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sábado, 2 de junho de 2018

O problema do mal moral


O texto que se segue é uma breve introdução ao assunto. Para uma leitura mais aprofundada, ver textos recomendados no final e os textos recomendados por esses.

Algumas vezes Deus (a divindade máxima das religiões judaico-cristãs) é definido como o ser perfeito. Essa perfeição, por sua vez, às vezes é concebida como contendo ao menos estas três propriedades: a onisciência, a onipotência e a suma bondade. A onisciência é a propriedade de um ser cognitivo (aquele que á capaz de conhecer) segundo qual esse ser sabe tudo há para saber, conhece tudo que há para ser conhecido. A onipotência, por sua vez, é a propriedade de um agente (aquele que á capaz de agir) segundo a qual esse agente é capaz de fazer, ou realizar, ou criar tudo que é possível ser feito, realizado ou criado.[1] Por fim, a suma bondade é a propriedade de um agente segundo a qual tudo o que esse agente faz, realiza e cria não apenas é bom, no sentido moral de "bom", mas é o melhor, no mesmo sentido.

Nas religiões judaico-cristãs, Deus é concebido como o criador de tudo mais que há, ou seja, do mundo natural como um todo (o mundo estudado pelas ciências naturais), onde há estrelas, planetas, seres vivos, etc.[2] Se Deus é mesmo sumamente bom, então esse mundo que ele criou deve ser não apenas bom, mas o melhor dos mundos possíveis. Todavia, há alguns fatos que ocorrem nesse mundo que desafiam a tese de que ele é bom e mais ainda a tese de que ele é o melhor dos mundos possíveis. Se esse for o caso, então Deus não é sumamente bom. Que fatos são esses? São vários: a miséria, a fome, o homicídio, o estupro, a exploração, a guerra, a escravidão, o racismo, o machismo, a homofobia, os maus-tratos a crianças e idosos, etc. (eu incluiria o especismo nessa lista). O que todos esses fatos têm em comum? Todos são, em maior ou menor grau, realizações particulares da injustiça, do mal moral. Ao menos isso é o que parece à maioria de nós. Talvez você discorde de alguns itens dessa lista. Eles são apenas exemplos de injustiças, do mal moral. Para efeitos de argumento, no decorrer do texto, foque naquele que você acredita ser o exemplo paradigmático de mal moral. O fato geral que ocorre nesse mundo parece que desafia a tese de que esse mundo é bom ou de que é o melhor dos mundos possíveis é a ocorrência da injustiça, do mal moral.[3] Como em um mundo moralmente bom pode ocorrer o mal moral? Como no melhor dos mundos possíveis pode ocorrer o mal moral? Este é, em linhas gerais, o assim chamado problema do mal: como podemos conciliar a tese de que Deus é onisciente e o criador onipotente e sumamente bom do mundo e a tese de que que ocorre o mal moral no mundo? Esse problema pode ser formulado de forma epistêmica: a ocorrência do mal moral no mundo não é evidência suficiente para concluir que ele não foi criado por um ser onisciente, onipotente e sumamente bom?

Há várias maneiras de se lidar com o problema do mal. Uma delas é tradicionalmente denominada "teodicéia". Ela consiste em tentar justificar Deus ter feito o mundo como o fez, com a ocorrência da injustiça, do mal moral. Uma outra consiste em se negar uma das teses que constituem o problema: a tese da existência do mal moral.

