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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Conceitos, subjetividade e arte

Pichação em Pompéia, que na época era
chamada de grafite. Atualmente, no português,
usamos esse par de palavras para
marcar uma diferença.

Conceitos são elementos dos nossos pensamentos. Por meio deles pensamos sobre o mundo. Um conceito, como disse Peter Strawson, serve para classificar as coisas. Por exemplo: por meio do conceito de jogo, traçamos uma fronteira entre as coisas que são jogos e as coisas que não são jogos. Tal fronteira, na maioria dos conceitos, não é precisa, o que significa dizer que os conceitos, na sua maioria, são vagos. Há casos fronteiriços para os quais é indeterminado de que lado da fronteira estão. A natureza dessa indeterminação, se epistêmica, metafísica ou linguística, é matéria de uma grande controvérsia com a qual não vou me ocupar aqui. O que me importa enfatizar é que fronteira vaga é fronteira. Todavia, para que haja fronteira, deve haver casos não fronteiriços. Se é indeterminado para todas as coisas se elas são ou não são jogos, por exemplo, então a palavra "jogo" não expressa um conceito.

Mas o que no conceito determina esta fronteira? Seja o que for, para a maior parte dos conceitos (excetuando-se os conceitos primitivos), podemos dizer que são critérios (não triviais[1]) de aplicação do conceito que determinam essa fronteira. Alguns vão dizer que esses critérios determinam a fronteira independentemente da aplicação do conceito. Não vou debater sobre isso aqui. Para mim basta que seja verdade que a aplicação da maior parte dos conceitos seja guiada por tais critérios, de tal forma que a inexistência de critérios de aplicação implique a inexistência do suposto conceito. Outro ponto importante a ser destacado é que tais critérios não necessitam ser condições necessárias e suficientes. Um ponto epistemológico: em alguns casos, talvez seja necessário realizar uma investigação para se ter conhecimento reflexivo sobre tais critérios. Todavia, se a aplicação de um um suposto termo conceitual não é guiada por nenhum critério (supondo-se que não se trata de um termo conceitual primitivo), então esse termo não expressa um conceito. Quem o usa e pensa que está pensando algo sobre as coisas está sob o efeito de uma ilusão; está a dizer coisas sem sentido.

Algumas vezes na ânsia para negar que um conceito determine fronteiras precisas, alguns defendem teses cuja consequência é que o tal conceito não determina fronteira alguma. Isso ocorre com certa frequência em discussões onde diz-se que o conceito em questão possui critérios subjetivos. Antes de mais nada, a palavra "subjetivo", assim como seu contrário, "objetivo", é extremamente ambígua. Para começar, algo pode ser metafisicamente objetivo/subjetivo ou epistemicamente objetivo/subjetivo. Algo é metafisicamente subjetivo quando sua existência e natureza dependem da existência e natureza do sujeito. Mas aqui temos uma nova ambiguidade: o sujeito, nesse caso, pode ser tanto a existência e natureza comum de todos os sujeitos, quanto a existência e natureza individual dos sujeitos. As crenças, por exemplo, são metafisicamente subjetivas, pois sua existência e natureza dependem da existência e natureza comum dos sujeitos. Não há crença que não seja crença de ao menos um sujeito. Isso é diferente de dizer que o conjunto da totalidade de crenças que cada indivíduo possui geralmente difere de indivíduo para indivíduo. Esse é um outro sentido em que as crenças são metafisicamente subjetivas: elas são individuais. Sejam individuais ou comuns, a natureza da crença (e alguns acreditam que o seu conteúdo também) é epistemicamente objetiva. Algo é epistemicamente objetivo quando é independente das crenças e/ou conhecimento que o sujeito possui. A crença é metafisicamente subjetiva no primeiro sentido independentemente das crenças que se tem sobre isso. Portanto, seu ser metafisicamente subjetiva é epistemicamente objetivo. Ademais, a ambiguidade comum/individual reaparece na objetividade epistêmica: a natureza ou existência de algo pode ser pensada como independente de todos os sujeitos ou como independente apenas de parte dos indivíduos. Por exemplo: mesmo que o conteúdo de um conceito seja independente do conhecimento de alguns indivíduos, disso não se segue (sem argumento adicional) que ele seja independente do conhecimento de todos os indivíduos.

