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segunda-feira, 7 de junho de 2010

Determinismo

Cena do filme Blade Runner. Ao filosofar sobre determinismo e liberdade podemos nos sentir como Blade Runner, que não sabe se é um andróide pré-programado (determinado) para fazer tudo que faz, e morrer depois de um determinado tempo.

A palavra "determinismo" é geralmente usada para nomear o que eu considero um tipo de determinismo: o determinismo causal. Mas acho (juntamente com Lukasiewicz) que há outros dois tipos: o determinismo lógico e o determinismo teológico, que também são chamados de fatalismo. Essa classificação diz respeito às premissas usadas para se inferir a tese geral do determinismo, uma tese que pode ser formulada independentemente dessas premissas. O que é, pois, o determinismo em geral? O determinismo é uma tese sobre eventos, ou seja, sobre aquilo que ocorre (quando é atual) ou pode ocorrer (quando é possível) no tempo, tal como os movimentos dos astros e as ações humanas. Segundo essa tese, todos os eventos são previamente determinados a acontecer ou não acontecer. Mas o que significa dizer que eles estão previamente determinados a acontecer ou não acontecer? "Previamente" indica que essa determinação se dá antes do tempo em que o evento ocorre ou não ocorre. Mas o que é para um evento estar determinado a acontecer ou não acontecer? Nesse caso, o estar determinado a acontecer de um evento E é haver uma proposição verdadeira que diz que E acontece num tempo t. Por exemplo: se uma ida minha ao cinema está determinada para acontecer amanhã, então há uma proposição verdadeira que diz isso, a saber, a proposição que vou ao cinema amanhã. Mas se essa minha ida ao cinema estava determinada a não acontecer amanhã, então essa mesma proposição é falsa. O determinismo é, portanto, a seguinte tese:
Para todo evento E e todo tempo t, em um tempo anterior a t há uma proposição P com valor de verdade determinado que diz que E ocorre em t.
O determinismo lógico tem como premissa principal um princípio lógico: o princípio do terceiro excluído. Segundo esse princípio, para toda proposição, ou essa proposição é verdadeira ou a sua negação é verdadeira, um terceiro caso está excluído. Em símbolos: p v ~(onde "p" é uma proposição qualquer, "v" é a disjunção ou, e "~" é a negação). Dadas as seguintes equivalências na lógica clássica,
p se e somente se é verdade que p
~p se e somente se é falso que p
o que obtermos com o terceiro excluído podemos obter com o princípio de bivalência, que diz que para toda proposição (seja ela a negação de outra ou não), ou ela é verdadeira ou ela é falsa, não havendo um terceiro valor de verdade. Esses dois princípios são altamente plausíveis, intuitivos, ficando a quem duvida deles a tarefa de apresentar uma razão para tal. Mas se é o caso para toda proposição que ou ela ou sua negação é verdadeira, então isso é o caso para uma parte das proposições que nos interessam: as proposições sobre o futuro, ou seja, proposições que dizem que certos eventos vão acontecer em um tempo posterior ao tempo presente. Se somamos a isso a tese que para todo evento E e todo tempo t, há uma proposição que diz que E ocorre em t, então podemos concluir que, para todas essas proposições, ou ela ou sua negação é verdadeira. Mas isso é justamente o determinismo: para todo evento E e todo tempo t futuro há uma proposição que diz que E ocorre em t e ou essa proposição é verdadeira ou a sua negação é verdadeira.[1]

O determinismo teológico tem como premissas principais uma tese sobre Deus e uma tese epistemológica. A tese sobre Deus diz que Deus existe e é onisciente. Ser onisciente é ter a propriedade de saber tudo, ou seja, quais proposições da totalidade das proposições são verdadeiras e quais proposições da totalidade das proposições são falsas. Sendo assim, para toda proposição p, Deus sabe se p é verdadeira ou se p é falsa. A outra premissa do determinismo teológico é o que se pode chamar de princípio da factividade do conhecimento. Segundo esse princípio, somente conhecemos o que é o caso, fatos. Não podemos conhecer o que não é o caso, o que não é um fato. Dito de outra forma: conhecemos apenas proposições verdadeiras. Esse princípio pode ser formulado assim:
Se s sabe que p, então p,
onde "s" é um sujeito qualquer. Alguém poderia objetar que algumas vezes sabemos que certos estados de coisas não são o caso e que, portanto, não conhecemos apenas o que é o caso, fatos. Mas quando sabemos que não é o caso que chove, por exemplo, o que sabemos é um certo fato negativo: que é o caso que não chove. Sabemos que a negação de uma certa proposição, que também é uma proposição, é verdadeira, a saber, "Não chove". Se Deus sabe tudo, ele sabe tudo sobre o futuro, ou seja, para toda proposição p, se p é uma proposição sobe o futuro, ou Deus sabe que ou Deus sabe que ~p. Se Deus sabe que p, então, dada a factividade do conhecimento, é verdade que p. Se ele sabe que ~p, então é verdade que ~p. Logo, os eventos futuros estão determinados pelo conhecimento de Deus e a factividade do conhecimento.

