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domingo, 18 de maio de 2008

Sobre o sentido da(s) frase(s) do mentiroso


Um "diálogo" entre Putnam e Kripke.
Qualquer tratamento do conceito de verdade deve circunscrever esse paradoxo [Kripke, S. (1975) "Outline of a Theory of Truth", The Journal of Philosophy, vol. 72, n. 19, p. 692]
Nossa primeira tendência é desqualificar a sentença do mentiroso como algo sem sentido, no sentido literal de "sem sentido". Mas se há algo que podemos objetar a respeito da sentença, está longe de ser óbvio o que seja, pois a sentença é correta gramaticalmente -- ela não é nem vaga nem ambígua, e nem comete nenhum equívoco categorial: sentenças estão entre as coisas que podem ser portadores de verdade. [...] Assim, parece que não se pode objetar nada à sentença do mentiroso, por mais estranha que ela seja. Poder-se-ia, claro, tentar mostrar que objeções contra a sentença do mentiroso, mas isso teria de ser mostrado, e essa tarefa tem se revelado extremamente complicada de se fazer. [Kirkham, Richard. (2003) Teorias da Verdade. São Leopoldo: Unisinos, p. 376 (A tradução não é minha. Eu não traduziria "sentence" por "sentença".)]
Considere as frases (1) e (2):

(1) A frase (2) é verdadeira.
(2) A frase (1) é falsa.

Portanto, se a frase (1) for verdadeira, então ela é falsa. Essa é uma formulação não auto-referencial do paradoxo do mentiroso, que algumas vezes é usada, como Kirkham o faz na parte omitida do trecho citado acima, para mostrar que o paradoxo do mentiroso não é um paradoxo sobre frases auto-referentes, isto é, frases que dizem algo sobre si mesmas, tal como

(3) A frase (3) é falsa.

Mas seja qual for a formulação do paradoxo, auto-referencial ou não, há algo que permanece o mesmo em todas elas: elas, aparentemente, nomeiam um portador de verdade e predicam falsidade dele (leiam essa última afirmação de modo frouxo, como uma observação gramatical, não como uma análise lógica). Mas -- e esse é o ponto importante -- não está determinado o que o portador de verdade está dizendo. Para que uma frase da forma

"P" é falsa

faça sentido, diga alguma coisa, "P" deve ter sentido, deve dizer alguma coisa. Mas o que está sendo dito por (1)? Em (1) ocorre um aparente nome de um suposto portador de verdade, "A frase (2)", e se predica a verdade desse portador. Portanto, o que (1) diz depende do que esse portador de verdade, a frase (2), diz. Mas o que a frase (2) diz? Em (2) ocorre o aparente nome de um outro portador de verdade, "A frase (1)", e se predica a falsidade desse portador. Portanto, o que (2) diz depende do que esse portador de verdade, a frase (1), diz. E voltamos à estaca zero. Portanto, parece não haver nenhum genuíno portador de verdade sendo referido nas frases (1) e (2) por meio de "A frase (2)" e "A frase (1)" e, por isso, as frases (1) e (2) não parecem ser genuínos portadores de verdade. Uma reflexão análoga, mutatis mutandis, pode ser feita sobre a frase (3).

As frases (1), (2) e (3) realmente estão em boa ordem gramatical, sua sintaxe é correta e não são nem ambíguas nem vagas. Mas elas não são nem ambíguas nem vagas porque para ter essas qualidades, uma frase precisa ter sentido. E o que tentei fazer é apresentar razões para se pensar que, contrário às aparências, (1), (2) e (3) não têm sentido.

(Veja postagem posterior: Mentiroso Quantificado)

3 comentários:

  1. Alexandre,
    gostei bastante do seu texto e da forma como o problema foi apresentado. Eu tenho certa simpatia com as apresentações criativas do paradoxo do mentiroso. Não conhecia essa versão do paradoxo transcrita no diálogo entre Putnam e Kripke. Bem criativa!
    Embora eu ache divertidas tais apresentações, as respostas dadas ao problema certamente são mais interessantes do que as maneiras de apresentá-lo. Considero que um tratamento filosófico do Mentiroso deve evidenciar a causa do paradoxo ou, como é dito por aí, apresentar um diagnóstico genuíno ao problema. Muitos teóricos afirmam que a sentença do mentiroso não tem sentido. Mas, por que não tem sentido? Ao ler o seu texto, Alexandre, lembrei-me da solução apresentada por Kripke, no artigo Outline of a theory of truth. Se minha leitura está correta, sua resposta dada ao problema vai ao encontro das intuições da solução de Kripke.
    Na perspectiva kripkeana, o problema do mentiroso não está na autorreferência, seja ela direta ou indireta (como também foi observado por você em sua postagem). Kripke lida com o problema através do conceito de fundamentação (groundedness) que, em minha opinião, assemelha-se com suas considerações postadas aqui no blog. Para tentar deixar um pouco mais clara essa minha suspeita, talvez seja interessante expor, em linhas gerais, as intuições subjacentes ao conceito de fundamentação.
    Suponhamos uma situação na qual temos a tarefa de explicar a palavra ‘verdadeiro’ para um determinado indivíduo que não a entende. A fim de cumprir nossa tarefa, estabelecemos como princípio explicativo que só estamos autorizados a afirmar que uma dada sentença é verdadeira precisamente enquanto estamos em posição de afirmá-la. Como base nessa explicação, nosso suposto aprendiz terá condições de entender o que significa atribuir verdade a uma determinada sentença. Desse modo, se tal indivíduo está em posição de afirmar uma sentença como, por exemplo, (4) “A neve é branca” ele pode, então, como base no princípio explicativo exposto acima, atribuir verdade a (4). Todavia, o predicado-verdade se aplica em vários tipos de sentenças, inclusive em sentenças em que já ocorre tal predicado. Assim, não conhecendo a palavra ‘verdade’, o suposto indivíduo pode ainda ficar confuso em atribuir um valor de verdade a sentenças que contém a palavra ‘verdade’. Diante disso, Kripke diz que o sujeito pode ir gradualmente tornando clara a noção de verdade. Tomemos como exemplo uma sentença envolvendo a noção de verdade, que ainda não está clara ao suposto aprendiz:
    (5) “Alguma sentença impressa no artigo ‘A concepção semântica da verdade’ é verdadeira”.
    Assim, se (5) não está clara, tampouco estará:
    (6) “(5) é verdadeira”.
    Agora, se o nosso aprendiz está disposto a afirmar (4), como supomos acima; ele poderá afirmar que (4) é verdadeira. Sendo (4) uma das sentenças impressa no artigo ‘A concepção semântica da verdade’, ele já estará em condições de afirmar (5) e, por conseguinte, poderá também afirmar (6). Tendo isso em vista, o aprendiz eventualmente será capaz de atribuir ‘verdade’ a mais e mais enunciados. Com base nisso, Kripke delineia a noção intuitiva de fundamentação (groundedness) nos seguintes termos: “nossa sugestão é que sentenças fundadas podem ser caracterizadas como aquelas que eventualmente tomam um valor de verdade nesse processo” (KRIPKE, Saul. ‘Outline of theory of truth’ In The journal of philosophy, Vol. 72, Issue 19, Seventy-Second Annual Meeting American Philosophical Association. 1975 p. 701).
    (Continua...)

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  2. Pelo que entendi do seu texto, Alexandre, a condição de verdade de (1) depende do que é dito em (2); da mesma forma, a condição de verdade de (2) depende do que é dito em (1). Assim, entraríamos em um processo em que ficaríamos passando de (1) para (2) e de (2) para (1) indefinidamente sem, no entanto, encontrar algo para assentarmos o predicado verdade. Ou seja, (1) e (2) não tomariam um valor de verdade nesse processo e, portanto, seriam infundadas (usando o conceito kripkeano). Assim sendo, o problema com essa situação é que não há uma “base” (ground) para assentarmos o valor-verdade. Seguindo essa intuição, parece que ao atribuímos um valor de verdade à uma determinada sentença precisamos ter uma “base” para predicarmos tal valor. Caso não tenhamos, é como se jogássemos um valor de verdade no vazio. Ocorre algo semelhante com a sentença do narrador de verdade (Truth teller): (7) Esta sentença é verdadeira. Ou, colocando em duas sentenças como foi feito com o Mentiroso:
    (8) A sentença (9) é verdadeira.
    (9) A sentença (8) é verdadeira.
    Tais sentenças também seriam infundadas. Embora a sentença do narrador de verdade compartilhe com a sentença do mentiroso a característica de ser infundada, não achamos contradição no Narrador de verdade. Todavia, ainda que de maneira arbitrária, podemos atribuir um valor de verdade a (7) sem cair em contradição; o que, definitivamente, não é possível em (3) esta sentença é falsa. Dadas essas intuições, Kripke constrói um rico formalismo matemático e defini de maneira precisa os conceitos de sentença fundada e de sentença paradoxal.
    Para finalizar, queria deixar claro que meu objetivo com este comentário não era ser completo e, muito menos, preciso na apresentação da teoria de Kripke. Além de todo aparato formal, vários conceitos crucias na teoria de Kripke (como o de ponto fixo, por exemplo) ficaram de fora. O objetivo era apenas expor as intuições do conceito fundamentação que, em minha leitura, traz intuições semelhantes das que foram colocadas no texto do blog. Parabéns pelo blog, Alexandre. Um blog muito estimulante!

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  3. Ederson, muito obrigado pelo seu comentário do qual gostei muito. Eu acho que seu paralelo é correto, até onde posso entender o que vc expôs sobre Kripke. Eu li o artigo do Kripke há muito tempo. Teu comentário me fez querer relê-lo com cuidado. Abraço!

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