Translate

terça-feira, 21 de junho de 2011

O paradoxo de Kripkenstein


Temos algumas intuições sobre as relações entre significado, compreensão, regras e verdade. Parece que o significado é normativo no seguinte sentido: se usamos uma expressão lingüística com um determinado significado, então alguns usos dessa expressão estão de acordo com esse significado e os demais estão em desacordo. É como se o significado fosse constituído por uma regra ou regras que determinam o uso correto da expressão. Compreender a expressão, nesse caso, parece implicar saber quais são essas regras. O uso correto parece, então, ser uma conseqüência desse conhecimento. No caso de um predicado, o uso correto da expressão parece ser aquele em que o usamos para dizer verdadeiramente que algo possui ou não a propriedade que ele expressa/representa. Se "tigre", por exemplo, significa tigre, então o uso primitivo correto desse predicado é o uso em que dizemos de tigres que são tigres e do que não são tigres que não são tigres. O significado de "tigre" parece determinar esses usos como corretos. E essa determinação parece ser objetiva na medida em que ela se dá independentemente da nossa vontade e do nosso conhecimento: não importa o quanto queiramos, dizer que um leopardo é um tigre (por desconhecimento) é algo que está simplesmente em desacordo com o significado usual de "tigre".

Saul Kripke, em um famoso livro sobre as reflexões de Wittgenstein sobre seguir regras[1], apresenta um paradoxo cético sobre as regras e o significado. Ele expressa dúvidas sobre se o paradoxo é mesmo de Wittgenstein. Mas ele chama atenção para o fato de ele ser importante, não importando quem o formulou originalmente. Kripke tampouco subscreve as idéias que ele expõe. Por isso, alguns comentadores forjaram o nome "Kripkenstein", para designar Wittgenstein, tal como lido por Kripke, como o autor do paradoxo, quer esse seja o Wittgenstein real, quer não seja. O próprio Kripke nunca apresentou uma solução de sua autoria para o paradoxo.


O paradoxo cético

O paradoxo é formulado inicialmente tendo como exemplo a linguagem elementar da aritmética. Mas os seus resultados podem ser generalizados para qualquer linguagem. O primeiro passo na apresentação do paradoxo consiste em chamar atenção para o fato que para toda pessoa, há o maior número com a qual ela realizou uma adição. Números maiores que esse são números com as quais ela nunca realizou adições. Essas adições nunca realizadas são ocasiões de uso dos numerais e do sinal de adição que nunca se apresentaram antes ao usuário da linguagem aritmética. Suponhamos que uma criança tenha realizado somas apenas com números menores que 57 e seu professor, no processo de ensinar adição, apresente o seguinte problema:

68+57=?

Qual seria a resposta correta? Naturalmente, responderíamos "125". E essa resposta, como Kripke chama atenção, parece correta tanto do ponto de vista metalinguístico quanto do ponto de vista aritmético. Ela tanto é o resultado de se usar "+" de acordo com o seu significado usual quanto é o resultado correto de se adicionar 68 a 57. O paradoxo cético é formulado para desafiar nossas intuições metalingüísticas. O desafio começa com a simples pergunta: como a criança sabe que, de acordo com o significado usual de "+", "125" é a resposta correta ao problema "68+57=?"? Esse problema nunca apareceu nas lições de aritmética que ela recebeu do professor. Portanto, como ela sabe que o que ela aprendeu (o significado de "+") determina essa resposta como a correta? Para que essa dúvida se torne racional, não-gratuita, Kripke introduz uma, digamos, possibilidade cética. Seja a função quadição, cujo sinal é "⊕", a seguinte função:

x⊕y=x+y, se x,y<57
x⊕y=5 em qualquer outro caso

Essa definição deixa claro que os resultados da adição e da quadição são os mesmos quando essas funções são aplicadas a números menores que 57. Eles divergem apenas quando aplicados a 57 ou números maiores que 57. Por isso, todos os usos passados da linguagem aritmética por parte da criança são compatíveis tanto com o fato de ela ter usado "+" para significar a adição quanto com o fato de ela ter usado "+" para significar a quadição. Logo, os seus usos passados não constituem o fato de ela ter usado "+" para significar a adição. Mas, então, que fato é esse? O que deveríamos dizer à criança que respondesse "5" ao problema aritmético acima e justificasse sua resposta dizendo que ela está de acordo com a função ensinada pelo professor, a saber, a quadição?