O determinismo causal tem como premissas principais duas teses sobre a causalidade. A primeira premissa é o princípio de causalidade:
Todo evento tem (ao menos) uma causa.
Uma causa pode ser entendida como um evento de um certo tipo que é uma condição suficiente para a ocorrência de um outro evento de um certo tipo, que é seu efeito. Por exemplo: a combustão das lenhas em uma lareira é causa do aquecimento da sala em que a lareira se encontra. Um mesmo efeito pode ter mais de uma causa, que concorrem simultaneamente para a ocorrência do efeito. A combustão é causada pela presença de oxigênio, combustível e calor. Estas são condições necessárias para a combustão. Elas são causas da combustão porque são condições conjuntamente suficientes. E um mesmo efeito pode ter diferentes causas. A umidade em uma superfície pode ser causado pela  chuva, ou por uma mangueira. O princípio de causalidade foi por muito tempo pensado como uma verdade necessária, ou seja, como uma proposição que não pode ser falsa. A outra premissa principal do determinismo causal é o o que se pode chamar de princípio da conexão necessária:
Se A é causa de B, então, necessariamente, se A ocorre, então B também ocorre.
Ou seja, não é possível que A ocorra e B não ocorra, se A é causa de B. Agora imaginemos que a seguinte série é uma cadeia causal de eventos:
...E1(t1) -> E2(t2) -> E3(t3) -> E4(t4) -> E5(t5) -> E6(t6)...
onde "E1(t1)", por exemplo, diz que o evento E1 ocorre no instante t1 e a seta "->" indica que o evento da esquerda é causa do evento da direita. Suponhamos que t1 é um tempo no presente e os demais instantes, t2-t6, são instantes do futuro. As reticências indicam e a cadeia causal se estende para o passado e para mais adiante no futuro. Dado o princípio de causalidade, E6 não pode não ter uma causa. Sua causa é E5, que tampouco pode não não ter uma causa. Sua causa é E4, que tampouco pode não ter uma causa, e assim por diante, até chegarmos em E1, no presente. Se é assim, parece que devido ao princípio da conexão necessária necessariamente E1 causa E2, que necessariamente causa E3, que necessariamente causa E4, e assim por diante, até chegarmos a E6. Dado que a causalidade é um relação transitiva, isto é, se A é causa de B e B é causa de C, então A é causa de C, então no presente está contida a causa de quaisquer eventos da cadeia. E dado o princípio de conexão necessária, necessariamente essa causa terá esses efeitos. Portanto, no presente já é o caso que E6, por exemplo, ocorrerá em t6. Há uma proposição verdadeira que diz que E6 ocorrerá em t6. E isso pode ser generalizado para todas as proposições sobre o futuro. Todas elas já tê um valor de verdade determinado pelo princípio de causalidade e pelo princípio de conexão necessária.

Deve-se notar que as razões apresentadas para se crer que o futuro está determinado valem também para o presente em relação a algum ponto do passado e para esse ponto do passado em relação a um passado mais remoto, e assim por diante. O presente já estava determinado no passado e o passado já estava determinado em um passado mais remoto. Logo, essas razões para o determinismo dos eventos futuros podem ser generalizadas para todos os eventos, de tal forma que todos eles ocorrem de forma determinada. Se o determinismo é verdadeiro, então só há um futuro, que necessariamente acontecerá, não há futuros contingentes.

Como vimos na postagem sobre liberdade e responsabilidade moral, o determinismo parece em franca contradição com a crença de que somos moralmente responsáveis e, portanto, metafisicamente livres. Mas assim como temos boas razões para acreditar no determinismo, temos bons motivos para acreditar que somos moralmente responsáveis. Por isso, o conflito entre determinismo e responsabilidade moral parece ser uma espécie de antinomia de certas intuições fundamentais que temos.
______

* Agradeço ao meu amigo, Prof Eros de Carvalho, por contribuir com valiosos comentários críticos a uma primeira versão desse texto.