Uma das mais tradicionais tentativa de solucionar o problema do mal, que chamarei de solução libertária, é aquela que apela para a liberdade da vontade humana, entendida a vontade livre como uma vontade não causalmente determinada.[4] Sejam quais forem as cadeias causais que chegaram até um certo instante de tempo em que um certo agente tem de escolher entre realizar ou não realizar uma determinada ação, se esse agente é livre, então não está determinado por nada, nem mesmo por estas cadeias causais, o que sua vontade escolherá. Essa solução começa por argumentar em favor da tese de que a liberdade da vontade é algo moralmente bom, que é melhor ter uma vontade livre do que ter uma vontade determinada. (Voltarei a esse ponto adiante.) Por isso, Deus foi bom ao nos criar com uma vontade livre. Todavia, e essa é a segunda tese importante para esta solução, dada a própria natureza da vontade livre, nem mesmo Deus poderia causar um ato dessa vontade. Se Deus causasse tais atos, eles seriam determinados por Deus e, portanto, segundo essa definição de "liberdade", não seriam, livres. Ora, e esta seria a solução, se Deus não pode causar os atos de uma vontade livre, então isso parece implicar que Deus não pode ser responsabilizado pelo atos dessa vontade e, portanto, nem pelas ações realizadas de acordo com os atos dessa vontade. Por exemplo: se a vontade de João é matar Pedro e João mata Pedro, então, dado que Deus não teve nenhuma participação causal nesse ato, pois não causou a vontade de João matar Pedro, Deus não é responsável pelo ato, mas sim João.

Esta tentativa de solução do problema enfrenta várias críticas. Uma delas está relacionada a uma das propriedades definitórias da perfeição de Deus: a onisciência. Se Deus é onisciente, então ele sabe tudo que ocorre no mundo. Mas ele não sabe apenas o que ocorre no presente e o que ocorreu no passado, mas também tudo que ocorrerá no futuro. Se o futuro contém alguma indeterminação, ou seja, se está indeterminado se no futuro ocorrerá tal e tal fato,  então Deus não sabe se esse fato ocorrerá e, portanto, há algo que nem Deus sabe. Mas se há algo que Deus não sabe, Deus não é onisciente. Consequentemente, se Deus é onisciente, ele sabe tudo sobre o que ocorrerá no futuro. Mas se ele sabe tudo que ocorrerá no futuro, ele sabe o que todas as suas criaturas farão no futuro, ele sabe como será o comportamento futuro de todas as suas criaturas. Dentre as suas criaturas estão os seres humanos. Portanto, quando Deus criou os seres humanos, ele sabia como cada um se comportaria no futuro. Eles sabia que os seres humanos realizariam ações moralmente más. Mas se ele sabia disso, por que nos criou do modo como somos? Por que Deus nos criou dotados de vontade livre, se sabia que essa vontade livre seria a causa de más ações? Deus não poderia ter evitado a ocorrência de más ações nos criando determinados a fazer boas ações?

O que parece problemático no apelo à vontade livre para livrar Deus da responsabilidade pelo existência do mal nesse mundo é que, aparentemente, nesse apelo, supõe-se que um agente somente é responsável pelas consequências diretas de suas ações. Uma consequência direta de uma ação é o efeito imediato que ela causa, Por exemplo: abrir uma torneira tem como efeito imediato o fluxo de água, mas um efeito mediado, uma consequência indireta, pode ser o transbordamento da água na cuba que está abaixo dela, caso o ralo esteja tampado. A ação direta que faz a água transbordar é realizada pelas forças da natureza sobre os elementos do sistema hídrico em questão. Todavia, se sabemos que o ralo da cuba está tampado e deixamos a água fluir indefinidamente, sabemos que em algum momento a água vai transbordar. Se não fazemos nada para que a o fluxo de água pare antes do transbordamento, se não fechamos a torneira antes do transbordamento, somos indiretamente responsáveis pelo transbordamento também, não apenas pelo fluxo da água. Dado que Deus é onisciente, ele conhece todas as consequências de todos os seus atos, por mais remotamente distante que tais consequências estejam no futuro. Portanto, ele é indiretamente responsável por todas essas consequências.