Alguém poderia pensar que se deveria responder essa criança dizendo que ela, ao responder "5", não fez o mesmo que vinha fazendo quando realizava operações com números menores que 57. Mas o apelo à identidade aqui é inútil, pois o que determina que ela continuou ou não fazendo o mesmo é a regra que ela estava seguindo. Se ela estava seguindo a regra da quadição, então ela continuou fazendo o mesmo.

Mas não bastaria explicar melhor a regra que estava sendo ensinada para corrigir essa interpretação bizarra que a criança faz da explicação inicial e "+"? Mas assim como ela deu uma interpretação bizarra da primeira explicação, ela pode dar uma interpretação bizarra para a segunda. E se uma terceira explicação for oferecida para corrigir a interpretação bizarra da segunda, está terceira também pode receber uma interpretação bizarra. E assim por diante, ad infinitum. O que parece que se deveria oferecer para parar esse regresso ao infinito de explicações é uma explicação que não pudesse ser interpretada de modo bizarro. E esta explicação parece ser a apresentação do fato que o professor significou adição por meio de "+".

Deve-se notar que o desafia cético foi inicialmente formulada em termos epistêmicos: como a criança sabe que, de acordo com o significado usual de "+", "125" é a resposta correta ao problema "68+57=?"? Mas o problema não é epistêmico, e sim metafísico. Trata-se de uma pergunta sobre se há e o que é o fato de a criança significar adição por "+", ou seja, sobre se há e quais são as condições necessárias e suficientes para que a criança tenha significado adição por meio de "+". A pergunta pode, inicialmente, ser formulada em termos epistêmicos por causa da relação entre esse fato e o conhecimento metalingüístico. Para se saber que ela significou adição por meio de "+" deve ser um fato que ela significou adição por meio de "+" e deve-se conhecer esse fato. O desafio cético consiste em perguntar que fato é esse. E vencer esse desafio consiste em descrever de modo não trivial esse fato. Se não há nenhum fato que constitui o significar adição por meio de "+", então ninguém sabe que a criança (ou qualquer pessoa) significou adição por meio de "+", nem que ela não significou adição por meio de "+". Chamemos esse tipo de fato de fato semântico. Para ser um fato semântico, um fato tem de satisfazer duas condições: devem ser normativos (devem determinar usos corretos de um expressão) e seu conhecimento deve justificar os usos de uma expressão.

Os principais candidatos a fato semântico são: os usos passados da expressão lingüística, intenções e disposições. Kripke também examina uma tentativa de se responder ao cético que se baseia na idéia de explicação pela melhor hipótese. Ele por fim examina brevemente a concepção platonista do significado. Todos esses candidatos são descartados, por diferentes razões.

O fato de que a criança significou adição por meio de "+" deve ser diferente do fato que significou quadição por meio dessa expressão. Como vimos, é por isso que os usos passados não podem constituir esse fato, pois eles são compatíveis com o fato de ela ter significado quadição.

A intenção parece mais promissora que os usos passados porque ela parece como que antecipar a realidade e, por isso, transcender os usos passados. Quando tenho a intenção de abrir a porta, o conteúdo dessa intenção determina o que deve ser feito para que a intenção se realize. Parece então que o fato de a criança ter significado adição é o fato de ela ter intencionado usar "+" de acordo com a função adição. Esse fato, em primeiro lugar, não pode conter a intenção  de realizar todos os usos possíveis de "+", pois estes são infinitos e o conteúdo de uma intenção deve ser finito. Por outro lado, ter a intenção de usar "+" de acordo com a função adição é ter a intenção de significar adição. A intenção de significar adição, em vez de quadição, não pode solucionar o problema, pois ela justamente supõe que há algo como o estado de coisas que estamos chamando significar adição. Ninguém pode ter a intenção de que o estado de coisas E se realize se E não é estado de coisas algum. Em vez de solucionar o problema, o apelo à intenção supõe que o problema está resolvido.

As disposições parecem superar a finitude dos usos passados no seguinte sentido: enquanto os usos passados e as intenções parecem determinar apenas um número finito de usos de "+", uma disposição parece poder determinar um número infinito de usos. A significação seria, pois, a disposição para dar as respostas corretas aos infinitos problemas e adição. Dessa forma, mesmo que um certo problema de adição nunca tenha sido enfrentado, a disposição pode determinar o uso correto de "+" nesse problema. Há três problemas enfrentados por essa resposta. Embora elas determinem mais usos do que aqueles realmente feitos ou conhecidos, disposições de fato não determinam um número infinito de usos de "+". Além disso, as descrições das disposições não são normativas. Do fato que alguém tem a disposição para usar uma expressão de uma certa forma não se segue que ela deva ser usada dessa forma. Por fim, prece que nós por vezes desenvolvemos disposições para cometer erros sistemáticos ao tentar seguir uma determinada regra. Mas, de acordo com o disposicionalismo semântico, estes não seriam erros, mas apenas usos da expressão de acordo com outra regra. Sendo assim, essa teoria não acomoda a intuição de que podemos cometer erros sistemáticos tentando seguir uma determinada regra.