Esse preâmbulo analítico serve para mostrar que dizer que os critérios de aplicação de um conceito são subjetivos é dizer algo altamente ambíguo. Num certo sentido, pode-se pensar, todos os critérios de aplicação de todos os nossos conceitos são subjetivos, pela boa razão de que todos os critérios de aplicação de seja lá o que for são subjetivos no seguinte sentido: não há critério de aplicação que não seja adotado por algum sujeito para realizar a aplicação. Se um critério não é adotado por ninguém para aplicar algo, então esse não é um critério de aplicação. Se não houvessem aplicações realizadas por sujeitos, não haveria critérios de aplicações. Nesse sentido, um critério de aplicação de um conceito pode muito bem ser subjetivo sem ser individual. Mas seria possível que os critérios de aplicação de um conceito fossem individuais, de tal forma que eles variassem de indivíduo para indivíduo? Isso teria como consequência que não haveria um conceito comum. Cada indivíduo estaria aplicando um conceito distinto embora estivesse usando o mesmo termo para essa aplicação. Por exemplo: se A diz que X é arte e B diz que X não é arte, mas A e B têm critérios distintos para a aplicação do conceito expresso por "arte", então a afirmação de A não contradiz a afirmação de B, pois em ambas afirmações "arte" não possui o mesmo sentido. Se alguém insistir que os critérios de A e B são de um mesmo conceito, a consequência será que esse suposto conceito é auto-contraditório e, por isso, não é um conceito, na medida em que não determina uma fronteira, nem mesmo vaga, entre o que é e o que não é arte. Se algum platonista quiser insistir que ele é um conceito, embora sua abstrata extensão seja necessariamente vazia, então a consequência é que não há nada no mundo que seja arte, pela boa razão de que não há nada no mundo a que um conceito auto-contraditório se aplique verdadeiramente. Seja como for, tal conceito será completamente inútil, ao menos no que tange a saber como o mundo é. Portanto, se os critérios de aplicação do conceito de arte são individuais e incompatíveis entre si, então ou há tantos conceitos de arte quanto critérios individuais de sua aplicação e, portanto, aqueles que afirmam e negam que algo seja arte usado conceitos diferentes não estão discordando, ou há um único conceito auto-contraditório de arte que não serve para nada no que tange a saber como o mundo é.

Mas vamos examinar melhor a afirmação de que os critérios para aplicação de um conceito são subjetivos. Se eles realmente existem, então deve haver uma diferença entre aplicar o conceito de acordo com tais critérios e pensar que se aplica o conceito de acordo com tais critérios. Por que? Porque de outra forma a aplicação do suposto conceito seria puramente arbitrária e, novamente, não haveria uma fronteira, nem mesmo vaga, determinada pelo conceito. Talvez seja isso mesmo o que alguns "subjetivistas" sobre a arte tenham em mente: dizer que algo é arte é o mesmo que dizer que se pensa que algo é arte. Nesse caso, o enunciado "Tal e tal coisa é arte" seria não uma descrição de tal e tal coisa, mas daquele que faz o enunciado. Ou talvez não seja uma descrição de tal sujeito, mas a expressão do que ele sente em contato com tal e tal coisa. Resta saber que expressão é essa. Nessa situação, qualquer um estaria tão correto ao dizer que tal e tal coisa é arte quanto aqueles que dizem que tal e tal coisa não é arte, o que significa dizer que, nesses contextos, parafraseado Wittgenstein, não faz mais sentido falar de "correto". Isso implica que tais subjetivistas não têm como justificar que a afirmação de que algo não é arte é falsa, se tal afirmação for feita de acordo com critérios diferentes e incompatíveis com os seus. Mas isso não é assim porque todas essas afirmações sejam verdadeiras, mas porque elas não são nem verdadeiras, nem falsas.

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[1] Um critério trivial é, por exemplo: um critério para que algo seja jogo é que ele seja... um jogo. Embora correto, é um critério inútil, se eu ainda não sei o que é ser um jogo.

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