O criacionista poderia objetar que essa crítica falha ao não se ater ao fato que nenhuma cadeia causal iniciada por Deus inclui atos de uma vontade livre. Isso é o que faz tais atos serem livres. Esses atos somente seriam responsabilidade indireta de Deus, se estivessem incluídos em alguma cadeia causal iniciada por ele. Essa objeção, todavia, parece falhar justamente por estar baseada nessa última tese. Mesmo que Deus não cause nem diretamente, nem indiretamente os atos da vontade livre de uma pessoa, se ele sabia o que essa pessoa faria se a criasse dotada de vontade livre e mesmo assim a criou, então ele é indiretamente responsável pelo que essa pessoa faz. Sua onisciência e sua capacidade de evitar as consequências do que ele fez, de antemão conhecidas por ele, são suficientes para responsabilizá-lo.

O criacionista poderia objetar que, como já foi dito, Deus nos criou dotados de vontade livre porque a vontade livre é em si mesmo boa e Deus somente faz o que é bom e o que é o melhor. Mas essa objeção falha porque não explica como conciliar a bondade de Deus nesse ato de criação de seres humanos dotados de vontade livre e o fato de ele saber de antemão que ao menos alguns desses seres humanos realizará ações moralmente más. Como pode ser bom criar seres que se sabe que farão más ações, sendo que se poderia criá-los com incapacidade para realizar o mal? O criacionista provavelmente responderia: porque ser capaz de escolher livremente o que fazer é melhor do que ter as escolhas de ação determinadas. Mas essa resposta pressupõe um falso dilema: ou suas escolhas são livres e você é capaz de escolher realizar o mal, ou suas escolhas são todas determinadas. Trata-se de um falso dilema porque Deus poderia ter-nos feitos incapazes de escolher livremente realizar apenas más ações. Nos restaria ainda a capacidade de escolher livremente entre ações moralmente boas, ou entre ações moralmente não-más.[5]

Algumas vezes se argumenta contra essa restrição da liberdade dizendo que se uma pessoa não é capaz de escolher livremente o mal, então o que quer que ela escolha livremente, não é o bem, muito menos ainda se não se pode escolher livremente nem o mal, nem o bem. Mas não vejo nenhuma boa razão para isso. O máximo que se poderia concluir da ausência de liberdade é a ausência de responsabilidade, mas não que a ação não é moralmente boa, moralmente desejável. Como uma ação tal como, por exemplo, salvar uma criança que está em perigo de morte pode não ser boa, mesmo que não seja realizada livremente? Mais misterioso ainda, como essa ação pode não ser boa se for realizada livremente, mesmo que sejamos incapazes de realizar o mal? É importante notar que os exemplos paradigmáticos de ações moralmente boas são identificáveis independentemente de a questão sobre se somos livres ou determinados ser decidida.

Algumas vezes se argumenta que Deus permite o mal no mundo para poder testar nossa fé. Mas que necessidade um ser onisciente como Deus tem de fazer tal teste, se ele já sabe o que todos os agentes fariam em todos os mundos possíveis e, portanto, já sabe o resultado de todos os testes possíveis a esse respeito? Outras vezes se diz que Deus permite o mal no mundo para que possamos evoluir espiritualmente, resistindo ao mal e realizando o bem. Mas qual a justificação para isso? Qual mundo é melhor, um em que há criaturas ainda não evoluídas que realizar livremente o mal, ou um em que todas as criaturas já são evoluídas e só realizar livremente o bem?

A onisciência de Deus gera um outro problema para a solução libertária. O conhecimento é factivo, ou seja, necessariamente se alguém sabe que algo é o caso, então é o caso. Portanto, se Deus sabe que uma pessoa realizará uma ação moralmente má, então essa pessoa realizará uma ação moralmente má. Mas isso implica que as ações futuras dessa pessoa estão todas determinadas, pois Deus as conhece todas. Isso pode ser generalizado para todas as ações de todos os seres humanos. Portanto, a tese que Deus é onisciente parece incompatível com a tese que Deus criou os seres humanos dotados de vontade livre.