Uma explicação pela melhor hipótese não poderia ser útil aqui porque, tal como o apelo a intenção, essa resposta supõe como explicado o que se quer explicar. Estará explicado o que é formular hipóteses sobre qual fato semântico ocorre se já estiver explicado o que é um fato semântico.

Uma teoria platonista do significado, como a de Frege, que diz que os significados (os sentidos, na terminologia de Frege) são entidades abstratas que são captadas pelos atos psicológicos de pensar e determinam objetivamente o que está de acordo com esse significado, não seria de ajuda aqui, pois o que se quer explicar é justamente o que é o ato de captar a função de adição (de significar adição), por oposição a captar a função de quadição (significar quadição).

Podemos apresentar o argumento cético resumidamente do seguinte modo:
(1) Se há o fato de que S significou adição por meio de "+", então ou eles são os usos passados que S fez de "+", ou a intenção de S de significar adição por meio de "+", ou é a disposição de S para dar as respostas corretas aos problemas de adição, ou é o fato descrito pela explicação que apela para a melhor hipótese sobre o que S significou, ou é o fato que S capta a função (uma entidade abstrata) adição.
(2) O fato de que S significou adição por meio de "+" não é nem os usos passados que S fez de "+", nem a intenção de S de significar adição por meio de "+", nem é a disposição de S para dar as respostas corretas aos problemas de adição, nem é o fato descrito pela explicação que apela para a melhor hipótese sobre o que S significou, nem é o fato que S capta a função (uma entidade abstrata) adição.
(3) Logo, não há o fato de que S significou adição por meio de "+".
Generalizando esta conclusão para qualquer expressão linguística, obtemos o paradoxo cético, que consiste em concluir (C):
(C) Não há fatos semânticos.
Essa conclusão parece ter um corolário:
(A) As palavras da nossa linguagem não têm significado, são como balbucios ininteligíveis.
E é por isso que a conclusão do argumento cético, (C), parece paradoxal. (A) é evidentemente absurda (insane, diz Kripke). Se nossas palavras não têm significado, então são ininteligíveis. Se (A) é verdadeira, portanto, tão (A) é ininteligível.

A solução cética

A solução cética desse paradoxo, oferecida por Kripkenstein consiste em aceitar (C) e mostrar que (A) não se segue de (C). Ela é uma solução cética justamente porque parte da aceitação da conclusão cética. Todas as demais tentativas de solução, por meio dos diversos candidatos a fato semântico, são tentativas de se dar uma solução direta ao paradoxo.

O que está em questão, segundo a solução cética, é o modo de explicação do significado de enunciados semânticos da forma "S significa X por meio de 'X'" (onde S é o sujeito que usa a expressão "X") e enunciados normativos da forma "S age corretamente ao usar a expressão 'X'". O paradoxo cético é formulado, segundo Kripke, sob a suposição que tal explicação deveria ser dada em termos de condições de verdade, isto é, condições necessárias e suficientes para S significar X por meio de "X". A satisfação de tais condições seria o fato semântico. Se não há condições necessárias e suficientes para os enunciados semânticos, então isso significa que não há fatos semânticos. Essa teoria do significado teria sido defendida por Wittgenstein no Tractatus. Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein teria substituído essa teoria por uma teoria das condições de asserção justificada. De acordo com essa teoria, o significado de um enunciado é determinado por condições em que sua asserção é justificada e pelo papel que a prática de asseri-los desempenha na nossa forma de vida comunitária.

Nossa comunidade tem práticas de usar expressões lingüísticas. Quando usamos enunciados semânticos da forma "S significa X por meio de 'X'" e enunciados normativos da forma "S age corretamente ao usar a expressão 'X'", o fazemos para reconhecer S, o sujeito de nossas atribuições, como alguém competente na prática de usar "X" e, assim, como um membro da nossa comunidade. Esse reconhecimento da nossa comunidade se dá depois que S passa em suficientes testes para a sua competência. S passa nos testes justamente se a comunidade está inclinada a concordar com o seu uso de "X", não porque a comunidade constata que as condições necessárias e suficientes para que os enunciados semânticos e normativos sejam verdadeiros foram satisfeitas. Dessa forma, nossas expressões têm significado na medida em que nossos enunciados semânticos e normativos têm condições de asserção justificada. Portanto, (A) é falsa, embora (C) seja verdadeira.

