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terça-feira, 28 de novembro de 2006

Crítica

Immanuel Kant
Sei que, para muitos, o que se segue é chuva no molhado.

A maioria das nossas palavras é ambígua, ou seja, é usada com significados diferentes (e às vezes, infelizmente, na mesma ocasião). Um bom exemplo é a palavra ‘crítica’, que algumas vezes sai da boca de alguns alunos de filosofia como uma espada que é desembainhada em nome do bem e contra o mal. Algumas vezes ela é usada quase como uma espécie de nome do seu próprio pensamento, como se quem pensasse de forma diferente o fizesse por não ser “crítico”. Mas esse é um uso meramente retórico, ideológico, propagandista de ‘crítica’, que, portanto, em nada contribui para o diálogo racional entre interlocutores interessados na (busca da) verdade. Nele está implícita a idéia que criticar é apontar defeitos, é ser contestador, pois aquele que se arroga ser critico (nesse sentido) quer dizer que consegue ver os defeitos no modo de pensar daqueles que não concordam com ele. (Isso também está ligado à idéia que ser crítico é ser contra o status quo ou contra a tradição. Voltarei a esse ponto em um instante.)

Bem, de fato usamos a palavra ‘crítica’ algumas vezes assim, como quando dizemos “Quando conversar com ele, não seja muito crítico” querendo dizer “Quando conversar com ele, evite ficar apontando para os seus defeitos”, ou quando dizemos “Ele só sabe criticar, mas não oferece nenhuma solução”. Mas também usamos a palavra crítica em outro sentido, como quando dizemos “Aquela peça de teatro recebeu uma crítica favorável”. É claro que “crítica favorável” significa em parte elogio: é um elogio qualificado, e sua qualidade consiste em ser feito com base em uma avaliação criteriosa, baseada em critérios aceitáveis no que concerne àquilo que está sendo avaliado. O que nos leva a dizer que existe crítica em ambos os contextos? É justamente a presença de uma avaliação criteriosa. Ser crítico é, em geral, ser alguém que avalia o que avalia de maneira criteriosa, conforme os critérios aceitáveis no que concerne àquilo que está sendo avaliado. Ser mais ou menos crítico, nesse sentido, não é apontar mais ou menos defeitos, mas é fazer mais ou menos avaliações baseadas em critérios. Também nesse sentido, alguém pode ao mesmo tempo dizer que algo possui um defeito e não estar sendo crítico, se aquilo que diz não se baseia em critérios aceitáveis concernentes àquilo que está sendo avaliado. Ou seja, é possível apontar defeitos de uma maneira não-crítica.

É claro que a crítica mais notável, que mais chama atenção, é aquela que aponta defeitos, a crítica desfavorável. Por isso, é natural querer exibir habilidade para a crítica apontando defeitos. Mas podemos exibir a mesma dose de habilidade para a crítica defendendo uma opinião de críticas desfavoráveis.[1]

Para abordar um exemplo polêmico, já ouvi alunos dizendo algo como “Temos que criticar o capitalismo!”. “Temos que criticar”? Bem, se isso significa que devemos avaliar criteriosamente o capitalismo, então eu concordo inteiramente. Mas o chamado para avaliar criteriosamente algo deixa em aberto o resultado da avaliação. Um dos resultados possíveis, no presente caso, é que uma forma ou outra de capitalismo seja a melhor dentre as opções de que dispomos. Antes de realizar a avaliação, devemos contar com a possibilidade de encontrar esse resultado. Se o brado “Temos que criticar o capitalismo!” parte do pressuposto que o capitalismo não é a melhor das opções disponíveis, então o brado significa “Temos que mostrar que há alternativas melhores ao capitalismo”. Mas é claro que isso pressupõe uma avaliação criteriosa das opções e, portanto, não é um convite à realização dessa avaliação, mas um convite à sua propaganda. E, correndo o risco de dizer o desnecessário, mostrar que não é a melhor opção não é o mesmo que apontar os defeitos dessa opção, pois talvez as demais tenham defeitos piores. Ou seja, quem atende ao pedido para avaliar criteriosamente o capitalismo deve contar com a possibilidade de o resultado ser que o capitalismo é, dos males, o menor. Por isso, defender o capitalismo de críticas não implica não ser crítico. Logo, se o status quo é capitalista, defender a manutenção do status quo não implica não ser crítico. Enfim, “ser crítico” não é sinônimo de “ser de esquerda” ou “ser socialista” ou “ser anti-capitalista”, etc., mesmo que haja boas razões para se rejeitar o capitalismo em função de uma alternativa melhor.

Um outro tipo de exemplo do que disse acima às vezes surge em discussões entre alunos sobre o método em filosofia. Alguns costumam dizer que o método de um filósofo é mais crítico do que o de outro porque o leva a discordar mais da tradição filosófica que o precedeu. Mas, novamente, esse não é sentido mais amplo e original de ‘crítica’. Nesse sentido mais amplo, é possível defender a tradição de forma crítica. Mas mesmo que seja verdade que, no sentido mais estreito de ‘crítica’, um filósofo seja menos crítico que outro em relação à tradição, ou seja, aponte menos defeitos na tradição que outro filósofo, disso não se segue que sua avaliação da tradição seja menos criteriosa. Ser menos crítico, nesse sentido mais estreito, não é um defeito. Um defeito seria avaliar de forma não criteriosa, seja defendendo, seja apontando defeitos.

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[1] Um exemplo clássico de uso da palavra "crítica" no sentido de  "avaliação criteriosa" é o uso que Kant faz ao denominar sua investigação sobre os poderes e limites da razão pura como crítica da razão pura.

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