Uma outra tentativa de solucionar o problema do mal, que chamarei de holística, consiste em negar uma das teses que constituem o problema: a existência do mal.[6] Segundo essa solução, consideramos algumas ações boas e outras más porque nossas mentes são atraídas por algumas delas (as que nos favorecem) e repelidas por outras (as que nos prejudicam), não porque bem e mal sejam propriedades objetivas dessas ações. Bem e mal, desta forma, não existem objetivamente no mundo. As consideramos boas e más porque nossas mentes finitas não compreendem por que todas elas fazem parte de um todo necessário e perfeito.[7]

Um dos problemas enfrentados pela solução holística para o problema do mal é que ela fere frontalmente nossas intuições morais. Como admitir que a fome de crianças, o estupro e o latrocínio não são males? Se essas coisas não são más, disso não se segue que não devemos evitá-las e que não é proibido realizá-las? Para explicar isso, e esse é outro problema, a solução holística apela para um conceito de perfeição que está, por definição, para além da capacidade de compreensão do nossos poderes cognitivos. O mundo como todo é perfeito em um sentido que somos incapazes de compreender, se não somos capazes de compreender como isso que (de forma supostamente errônea) consideramos mal contribui para a perfeição do mundo. Apenas um intelecto infinito, seja isso o que for, poderia compreender isso.


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[1] Alguns alegam que um ser onipotente seria capaz de fazer, ou realizar, ou criar até mesmo o que é impossível. Tudo depende do sentido de "impossível". Voltarei a esse ponto mais adiante.

[2] Caso alguém acredite que há mais coisas que a totalidade das coisas do mundo natural, como por exemplo, entidades abstratas (não espaço-temporais) e estas coisas forem distintas de Deus, então, de acordo com a tese criacionista, Deus também criou essas coisas.

[3] Nesse texto não abordarei o assim chamado mal natural, com catástrofes naturais, por exemplo. Muitas pessoas que, aparentemente, não mereceriam morrer, tal como crianças muito novas, são mortas por catástrofes naturais e, por isso, tais catástrofes parecem um mal natural. A ocorrência do mal natural também coloca em dúvida a perfeição divina, tal como definida no início desse texto. Há outro fato que parecem denunciar que esse não é o melhor dos mundos possíveis: o fato de que em algumas circunstâncias devemos fazer o que gostaríamos de não ter de fazer, tal como matar e mentir. Para um um paradoxo evolvendo esses casos, ver meu "O dever de realizar o mal".

[4] Alguns textos de Santo Agostinho são um locus classicus dessa tentativa de solução. Mas o que se segue não pretende ser uma apresentação do conteúdos desses textos.

[5] Em outra postagem eu formulo um experimento mental para lançar dúvidas sobre a suposta bondade da vontade livre, tal como é concebida no problema do mal. Suponha os seguintes mundos possíveis: em um deles nossa vontade e, portanto, nossas ações são todas determinadas, não-livres, mas realizamos apenas ações moralmente boas, ou ao menos, nenhuma ação moralmente má; no outro, nossa vontade e, portanto, nossas ações são totalmente livres, não determinadas, mas realizamos apenas ações moralmente más. Qual desses mundos é moralmente melhor? Como um mundo onde se realiza apenas o mal pode ser melhor que em que se realiza apenas o bem? A próxima objeção no texto poderia ser uma tentativa de responder a essa última pergunta: em um mundo onde as ações fossem todas determinadas não haveria ação moral e, portanto, nenhuma ação seria moralmente boa.

[6] Um locus classicus dessa solução são alguns textos de Espinosa. Mas o que se segue não pretende ser uma apresentação do conteúdos desses textos.

[7] Esse todo algumas vezes é concebido como uma criação de Deus e algumas vezes como o próprio Deus (panteísmo), como é o caso no pensamento de Espinosa.


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Leituras

Michael Tooley - The problem of evil
James R. Beebe - Logical problem of evil
Philosophy Talk - The problem of Evil (podcast)


9 comentários:

  1. Deus não saber o futuro não parece ser uma restrição à sua onisciência, pois parece ser uma impossibilidade lógica conhecer o futuro.

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  2. Belo post, Alexandre.