Não se deve pensar as condições de asserção justificada, segundo Kripkenstein, em termos das condições de verdade. Fazer isso seria pensar que "S significa X por meio de 'X'" significa o mesmo que (tem como condição necessária e suficiente) "A comunidade concorda que S significa X por meio de 'X'". Ou seja, isso seria trocar condições de verdade individualistas por condições de verdade comunitaristas.

Essa solução do paradoxo cético, segundo Kripke, e ai está uma das grandes novidades do seu livro, tem como corolário a exclusão da possibilidade de uma linguagem privada, isto é, uma linguagem que apenas o seu usuário pode compreender. Isso ocorre porque as condições de asserção justificada são comunitárias e isso tem como conseqüência que a linguagem é essencialmente social. Uma linguagem privada é essencialmente não-social. Logo, ela é impossível. Normalmente se pensa que o assim chamado argumento da linguagem privada, ou seja, o argumento contra a tese de que nossa linguagem fenomênica é privada (e, de resto, toda a nossa linguagem, se ela fosse redutível à linguagem fenomênica), localiza-se numa parte das Investigações (§§243-315) posterior às reflexões sobre seguir uma regra (§§142-242), porque ela introduz novas premissas, sem as quais aquela tese não pode ser refutada.

Há uma grande controvérsia sobre a correção exegética do livro de Kripke. Um dos principais pontos dessa controvérsia é se, para Wittgenstein, a linguagem era mesmo essencialmente social. Há quem discorde, como P.M.S Hacker, o primeiro Gordon P. Baker (que no final da vida começou a revisar sua primeira interpretação de Wittgenstein) e eu mesmo. Entre os que concordam com Kripke está Norman Malcolm, que era aluno de Wittgenstein.[2]

Seja como for, em meio à discussão da solução cética, surgiu a questão sobre se um sujeito desde sempre fisicamente isolado (um Crusoé inato) poderia criar uma linguagem. Essa é a questão sobre a possibilidade de uma linguagem solitária, distinta da questão sobre a possibilidade de uma linguagem privada. Elas são distintas, mesmo que Kripke esteja certo ao pensar que e a última questão possa ser respondida com uma resposta à primeira.

________

[1] Kripke, S. (1982) Wittgenstein on Rules and Private Language. Oxford: Blackwell.

[2] Ver esp. Baker, G.P. & Hacker, P.M.S. (1992) Wittgenstein: Rules, Grammar and Necessity. vol. 2 of an Analytical Commentary on the Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell; Baker, G.P. & Hacker, P.M.S. (1984). Scepticism, Rules and Language. Oxford: Blackwell. Hacker, P.M.S.;(1990) Wittgenstein: Meaning and Mind. Vol. 3 de An Analytical Commentary on Wittgenstein’s Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell. Malcolm, N. (1989). "Wittgenstein on Language and Rules". Philosophy, 64 pp. 5-28; Machado, A.N. (2007) Lógica e Forma de Vida. São Leopoldo: Editora Unisinos.

________


Leituras

Kripke, S. Wittgenstein on Rules and Private Language
Wittgenstein on Rules and Private Language Ultimate Homepage
Private Language (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Ludwig Wittgenstein (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Ludwig Wittgenstein (Internet Encyclopedia of Philosophy)

2 comentários:

  1. Olá prof. Alexandre!

    Meu nome é Moisés Prado, sou estudante de graduação em Filosofia na UFMG;

    Estou fazendo um trabalho sobre Wittgenstein e suas possíveis características céticas. Muito bom o seu texto, bem explicativo e didático. Os que achei sobre o tema (Kripkenstein) são todos e inglês e na maioria meio confusos, enfim...
    Sem súvidas seu texto ajudou-me nas minhas reflexões, enfatizando e/ou esclarecendo muitos pontos! Obrigado

    Continue com o trabalho e parabens pelo blog!

    PS: Se tiver alguns links interessantes de sites sobre esse tema ou uma dica de livro, se nao for incomodar, peço que me envie por e-mail. Desde já, grato.

    meu email é:
    moisespradosousa@ufmg.br

    Até mais, abç.

    ResponderExcluir
  2. Moisés: obrigado! Fico contente que minha postagem tenha sido útil.

    ResponderExcluir