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segunda-feira, 26 de abril de 2010

Mentira verdadeira

Podemos mentir e dizer a verdade no mesmo ato lingüístico? Suponhamos que alguém coloque um documento numa certa gaveta e que outra pessoa, João, testemunhe isso. Depois disso, sem que João saiba, alguém retira o documento da gaveta. Outra pessoa, Pedro, pergunta a João se o tal documento está na referida gaveta e João pensa: vou mentir e dizer que ele não está na gaveta. E João diz isso. João está ou não está mentindo? Ele não está sendo sincero. Mas tampouco ele está dizendo algo falso.*

Suponhamos que tenhamos testemunhado todos os eventos acima, exceto a retirada do documento da gaveta. Além disso, suponhamos que João nos tenha dito que, embora soubesse que o documento está na gaveta, ele iria dizer que ele não estava lá. Obviamente, João está enganado ao pensar que sabe onde está o documento. Mas não sabemos disso. O que diríamos que ele iria fazer? É claro que diríamos que ele iria mentir. Mas suponhamos que, depois desses acontecimentos, descubramos que o documento, afinal, não estava na gaveta. O que diríamos? Que essa foi a descoberta que João não mentiu? Parece que tem algo de errado em se dizer isso. Mas também sentimos que há algo de errado em se dizer que alguém disse a verdade ao mentir. Por que? Porque na grande maioria dos casos em que queremos dizer uma falsidade, em que queremos mentir, dizemos algo falso. Mas, assim como podemos dizer algo falso quando somos sinceros, isto é, quando dizemos algo que esperamos que seja verdadeiro, com a intenção de informar, podemos dizer uma verdade quando mentimos, isto é, quando dizemos algo que esperamos que seja falso, com a intenção de enganar. A mentira, portanto, assim como a sinceridade, não exige nem conhecimento, nem verdade, mas apenas crença. Assim como quando juramos dizer a verdade em um tribunal, estamos jurando ser sinceros, quando juramos não dizer falsidades, estamos jurando não mentir. Ninguém nos acusa de sermos mentirosos apenas com base no fato de dizermos algo falso, assim como ninguém nos elogia por sermos sinceros apenas com base no fato de dizermos uma verdade. Em ambos os casos a intenção também conta. Somos sinceros mesmo quando dizemos algo falso querendo dizer algo verdadeiro, assim como somos mentirosos mesmo quando dizemos algo verdadeiro querendo dizer algo falso.

Em suma, mentir é o contrário da sinceridade, ou seja, é asserir a (ou fingir a asserção da) proposição contraditória da proposição acreditada. (Ver importante comentário de Eros de Carvalho.)
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* Uma versão desse exemplo me foi apresentado por Vitor Mauro Bragança em uma conversa sobre esse tema.

11 comentários:

  1. Vale lembrar que a intenção de quem mente é dupla: (a) informar a alguém algo errado sobre o mundo e (b) informar a alguém algo errado sobre as suas próprias crenças. Quem mente quer que outro acredite que ele tem uma crença que, na verdade, não tem. Claro, dependendo do contexto, a ênfase da mentira pode recair sobre a intenção (a) ou (b), mas ambas estão presentes na mentira. Assim, quem mente tenta enganar de dois modos ao mesmo tempo.

    Dá também para pensar que uma pessoa minta dizendo a verdade no que diz respeito à (b) se imaginarmos os casos de auto-engano. Fulano acredita que seja uma pessoa enfadonha. Mas, num contexto social, mente se descrevendo como alguém legal. Mas, de fato, Fulano é legal, a maior parte das pessoas que vem a conhecê-lo se afeiçoam a ele. Podemos imaginar que só agora, nesta situação, Fulano avalia melhor a evidência passada e presente e percebe que, na verdade, é uma pessoa legal e passa a crer que ele mesmo é uma pessoa legal. Ainda assim, ele mentiu, com a dupla intenção referida de enganar. Tanto quis informar algo que ele supunha falso: Eu, fulano, sou legal; quanto quis informar uma crença que ele não tinha: Eu me acho legal.