    Fiquei com a impressão de que você considera que onisciência por si só implica conhecimento sobre o futuro. Penso que não é o caso: um ser onisciente pode não conhecer algo (contingente) sobre o futuro simplesmente porque não há coisa alguma cognoscível a esse respeito.

    Essa saída é estruturalmente semelhante a uma que se aplica no caso da onipotência: assim como ser onipotente significa poder fazer não absolutamente tudo, mas tudo o que é possível fazer, ser onisciente significa saber não absolutamente tudo, mas tudo o que é possível saber. Alguém poderia dizer que o futuro, porém, não pode ser conhecido porque não há verdades (em matéria contingente) sobre o futuro etc.

    A onisciência só se torna ponto nevrálgico para a formulação do problema do mal quando associada à imutabilidade divina. É porque Deus não pode sofrer alterações que ele não pode passar a saber agora algo que ele não sabia antes. Se ele não pode passar a saber, ou fica ignorante, ou sabe desde sempre etc.

    Forte abraço!

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    1. Oi, Mauro. Obrigado pelo comentário. Essa solução depende de duas teses interligadas: (1) o futuro é irreal e (2) as proposições sobre o futuro não são nem verdadeiras nem falsas, o que contradiz o princípio de bivalência. Implícita na conjunção dessas teses parece estar a concepção correspondencista da verdade. Tudo isso parece estar em conflito com nosso modo ordinário de falar. Quando alguém dissesse "É verdade que amanhã vou ao cinema", você deveria responder: "Não, isso talvez seja verdade amanhã. Mas hoje não é nem verdadeiro nem falso." Parece-me equivocado dizer que as proposições sobre o futuro não são nem verdadeiras nem falsas *porque* os estados de coisas que elas descrevem ainda não são o caso. (Algo análogo pode ser dito sobre as proposições sobre o passado.) Exigir que os estados de coisas que as proposições sobre o futuro descrevem sejam atualmente o caso para que sejam verdadeiras é exigir que elas sejam verdadeira como as proposições sobre o presente o são. Mas isso é absurdo. A proposição que diz que amanhã vou ao cinema *é* verdadeira se e somente *amanhã vou* ao cinema. Se amanhã eu for ao cinema, então essa proposição que enuncio hoje é verdadeira hoje. A única indeterminação nesse caso é do nosso conhecimento sobre o futuro. O que achas?

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  3. Alexandre,

    não acho que alguém fazendo uso de intuições pré-teóricas estranharia muito se descobrisse que algumas proposições sobre o futuro não são, agora, nem verdadeiras nem falsas, mas que se tornarão verdadeiras ou falsas com o caminhar dos fatos. Também não acho que estranharia se descobrisse que todas as proposições sobre o futuro já têm valor de verdade. Minha posição, portanto, é que esse ponto é realmente controverso, de modo que intuições a respeito dele não são de muita utilidade para resolver o que aqui queremos resolver, ainda que intuições a respeito de outros pontos possam ser.

    Não há, de acordo com a tese que descrevi, identificação entre o modo como proposições sobre o presente e o futuro se verificam. As sobre o futuro se verificam de acordo com o desenrolar dos fatos ou com um nexo de determinação, as sobre o presente independem, em princípio, de qualquer um desses dois elementos.

    Mas, finalmente, e esse é o ponto nevrálgico, minha sugestão de incluir a imutabilidade divina na caracterização do problema do mal foi no sentido de torná-la mais concisa e mostrar como esse problema independe do que se decida a respeito dos futuros contingentes -- ainda que o contrário não me seja claro se vale, ou seja, se o problema dos futuros contingentes independe do problema presciência divina.

