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terça-feira, 16 de junho de 2009

Razões para duvidar e o ônus da prova

Quando filosofamos, temos que começar de algum ponto. Temos que iniciar a nossas investigações filosóficas a partir de algumas afirmações que tomamos como verdadeiras. --- Ou isso não é necessário? Podemos iniciar o filosofar duvidando de tudo? -- Se a dúvida for gratuita, baseada em nada, então sim, podemos. Podemos duvidar gratuitamente da existência do mundo exterior, das afirmações matemáticas e até dos princípios lógicos. Ocorre que tais dúvidas gratuitas dificilmente poderiam ser o início do filosofar. Seria mais adequado chamar isso de o início do enlouquecer. Os hospitais psiquiátricos estão cheios de gente que tem essas dúvidas gratuitas. --- É claro que se queremos duvidar de forma racional, não podemos duvidar daquelas condições mínimas da racionalidade. E a filosofia não deveria ter um início racional, mesmo que dubitante? Não podemos iniciar o filosofar duvidando que a filosofia deve ter um início racional, exceto se essa dúvida for gratuita, pois se, no início do filosofar, oferecermos razões para duvidar que a filosofia deveria ter um início racional, estamos iniciando o filosofar racionalmente e, por isso, estamos fazendo exatamente aquilo que duvidamos que deveríamos fazer. Se resolvemos iniciar o filosofar de modo irracional, então essa decisão não pode ser racional, baseada em razões. Portanto, mesmo que queiramos iniciar o filosofar de modo dubitante, se esse início for racional, nele não podemos duvidar das condições mínimas da racionalidade. Mas quais são essas condições? --- No curso da argumentação anterior, o princípio de não-contradição foi suposto. No início da investigação filosófica ele se apresenta com uma característica importante: ele é intuitivo para a maioria de nós, ou seja, para a maioria de nós ele parece verdadeiro à primeira vista (e é mesmo difícil conceber a possibilidade de que seja falso). --- Mas às vezes o que é intuitivo não se revela falso? --- Sim, isso às vezes acontece. Mas se devemos começar tomando algo como verdadeiro, o que devemos fazer? Devemos tomar como verdadeiro o que parece falso à maioria de nós? Devemos começar pelo contra-intuitivo? --- Bem - talvez se pense - não necessariamente pelo contra-intuitivo, mas pelo que está bem justificado. --- Mas como podemos saber que algo está bem justificado? Não vamos ter que ter razões para isso? E essas razões vão ser o que, se não forem o que nos parece verdadeiro à primeira vista? É claro que isso que nos parece verdadeiro à primeira vista, o que nos é intuitivo, pode se revelar falso no decorrer de nossa investigação. Mas se temos que começar de algum lugar e esse lugar deve ser racional, então o que parece racional é começar pelo que nos parece verdadeiro à primeira vista. --- Mas e se alguém duvidar disso que nos é intuitivo? --- Bem, então essa pessoa terá o ônus da prova. Ou seja, aquele que acredita no que nos é intuitivo no início da investigação não tem a obrigação epistêmica de mostrar que isso que é intuitivo é de fato verdadeiro. Quem tem essa obrigação é aquele que duvida. Se sua dúvida não é gratuita, ele deve fornecer razões para duvidar. Não necessariamente razões para crer que o que é intuitivo é falso, mas no mínimo para crer que há uma boa chance, uma grande probabilidade, de que seja falso. E a simples possibilidade de podermos estar enganados não é por si só uma boa razão para duvidar, pois ninguém duvida que os prédios vão cair apenas porque é possível que os engenheiros tenham errado os cálculos estruturais. [1] --- Mas qual a razão para acreditar que a possibilidade de que estejamos enganados não é uma razão suficiente para duvidar? --- Essa pergunta, nesse contexto, já viola o princípio do ônus da prova. O que se deveria perguntar aqui é: qual a razão para se acreditar que a possibilidade de que estejamos enganados é uma razão suficiente para duvidar? E não nos esqueçamos que estamos falando aqui de razão para duvidar, pois se trata de uma dúvida racional. --- Mas é sempre fácil determinar quem tem o ônus da prova? --- Não, nem sempre é fácil e, em alguns casos, não é possível. Mas disso não se segue que em alguns casos paradigmáticos isso não possa ser feito.
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[1] Muito mais pode ser dito sobre essa possibilidade de estarmos enganados. Mas por economia deixo isso para outra ocasião. Mais sobre isso, ver meus "Nota sobre a Dúvida Cartesiana" e "Conhecimento, Verdade e Significado".

2 comentários:

  1. Considero que o início de uma discussão filosófica se dá em um questionamento, isto é, na colocação de um problema e não em uma afirmação, resposta ou solução. A partir desse questionamento são propostas respostas ou explicações que serão colocadas em dúvida para que evidências e provas sejam buscadas para embasá-las ou rejeitá-las até que se possa achar alguma resposta que resista a esses embates.
    Quanto ao ônus da prova entendo que sempre se possam encontrar, para cada questão, respostas mínimas, no sentido da Navalha de Ockham, que seriam admitidas sem prova, enquanto as demais requereriam prova. Por exemplo, sobre a existência de Deus a resposta mínima é a de que não exista, pois sua existência não é uma evidência sensorial. Então não é preciso provar que Deus não existe e sim que, porventura, exista.
    Já, por exemplo, sobre a existência do Sol, a priori se considera que exista, pois há evidências sensoriais nesse sentido. A sua hipotética inexistência é que teria que ser provada.
    Um pouco mais: Seria preciso provar que "todo homem é mortal"? Sim, pois, como ainda não morreram todos os homens (apenas 95% dos que já nasceram), pode-se considerar que não é evidente que todos sejam mortais, mas que há 5% de probabilidade de que algum seja imortal.

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  2. Wolf: Concordo que devemos começar com um problema. Minha reflexão era sobre o que devemos fazer quando encontramos o problema.

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