uma coisa é a habilidade para se fazer algo, outra coisa é a habilidade para se descrever o que se faz. Por exemplo: uma pessoa pode ter muita  habilidade para se deslocar em uma cidade, escolhendo sempre o caminho mais curto entre dois pontos. Mas ele pode não ter nenhuma habilidade para representar, em um mapa, o caminho que toma, ou para dar instruções sobre qual caminho tomar. O fato que essas duas habilidade nem sempre estão juntas explica, em parte, por que, em alguns casos, há pessoas que são tão competentes fazendo algo que são incapazes de ensinar, se esse ensino envolve descrever o que se faz. Pois algo desse tipo pode acontecer com os filósofos: eles podem ser muito bons fazendo filosofia, filosofando, mas não serem tão bons ao descreverem o que fazem.

Como, então, podemos saber se o que os filósofos disseram sobre a natureza da filosofia é verdade? Naturalmente, os filósofos não apenas afirmaram coisas sobre a natureza da filosofia, mas também tentaram justificar essas afirmações, oferecendo razões para acreditar que o que disseram sobre a natureza da filosofia é verdade. Parece, então, que devemos examinar essas razões, para ver se o que os filósofos dizem sobre a natureza da filosofia é verdade. Mas essas razões são afirmações, das quais ao menos algumas são sobre a filosofia. Portanto, dizer que devemos examinar essas razões simplesmente transfere o problema de lugar sem resolvê-lo: como podemos saber que essas afirmações oferecidas como razões são verdadeiras? Se não queremos embarcar em um regresso ao infinito, indo de uma afirmação para suas razões, e dessas para as razões das razões, e dessas para as razões das razões da razões, etc., em algum ponto devemos ter um meio de saber que uma afirmação de um filósofo sobre a natureza da filosofia é verdadeira sem que isso consista apenas em relacionar essa afirmação com outras.

Se queremos saber se o que alguém diz sobre Curitiba é verdade, em última análise devemos comparar o que essa pessoa diz com Curitiba. Portanto, devemos examinar Curitiba, para ver se ela é tal como essa pessoa diz que é. Analogamente, se queremos saber se o que um filósofo diz sobre a filosofia é verdade, devemos examinar a filosofia, para ver se ela é tal como o filósofo diz que ela é. Mas, para examinar a filosofia, devemos ter algum tipo de acesso a ela e devemos nos certificar de que se trata do acesso a ela e não a outra coisa. Ocorre que, aparentemente, para nos certificarmos de que se trata do acesso à filosofia, devemos saber o que a filosofia é. Como podemos ter acesso a um dos termos da comparação, à filosofia, se não sabemos que se trata de um dos termos da comparação, ou seja, se não sabemos que aquilo a que temos acesso é filosofia? Todavia, nesse contexto, isso implica que, para avaliar as respostas à pergunta "O que é filosofia?", devemos, de algum modo, saber o que a filosofia é, na medida em que devemos comparar essas respostas com aquilo que sabemos ser filosofia. Em suma, se esse raciocínio está correto, para descobrirmos o que a filosofia é, já devemos saber, de algum modo, o que a filosofia é. Mas essa parece ser uma enrascada da qual não podemos sair. Aparentemente, ninguém pode descobrir o que uma coisa X é, se, para isso, já tiver de saber o que X é. Essa é uma tarefa paradoxal.

O paradoxo acima tem uma certa relação importante com um paradoxo formulado por Santo Agostinho. E uma comparação entre ambos pode nos ajudar a sair da enrascada descrita acima. O paradoxo de Agostinho é o seguinte: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei." (Confissões) Por que alguém deixa de saber o que é o tempo apenas porque deseja explicar isso, isto é, dar uma definição de "tempo"? Em que sentido essa pessoa, quando não deseja explicar o que ele é, sabe o que é o tempo? A explicação aqui tem uma relação com a diferença entre fazer algo e descrever o que se faz, mencionada acima.