    Forte abraço,
    Vitor

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    1. Vitor, minha experiência docente dando aulas para calouros sobre esse assunto me mostra o seguinte fato: alunos tendem a dizer que a afirmação "Amanhã vou ao cinema" ainda não é nem verdadeira nem falsa por uma de duas razões ou uma combinação de ambas. (1) Elas tendem a confundir o ser verdadeiro com o ser conhecido como verdadeiro e crêem que hoje não podemos saber o que acontecerá amanhã. Uma vez que se mostra a diferença entre os ser verdadeiro e o ser conhecido como verdadeiro, perde-se a motivação para negar que tal afirmação não é nem verdadeira, nem falsa. (2) Elas tendem a pensar a verdade dessa afirmação por meio de uma falsa analogia com afirmações sobre o presente: o estado de coisas que ela descreve tem de ser o caso em t para que a afirmação seja verdadeira em t. Isso é uma confusão porque a afirmação é sobre um tempo t+n, futuro. Ela é verdadeira em t se e somente se em t+n o estado de coisas que ela descreve for um fato. Uma vez explicado isso, perde-se a motivação para se dizer que tal afirmação não é nem verdadeira, nem falsa. Por outro lado, se alguém diz "Não é verdade que João vai ao cinema amanhã", elas estão querendo dizer que é falso que João vai ao cinema amanhã, não que não é nem verdadeiro, nem falso. Se tais afirmações não fossem nem verdadeiras, nem falsas, seria um erro categorial tomá-las como verdadeiras, ou seja crê-las. Mas não é assim que tratamos tai afirmações. Dizemos coisas como "Creio que amanhã choverá". O assunto é controverso, claro, senão não seria um problema filosófico. Mas não é controverso porque o modo ordinário de falar sobre o futuro seja ambíguo. Forte abraço.

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  4. Alexandre,

    minha experiência docente vai num sentido diverso: os alunos tendem a negar que toda proposição sobre o futuro é, agora, verdadeira ou falsa em função de preocupações com uma suposta antinomia entre determinismo e liberdade. Tento mostrar a eles que não é tão óbvio que há, de fato, tal antinomia, mas, como você certamente sabe, isso não é tarefa das mais fáceis. Discordo, portanto, que eliminadas as duas razões por você apontadas, elimina-se também qualquer motivação para a tese que descrevi. Confesso, aliás, que nunca um aluno meu confundiu o modo como proposições sobre o presente e o passado se fazem verdadeiras -- e já dou aula sobre presciência divina seguidamente desde 2010, quando era ainda substituto na UFRJ.

    Sobre o argumento do erro categorial, para evitá-lo basta notar ele só se aplicaria se uma proposição sobre um futuro contingente fosse, de acordo com a tese que descrevi, algo impassível de ter um valor de verdade. Não é o caso. Ela é passível de ter valor de verdade, tanto é que eventualmente vem a ter um conforme o desenrolar dos fatos.

    Diria que muitas pessoas estariam dispostas a reformular o que querem dizer com frases como a por você mencionada a partir de outras como "Ao que tudo indica, João não irá ao cinema", ao passo que poucas estariam dispostas a se comprometer com o determinismo que parece muito claramente se seguir da sua leitura daquela frase. Tenho minhas dúvidas, portanto, que parte do caráter controverso do assunto não se deva a uma ambigüidade que acomete o nosso modo ordinário de falar sobre o futuro.

    Forte abraço,
    Vitor

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    1. Vitor, quando creio que João irá ao cinema, tomo a proposição que João irá ao cinema como verdadeira. Se vc disser que crer que João irá ai cinema amanhã é crer que a proposição que João está no cinema será verdadeira amanhã, vc não fez uma análise, mas está apresentando uma crença com conteúdo distinto, dado por "a proposição que João está no cinema será verdadeira amanhã". Seja como for, essa última recoloca o problema, pois é ela verdadeira hoje?

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    2. Quanto à disposição linguística das pessoas, tudo depende de como vc introduz as teses. Eu tomo enorme cuidado para introduzir o princípio de bivalência antes de mostrar que ele parece implicar o determinismo e antes de mostrar que isso parece implicar que não somos livres. Dessa forma, todos ficam inclinados a pensar que proposições sobre o futuro são verdadeiras ou falsas.

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