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quinta-feira, 19 de junho de 2008
História da filosofia, exegese e filosofia
Quando eu era estudante de graduação, eu ouvia algumas vezes dizer que Hegel tinha dito que o real é racional. Eu não entendia direito o que se queria dizer com esta frase: "O real é racional"; não entendia que tese se estava atribuindo a Hegel. E não tinha coragem de perguntar, dado o modo como se tratava essa afirmação: como se fosse uma afirmação cujo significado era óbvio. Minha perplexidade aumentava quando ouvia alguns dizerem que Hegel, na verdade, não tinha dito isso. Resultado: eu não tinha inclinação nem para concordar nem para discordar dessa afirmação, quer ela tivesse sido feita por Hegel, quer não.
Depois de anos, esse episódio serve agora para que eu ilustre em minhas aulas algo que penso sobre a natureza da filosofia: ela não se identifica nem com a história da filosofia, nem com a exegese de textos filosóficos. A reflexão que se segue é, em grande medida, simplificadora. Digo isso prevendo objeções óbvias. Sei que as coisas são mais complexas do que como as descrevo. Mas creio que essa complexidade não afeta o essencial do que digo. Algumas das minhas afirmações são deliberadamente vagas. Mas também creio que isso não impede que sejam compreensíveis; ao menos não para um início de conversa.
Diante da frase atribuída a Hegel podemos perguntar:
(1) Hegel realmente afirmou que o real é racional?
Para responder a essa pergunta, precisamos empregar técnicas de historiador, examinando as evidências históricas, pois essa é uma pergunta histórica. Precisamos ler os textos de Hegel para ver se a frase "O real é racional" se encontra em ao menos um deles. Bem, não essa frase, mas uma frase em alemão que possa ser traduzida por essa frase do português. É claro que, para traduzir as frases de Hegel do alemão para o português, temos que considerar o contexto da sua obra em que as frases em alemão aparecem e, para isso, temos que interpretar as frases em alemão de Hegel. Para contornar essa dificuldade, suponhamos que Hegel tenha escrito em português ou que a pergunta (1) tenha sido feita em alemão. Nesse caso, se houvesse uma digitalização das obras completas de Hegel, a pergunta poderia ser respondida por meio de um mecanismo de busca.
Algumas perguntas da historia da filosofia, poucas, é verdade, são desse tipo: puramente históricas, não exigindo nenhuma habilidade filosófica (sobre o que é habilidade filosófica, falarei mais adiante). A maioria das perguntas importantes de história da filosofia estão entrelaçadas com perguntas exegéticas (sobre interpretação). Por isso podemos chamar esse tipo de pergunta de pergunta histórico-exegética. Mas embora os dois tipos de perguntas de fato apareçam entrelaçadas na maioria dos casos, podemos distinguir claramente o conceito de questão histórica do conceito de questão exegética. Reconhecer uma distinção não significa sustentar que o que é distinto é independente.
Um exemplo de pergunta exegética seria justamente uma que poderíamos fazer após decidirmos que Hegel de fato disse (suponhamos) que o real é racional:
(2) O que Hegel quis dizer com "O real é racional"?
Para responder a essa pergunta, temos que examinar a obra de Hegel e determinar como essa afirmação se insere nela (mas isso não implica que devamos ler tudo o que ele disse para fazer isso). Para isso temos que, digamos, filosofar junto com Hegel, isto é, temos que tentar pensar as coisas do modo como Hegel as pensou. Isso, obviamente, exige habilidade filosófica. É por isso que a qualidade de um bom trabalho histórico-exegético em filosofia é proporcional à habilidade filosófica do historiador-exegeta. Não que grandes filósofos não possam cometer grandes erros histórico-exegéticos. O que estou dizendo é que a falta de habilidade filosófica resulta sempre em um trabalho histórico-exegético de qualidade ruim. Parte da razão disso, a parte principal, diz respeito ao princípio de caridade, sobre o qual falarei mais adiante.
Perguntas sobre a influência de um determinado pensador sobre outro também são histórico-exegéticas. Mas há perguntas mais sofisticadas que (1) que têm um caráter mais histórico do que exegético, tal como as perguntas sobre o contexto da história das idéias em que uma determinada filosofia foi elaborada. Por exemplo: qual era o estado da física à época que Descartes escreveu as Meditações Metafísicas?