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  2. Eros: Concordo inteiramente contigo. Não há como mentir sobre como as coisas são sem ao mesmo tempo enganar sobre suas próprias crenças. Mas também vale lembrar que aquele que mente que está chovendo, por exemplo, não está falando sobre suas crenças, mas sobre o tempo. Ele não engana sobre suas crenças porque disse que possui uma crença que não possui, mas porque finge possuí-la.

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  3. Brilliant!

    A sinceridade e a mentira até exigem o conhecimento do agente cognitivo mentiroso e sincero, mas exigem apenas o conhecimento de seu próprio sistema de crenças, que é falível como todo sistema de crença.

    Outros exemplos em que podemos mentir e dizer a verdade ao mesmo tempo surgem com o uso de implicaturas conversacionais e convencionais, introduzidas por Paul Grice. Suponha que alguém me pergunte aonde está o João. Eu sei que ele está no bar, mas com a intenção de enganar meu interlocutor, eu digo: "Se ele não está na biblioteca, ele está no bar". Se aceitarmos que as condições de verdade da condicional material sejam as mesmas das condicionais indicativas que usamos no dia a dia, o que eu é disse é verdadeiro, porque o consequente da condicional é verdadeiro, ele está no bar. Mas ao usar essa condicional eu sugiro conversacionalmente que o João pode estar na biblioteca e que essa é a primeira opção ao procurá-lo, mas eu sei que o João é desses preguiçosos que nunca vão à biblioteca e só ficam nos bares da vida. Em suma: a condicional é verdadeira e portanto eu disse uma verdade, mas a implicatura conversacional é falsa e portanto eu minto (engano) meu interlocutor, ao fazê-lo pensar que é provável encontrar o João ao procurá-lo na biblioteca.

    Ou exemplo. Suponha que alguém me pergunte se considere o Carlos um filósofo promissor. Eu digo: "Bem, ele é muito esforçado". Meu interlocutor irá pensar que o Carlos não tem talento algum, mas é esforçado. Contudo, eu sei que o Carlos é talentoso e quero ludibriar o meu interlocutor dizendo uma verdade. Novamente eu sugiro por implicatura conversacional a falsidade de que o Carlos é apenas esforçado, o que é falso.

    Em ambos os casos o interlocutor irá inferir as respectivas implicaturas porque ele supõe que eu esteja sendo cooperativo na conversação, i.e, ele supõe que eu esteja respeitando máximas como: seja tão informativo quanto requerido, não diga coisas em que não acredita, etc. Se no primeiro exemplo eu afirmei a condicional apenas porque acredito que o João está no bar, eu deveria ter dito simplesmente que o João está no bar, pois isto seria mais informativo.

    Repare que o mesmo vale para implicaturas convencionais, i.e, que dependem do significado convencional atribuído ás palavras. Se digo de uma aluna inteligente "Aquela aluna é loira, mas é inteligente". Eu disse literalmente uma verdade, mas sugeri convencionalmente (pelo uso do "mas") que é improvável que as loiras sejam inteligentes. Ora, mas eu não acredito nisso, embora possa transmitir essa implicatura falsa, ou seja, minto novamente.

    Se "mentir é o contrário da sinceridade, ou seja, é asserir a (ou fingir a asserção da) proposição contraditória da proposição acreditada" um meio de constatar essa mentira é a obediência das máximas conversacionais.

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  4. Alexandre e Eros, e quando minto afirmando não saber qual a soma dos ângulos internos de um triângulo retângulo? Desse modo, estaria mentindo apenas acerca de minha crença, sem que eu estivesse informando a alguém algo errado sobre o mundo. Neste caso, poderia ocorrer apenas a proposição (b) do comentário de Eros?

    Saudações filosóficas e parabéns pelo excelente blog!

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  5. Matheus: Obrigado! Tu dizes: "A sinceridade e a mentira até exigem o conhecimento do agente cognitivo mentiroso e sincero, mas exigem apenas o conhecimento de seu próprio sistema de crenças, que é falível como todo sistema de crença." Mas o ponto era: se minto que p, não preciso saber que p.