A maioria de nós (para dizer o mínimo) sabe usar competentemente a palavra "tempo" e expressões temporais de um modo geral: "antes", "depois", "durante", "simultaneamente", "sucessivamente", "tarde", "cedo", "demorado", "rápido", "n horas", "ontem", "hoje", "amanhã", etc. Mas como alguém pode ser competente nesse uso e não saber o que o tempo é? Parece absurdo dizer que, em qualquer sentido de "saber o que o tempo é", uma pessoa não sabe o que o tempo é mesmo tendo competência no uso de expressões temporais. Ou seja, parece plausível dizer que, em algum sentido de "saber o que o tempo é", aquele que é competente no uso de expressões temporais sabe o que o tempo é. E se ela sabe o que o tempo é nesse sentido e não sabe dar uma definição de "tempo", então não há paradoxo na afirmação de Agostinho. Ela sabe o que o tempo é no sentido em que ele é competente no uso das expressões temporais e não sabe o que o tempo é no sentido em que ele é incapaz de dar uma definição de "tempo". E saber dar uma definição pode ser visto aqui como análogo a saber dar uma descrição do que se faz, por oposição a saber fazer. Saber dar uma definição de "tempo" é formular em palavras a regra (ou regras) para o emprego da palavra "tempo", por oposição a saber seguir essa regra.

Mas como tudo isso pode nos ajudar a sair daquela enrascada? Se alguém sabe usar um termo geral "F" competentemente sem saber dar uma definição de "F", isso significa que sabe distinguir entre casos a que que "F" se aplica verdadeiramente e casos a que "F" não se aplica verdadeiramente. Ou seja, sabe distinguir entre casos em que a frase "Isso é F" é verdadeira e casos em que essa frase é falsa. Mas isso é saber distinguir entre exemplos de coisas que são F e exemplos de coisas que não são F. Portanto, se é possível usar um termo geral "F" competentemente sem saber dar uma definição desse termo geral, então é possível distinguir entre exemplos de F e exemplos de não-F sem saber dar uma definição de "F". O que temos que saber agora é se podemos distinguir entre exemplos de filosofia e exemplo de não-filosofia, digamos assim, sem sabermos dar uma definição de filosofia. Se podemos, então isso significa que podemos saber o que a filosofia é sem saber dar uma definição de "filosofia". E é examinando os exemplos de filosofia que podemos investigar o que eles têm (se tiverem) de necessário e suficiente para ser o que são, e, desse modo, obter uma definição de "filosofia".

Uma reflexão sobre como ensinamos o uso de termos gerais por meio de exemplos pode nos dar um pista sobre o tipo de exemplos que devemos buscar. Há casos de tons de cores que estão entre o azul e o verde, não sendo claro se se tratam de azuis esverdeados ou verdes azulados. Se queremos ensinar uma criança o uso de "verde" e "azul", não vamos usar esses casos como exemplos de azul ou de verde. Em vez disso, vamos usar exemplos paradigmáticos de verde e de azul, ou seja, casos sobre os quais não paira dúvida de que são exemplos de verde e exemplos de azul. O que isso sugere é que o conhecimento sobre o que a filosofia é por meio de exemplos envolve a habilidade para identificar exemplos paradigmáticos de filosofia (e de não-filosofia), a despeito de haver casos duvidosos. 

Leia a segunda parte desse texto aqui.

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[1] Duas afirmações são contraditórias quando são incompatíveis e uma é a negação da outra. por exemplo: "A filosofia é uma ciência" e "A filosofia não é uma ciência". Essas afirmações não podem nem ser ambas verdadeiras, nem ambas falsas. Duas afirmações são contrárias quando são incompatíveis, embora uma não seja a negação da outra. Por exemplo: "Isso é completamente verde" e "Isso é completamente vermelho". Essas afirmações não podem ser ambas verdadeiras. Todavia, podem ser ambas falsas.


domingo, 10 de fevereiro de 2008

Analiticidade, Identidade Conceitual e Sinonímia


Jerry Fodor e Ernest Lepore, em "Analiticity Again" (Devitt, M. & Hanley, R. 2006, The Blackwell Guide to the Philosophy of Language. Oxford: Blackwell, pp. 114-130) defendem que,

(1) para que uma frase da forma 'Os Fs são Gs' seja analítica, não basta que 'F' e 'G' sejam expressões sinônimas, elas devem expressar o mesmo conceito.

Eles, portanto, defendem que

(2) a sinonimia não é condição suficiente para a identidade conceitual.

Eu suspeito que (2) seja falsa. Vou trabalhar sobre minhas razões nos próximos dias e volto a postar sobre o assunto.