(Um exemplo de grande trabalho histórico-exegético, por causa do seu teor filosófico, é o livro Wittgenstein On Rules and Private Language, de Saul Kripke. Há uma grande controvérsia sobre se ele interpretou Wittgenstein corretamente ou não. E há inclusive um controvérsia sobre se os críticos da sua interpretação interpretaram o livro de Kripke corretamente. Mas isso não tira o mérito do seu livro, que, certo ou errado, ajudou a melhorar o nível do debate exegético sobre a obra de Wittgenstein. Uma das razões do livro de Kripke ser bom é que ele é um grande filósofo. (Cf. Paradoxos filosóficos e história da filosofia.))
Depois de ter respondido às perguntas (1) e (2), uma terceira pergunta pode ainda ficar sem reposta:
(3) Devo concordar com Hegel e pensar que o real é racional?
Essa pergunta pede por uma justificação da afirmação. Para respondê-la, não basta saber qual justificação Hegel ofereceu para a sua afirmação, se ofereceu alguma. É necessário submeter essa justificação a uma avaliação crítica (cf. Crítica (avaliação criteriosa)) E mesmo que (por hipótese) Hegel não tenha oferecido uma justificação, podemos pensar por conta própria se ela poderia ser justificada. Creio que esse é o tipo de pergunta filosófica propriamente dita. Lidar com perguntas filosóficas propriamente ditas exige autonomia de pensamento, exige a ousadia que Kant pedia aos esclarecidos.
Não quero afirmar que a tarefa de se responder às perguntas filosóficas possa ser feita independentemente de se responder perguntas histórico exegéticas. Apenas acho que há duas maneiras de se conceber a relação entre perguntas histórico-exegéticas e perguntas filosóficas e uma delas é a maneira filosófica propriamente dita. Pode-se lidar com as perguntas filosóficas como um meio para se lidar com as perguntas histórico-exegéticas ou pode-se lidar com as perguntas histórico-exegéticas como um meio para se lidar com as perguntas filosóficas. É a segunda maneira de relacionar esses dois tipos de perguntas que eu diria que é a maneira filosófica. A primeira é a maneira histórico-exegética. Alguém que toma as perguntas histórico-exegéticas como um fim, vai lidar com as perguntas filosóficas apenas na medida em que é necessário para lidar com as perguntas histórico-exegéticas. Vai procurar lidar com a pergunta sobre a natureza do real, para ficar com o mesmo exemplo, apenas na medida em que isso é necessário para entender o que Hegel quis dizer com a tese que o real é racional. Talvez examine o que os contemporâneos de Hegel objetaram a essa tese e quais respostas Hegel ofereceu a essas objeções, mas não porque esteja interessado em tomar uma posição em relação à questão filosófica. Mas aquele que toma as perguntas histórico-exegéticas como um meio para lidar com as perguntas filosóficas vai lidar com perguntas histórico-exegéticas apenas na medida em que são necessárias para lidar com perguntas filosóficas.
Mas por que seria necessário lidar com perguntas histórico-exegéticas para se lidar com perguntas filosóficas? Eu costumo explicar isso dizendo que fazer filosofia é entrar em um debate sobre questões filosóficas que já está em andamento. Não faz sentido ficarmos arrombando portas abertas (embora seja melhor arrombar portas abertas do que não arrombar porta alguma). Para entrarmos no debate que está em andamento, temos que estudar a história desse debate e interpretar o que os interlocutores disseram até então. E isso exige, é claro, lidar com perguntas histórico-exegéticas.