    Quanto aos teus exemplos, ali também a proposição mentida não é a mesma que é verdadeira, concordas? E minha pergunta inicial era se eu poderia mentir que p sendo p verdadeira.

    Mas teus exemplos são bem instrutivos sobre como a mentira e a verdade podem se relacionar.

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  6. Coisa Pensante: Se tu acreditas saber qual é a soma, então mentes sobre teu estado cognitivo e engana sobre tua crença acerca desse estado cognitivo.

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  7. Oi Alexandre

    Estava tão empolgado em relacionar a sua observação sobre a mentira com as implicaturas que desviei do assunto. Eu concordo com sua tese: se minto que p, não preciso saber que p e p pode ser verdadeira. A condição necessária é que eu acredite que não-P seja verdadeira e P seja falsa, e tenha a intenção de enganar o meu interlocutor com base nessa crença, mesmo que eu esteja enganado sobre qual é o valor de verdade de P.


    Eu concordo que nos exemplos de implicatura que mencionei a proposição mentida não é a mesma que é verdadeira, mas ambas parecem fazer parte do mesmo ato linguístico. Assim seria possível mentir e dizer a verdade no mesmo ato linguístico. Eu poderia fazer uma modificação nos exemplos para que a proposição utilizada para mentir fosse verdadeira.Por exemplo, eu digo de uma aluna inteligente "Ela é loira, mas é inteligente". Suponhamos que eu esteja a sugerir conversacionalmente que é improvável que as loiras não sejam inteligentes, mas não acredito nisso, eu quero mentir para o meu interlocutor. Acontece que por razões biológicas desconhecidas, essa sugestão é de fato verdadeira, mesmo que eu não saiba disso, i.e, a maioria das loiras são burras. Nesse caso temos o mesmo fenômeno que você descreve: minto que P, mesmo sem saber que P.

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  8. Matheus: Entendo teu exemplo modificado. O sujeito S diz que p, p tem (e S abe que tem) a implicatura q, mas S não acredita que q. Todavia, me corrija se eu estiver enganado, "a proposição utilizada para mentir" é p. O ato lingüístico é enunciar p. A implicatura não é um ato lingüístico, mas algo que resulta, pelas regras do jogo, de um ato lingüístico. Concorda? E p é verdadeira? S acredita que p?

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  9. Alexandre: eu já suspeitava que afirmar que P, sugerindo algo mais não constituem um único ato linguístico. Ainda assim eu insisti, porque estava tentando imaginar algum meio de contra-argumentar objeções como essas que você apresentou, mas não consegui encontrar uma resposta plausível que seja.

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  10. se desconhecemos a verdade do conteúdo da preposição (isto é, não sabemos que o afirmamos é verdade ou não) que forma de intenção há na mentira e como entende-la dentro da responsabilidade moral?
    no exemplo dado pelo professor: se mentir é o contrário da sinceridade, afirmar a preposição contraditória da preposição acreditada, este acreditar, envolve que nível de conhecimento dos fatos em questão? e que tipo de punibilidade? e mais importante ainda, que grau de certeza sobre o que se afirma? só a crença basta?
    se sim, então a mentira estaria ligada estritamente à intencionalidade do interlocutor?
    então, me parece que o conteúdo da mentira seria, do ponto de vista moral, irrelevante (e por conseguinte, suas circunstâncias também...?) e o que está em jogo é somente a intenção de quem mente.
    e sobre o auto-engano: se, 'a maior parte das pessoas' pensa que Fulano é legal, disso inferimos que 'Fulano é legal' é verdade? a verdade desta afirmação depende somente de uma espécie de 'crença da maior parte'. e se a maior parte está enganada? afinal, o que é o engano com relação à idéia de mentira?
    enfim, assunto interessante e profícuo.

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  11. Paulo: Não é preposição, mas proposição, com "o". O ponto é: mentir é ter a intenção de enganar, tanto sobre o valor de verdade de uma certa proposição quanto sobre as próprias crenças. Quer o sujeito diga algo verdadeiro, quer diga algo falso, ele tem a intenção de enganar, e isso por si só já é passível de reprovação moral.

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