Clique para ampliar e ler.
[1] Eros de Carvalho me lembrou que alguém poderia pensar que a proposição que amanhã eu vou ao cinema não é nem verdadeira nem falsa porque o evento que ela descreve ainda não aconteceu. Mas isso parece ser uma ilusão causada por uma falsa analogia entre proposições sobre o presente e proposições sobre o futuro. Para que uma proposição sobre um evento presente seja verdadeira, esse evento deve ocorrer no presente. Mas se exigíssemos o mesmo de proposições sobre o futuro, então as estaríamos tratando como proposições sobre o presente. Para que seja verdade que eu vou ao cinema amanhã, o evento de eu ir ao cinema deve ocorrer amanhã. Se ele vai ocorrer amanhã, então é verdade que eu vou ao cinema amanhã. (Ver A "irrealidade" do passado)

8 comentários:

  1. o determinismo causal pode sim ser verdadeiro sem acarretar perda da liberdade e responsabilidade moral. ele explica os eventos passados, tal como aconteceram. mas para eventos futuros. a realidade é fruto de multiplas causas e a interação delas, pode gerar mais de uma possibilidade de efeito.
    A preposição(uma das possibilidades) só vai ser dita verdadeira no tempo presente em que acontecer.
    e durante a sequencia de eventos que tornam uma preposição realidade, somos nós (ou consciencia, observador,deus...) que estamos escolhendo.

    o determinismo está nas possibilidades de escolha que possuimos e não naquelas que de fato escolhemos. assim há margem pra mudanças, para liberdade e responsabilidade moral.

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  2. Suellen: Se o determinismo é verdadeiro, então não há mais de uma possibilidade de ação. Em nada do que dizes vejo uma refutação dessa condicional.

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    1. Olá, Alexandre. Muito legal a sua publicação e meus parabéns por compartilhar o seu conhecimento de uma maneira tão acessível a nós que não somos tão ligados a filosofia como você.

      Não sei se pelo tempo da publicação você ainda está apto a respondê-la, mas não custa tentar. Gostaria de saber a sua opinião através de três perguntas:

      1. Como você refutaria o determinismo?

      Pois gastei algumas horas pensando e isso me parece ser algo, em minha ignorância, irrefutável.

      2. Saber disso muda alguma coisa?

      Veja, sabemos dessa informação agora, e talvez saibamos inclusive da nossa não liberdade e que a escolha é ilusória. Mas, ter esse conhecimento muda algo ainda que o destino já esteja escrito e "a escrever"?

      3. Isso importa?

      Ok, isso é uma ilusão e não existe livre arbítrio algum. Porém, no que isso importa uma vez que a própria ilusão é para nós a realidade?

      Perceba que não defendo nenhuma posição, apenas gostaria de saber o que você pensa sobre isso mesmo. =)

      Grande abraço e um ótimo fim de semana.

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    2. Poderia dizer-me sua posição acerca da última pergunta (se a tem)?

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    3. Não sou especialista no assunto. Mas tendo a ser um compatibilista, ou seja, alguém que acredita que o determinismo e a liberdade não são incompatíveis, desde que a liberdade seja entendida de modo apropriado. Por isso, não vejo necessidade de refutar o determinismo.

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  3. Creio que a física de não equilíbrio, discutida muito claramente por Ilya Prigogine em "O fim das certezas", começa a dissolver esse problema à medida que os sistemas físicos no universo começam a ser pensados como sistemas estocásticos e, assim, o conflito entre liberdade moral e determinismo pode deixar de existir. Eu gostaria muito de encontrar um texto filosófico que estivesse atualizado sobre a matéria do determinismo em um cenário da física de não equilíbrio. Porque, o que é o determinismo, se não a mecânica newtoniana?

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    1. Essa postagem não visa ser exaustiva, mas apenas apresentar brevemente os três grupos de razões para se acreditar no determinismo. Além disso, vc lida apenas com o determinimo causal. Masmo que haja um argumento contra este, restam ainda os outros dois.

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    2. Sem dúvida professor. Me refiro ao determinismo causal. Minha intenção não foi críticar o texto, apenas expor uma ideia presente que possuo sobre o tema (...) Ademais, me pergunto se não existem pontos de tangência entre os três determinismos apresentados, de tal maneira que a solução de um implica na solução do próximo, à moda das demonstrações matemáticas.

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