Não vejo nada de errado em se colocar as perguntas histórico-exegéticas como fim. Não acho que essa seja um atividade inferior em qualquer sentido à atividade que coloca as perguntas filosóficas como fim. Eu apenas acho que são atividades diferentes. Elas são complementares. O modo como a atividade histórico-exegética auxilia o debate filosófico eu já expliquei esquematicamente no parágrafo anterior. Mas como o debate filosófico pode auxiliar a atividade histórico-exegética? Isso tem a ver com o principio de caridade, mencionado acima, que é um princípio exegético. O princípio diz, grosso modo, que devemos atribuir àquele que interpretamos a máxima racionalidade que as evidências textuais permitem. A máxima racionalidade implica que as afirmações interpretadas têm sentido, não contém erros lógicos, são verdadeiras e justificadas. Mas para aplicar esse principio, temos que ter, ao menos em alguns momentos, alguma opinião sobre quais afirmações têm sentido, quais princípios lógicos são corretos, quais afirmações são verdadeiras e quais são justificadas. E isso exige lidar com questões filosóficas propriamente ditas. Por isso, um trabalho histórico-exegético não pode se furtar totalmente de lidar, em primeira pessoa, com questões filosóficas propriamente ditas.
(Para o que Descartes pensa sobre esse tópico, cf. Descartes: Sobre a filosofia e a história da filosofia.)
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Imagem: Detalhe de A Escola de Atenas, de Rafael. Embora seja um lugar comum, sempre achei essa pintura uma representação muito boa do que penso serem aspectos essenciais da filosofia. No centro, aparecem Platão e Aristóteles debatendo. Eles seguram livros. Mas são seus livros, onde expõem e defendem as suas filosofias (Platão segura o Timeu e Aristóteles segura o que parece ser a Ética Nicomaquéia).
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Oi Alexandre
ResponderExcluirBelo texto. Quanto a "Escola de Atenas", acho que Platão está apontando para alguma Forma!
Giovani: Obrigado! Te arriscas a conjecturar sobre qual Forma ele aponta? -- Escrevi essa "coisa básica" ai para futuras referências em minhas aulas. Mas, obviamente, ela não está livre de controvérsia, principalmente aqui no Brasil... Abraço.
ResponderExcluirGiovani: Aristóteles parece estar fazendo um gesto em direção ao chão, ao mundo empírico...
ResponderExcluirSaudações professor alexandre! tomei conhecimento de seu Blog recentemente mas ainda não havia lido nenhum de seus artigos. Felizmente esse primeiro contato se deu com esse seu (belíssimo, diga-se de passagem) Texto. Sou calouro no curso de filosofia da UFG e aluno do professor André Porto. Sempre me indaguei, até mesmo antes de ingressar no curso, sobre o sentido da necessidade de se "fazer um curso de filosofia" para ser um filósofo. A questão da histórica-Exegética filosófica, se bem compreendi, como meio ou fim, exige refexões filosóficas, ao passo que o nos coloca em contato com os problemas tratados anteriormente, nos obrigando a filosofar para compreender as idéias expostas e/ou obtermos idéias próprias. Dúvidas que ainda me restam á parte, foi muito esclarecedor pra mim,que embora continue achando que conhecer todo o trabalho filosófico já produzido não necessariamente produz um filósofo, passo a pensar que estar em contato com problematizações exintentes e mesmo respostas propostas e partir para suas análizes, nos leva a quetionamentos e até a resultados próprios. Com as devidas desculpas por más interpretações que fiz, ou por só expor meros "devaneios de calouro", muito obrigado pela atenção, ABRAÇO!
ResponderExcluirLafaiete: Obrigado pela visita e pelo comentário. Que bom que o texto ajudou a formares teus pensamentos sobre sobre o assunto. Tu dizes "...conhecer todo o trabalho filosófico já produzido não necessariamente produz um filósofo". Concordo, se acrescentares as ressalvas que fiz sobre a necessidade de habilidade filosófica para um bom trabalho histórico-exegético. Mas uma outra pergunta também é importante: é possível ser um filósofo hoje sem conhecer ao menos parte da história da filosofia?
ResponderExcluirOi Alexandre. Meio absurdo só ter tomado conhecimento do teu blog agora. Às vezes acho que me mudo do real hehe. Bene, mas vim aqui porque talvez o ponto de partida de tuas colocações precise de uma observaçãozinha, que me atrevo a cometer. Não penso que a filosofia seja exegese stricto sensu, tampouco uma tarefa de historiador. Contudo, as escolhas estilísticas do idealismo alemão - que recorre, em alguns casos, a palavras alemães que não eram mais do uso cotidiano -, terminaram por oferecer mais dificuldade ao que se apresenta, prima facie, como um obscurantismo trololó. A confusão entre real e efetivo é a mais comum das consequências da interpretação do termo wirklichkeit. "O que é efetivo é racional" é o que Hegel realmente escreveu. O que ele quer dizer com isso, além da circularidade óbvia, é que a efetividade comporta ou contém o critério para o que, NO PRESENTE - que se entende e que se enuncia, que para Hegel são um só e o mesmo -, apresenta-se como racional. Uma variante, se assim se pode dizer, dessa dificuldade, também ocorre na distinção entre aparência e aparição. O efetivo é uma aparição, no presente, da razão na história. É importante dizer que 1. a identificação do real com o racional não é consequência necessária nem é convertível, tout court, na identificação entre o efetivo e o racional. Talvez seja interessante lembrar da afirmação de Hegel de que a China tinha 2mil anos de civilização e nenhum de história... HOHO. Apesar da circularidade aparente - e não de todo ausente -, a única coisa que Hegel realmente acrescenta ao transcendentalismo da unidade da apercepção transcendental é mesmo a disposição de uma historicidade das formas, das normas e dos critérios. O preço que se paga é o da teleologia, certo. Mas não parece tão absurdo quando se tenta entender sem a condição de refém do estilo alheio, sobretudo porque o pacote teleológico não é privilégio hegeliano. Boas fontes para ler essas coisas em linguagem e esclarecimento de gente: 1. o prefácio a Filosofia do Direito: pequena maravilha em que se pode aprender muito sobre o modo como Hegel leu Platão, do qual, aliás deriva seu uso da noção de efetividade; 2. a extraordinária e vigorosa tese de doutoramento de Paulo Arantes Hegel e a ordem do tempo - na segunda metade dessa tese constam as considerações incômodas de Hegel sobre história e historicidade do conceito; 3. a tese de doutorado de troisième cicle de Béatrice Longuenesse: "Hegel e a Crítica da Metafísica", para mim o mais esclarecedor texto relativo ao legado hegeliano. Abração e parabéns pelo blog. Espero poder encarar Kripke, no mais, dia desses. K
ResponderExcluirKatarina: Obrigado pela visita e pela explicação sobre a famosa frase de Hegel. Fico aliviado por saber que se tratava mesmo de uma questão exegética complicada e que, por isso, minha falta de entendimento não se devia tanto a uma limitação da minha parte. -- Obrigado também pelas indicações bibliográficas. Volte sempre!
ResponderExcluirSendo estudante de filosofia de São Lázaro, fiquei feliz em ler este texto. É comum ficarmos feliz ao encontrar algum pensamento nosso compartilhado por outra pessoa... Explico: muito recentemente, num pequeno texto publicado em meu recém nascido blog, exponho brevemente minha opinião sobre estas duas vertentes do ensino da filosofia na Academia. E falo da minha experiência, ao longo de 3 semestres de graduação, de grande prazer no encontro com brilhantes textos filosóficos e referências históricas, mas também de profunda frustração por -quase- não ter encontrado, em sala de aula, espaço para ser aprendiz filósofa... Levo a situação a modo da sabedoria oriental, sempre trazendo a tona a lembrança de um conto em que o mestre quer ensinar a paciência e a humildade a seu discípulo! Ou seja, quem sabe um dia acontece...
ResponderExcluirChristine: Obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirdiante meus estudos em simbolismo
ResponderExcluirme focalizei por algum tempo em descrever
alguns detalhes que nunca havia notado
fora as referencias de que platão aponta com uma das mãos para cima, para o ideal, para o céu. com outra segura o livro TIMEO onde expõe a primazia das ideias sobre realidade sensivel....aristoteles ao contrario aponta para baixo a realidade empirica para aterra. segura olivro ETICA no qual apresenta os principios orientadores para apratica humana rumo á felicidade..colocações estas de leonardo boff em seu livro "a aguia e a galinha"pg96
minhas observações vejo um ponto interesante platão note que esta caminhando descalço e aristoteles esta parado calçado....