Translate

Mostrando postagens com marcador Vontade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Vontade. Mostrar todas as postagens

sábado, 2 de junho de 2018

O problema do mal moral


O texto que se segue é uma breve introdução ao assunto. Para uma leitura mais aprofundada, ver textos recomendados no final e os textos recomendados por esses.

Algumas vezes Deus (a divindade máxima das religiões judaico-cristãs) é definido como o ser perfeito. Essa perfeição, por sua vez, às vezes é concebida como contendo ao menos estas três propriedades: a onisciência, a onipotência e a suma bondade. A onisciência é a propriedade de um ser cognitivo (aquele que á capaz de conhecer) segundo qual esse ser sabe tudo há para saber, conhece tudo que há para ser conhecido. A onipotência, por sua vez, é a propriedade de um agente (aquele que á capaz de agir) segundo a qual esse agente é capaz de fazer, ou realizar, ou criar tudo que é possível ser feito, realizado ou criado.[1] Por fim, a suma bondade é a propriedade de um agente segundo a qual tudo o que esse agente faz, realiza e cria não apenas é bom, no sentido moral de "bom", mas é o melhor, no mesmo sentido.

Nas religiões judaico-cristãs, Deus é concebido como o criador de tudo mais que há, ou seja, do mundo natural como um todo (o mundo estudado pelas ciências naturais), onde há estrelas, planetas, seres vivos, etc.[2] Se Deus é mesmo sumamente bom, então esse mundo que ele criou deve ser não apenas bom, mas o melhor dos mundos possíveis. Todavia, há alguns fatos que ocorrem nesse mundo que desafiam a tese de que ele é bom e mais ainda a tese de que ele é o melhor dos mundos possíveis. Se esse for o caso, então Deus não é sumamente bom. Que fatos são esses? São vários: a miséria, a fome, o homicídio, o estupro, a exploração, a guerra, a escravidão, o racismo, o machismo, a homofobia, os maus-tratos a crianças e idosos, etc. (eu incluiria o especismo nessa lista). O que todos esses fatos têm em comum? Todos são, em maior ou menor grau, realizações particulares da injustiça, do mal moral. Ao menos isso é o que parece à maioria de nós. Talvez você discorde de alguns itens dessa lista. Eles são apenas exemplos de injustiças, do mal moral. Para efeitos de argumento, no decorrer do texto, foque naquele que você acredita ser o exemplo paradigmático de mal moral. O fato geral que ocorre nesse mundo parece que desafia a tese de que esse mundo é bom ou de que é o melhor dos mundos possíveis é a ocorrência da injustiça, do mal moral.[3] Como em um mundo moralmente bom pode ocorrer o mal moral? Como no melhor dos mundos possíveis pode ocorrer o mal moral? Este é, em linhas gerais, o assim chamado problema do mal: como podemos conciliar a tese de que Deus é onisciente e o criador onipotente e sumamente bom do mundo e a tese de que que ocorre o mal moral no mundo? Esse problema pode ser formulado de forma epistêmica: a ocorrência do mal moral no mundo não é evidência suficiente para concluir que ele não foi criado por um ser onisciente, onipotente e sumamente bom?

Há várias maneiras de se lidar com o problema do mal. Uma delas é tradicionalmente denominada "teodicéia". Ela consiste em tentar justificar Deus ter feito o mundo como o fez, com a ocorrência da injustiça, do mal moral. Uma outra consiste em se negar uma das teses que constituem o problema: a tese da existência do mal moral.

Uma das mais tradicionais tentativa de solucionar o problema do mal, que chamarei de solução libertária, é aquela que apela para a liberdade da vontade humana, entendida a vontade livre como uma vontade não causalmente determinada.[4] Sejam quais forem as cadeias causais que chegaram até um certo instante de tempo em que um certo agente tem de escolher entre realizar ou não realizar uma determinada ação, se esse agente é livre, então não está determinado por nada, nem mesmo por estas cadeias causais, o que sua vontade escolherá. Essa solução começa por argumentar em favor da tese de que a liberdade da vontade é algo moralmente bom, que é melhor ter uma vontade livre do que ter uma vontade determinada. (Voltarei a esse ponto adiante.) Por isso, Deus foi bom ao nos criar com uma vontade livre. Todavia, e essa é a segunda tese importante para esta solução, dada a própria natureza da vontade livre, nem mesmo Deus poderia causar um ato dessa vontade. Se Deus causasse tais atos, eles seriam determinados por Deus e, portanto, segundo essa definição de "liberdade", não seriam, livres. Ora, e esta seria a solução, se Deus não pode causar os atos de uma vontade livre, então isso parece implicar que Deus não pode ser responsabilizado pelo atos dessa vontade e, portanto, nem pelas ações realizadas de acordo com os atos dessa vontade. Por exemplo: se a vontade de João é matar Pedro e João mata Pedro, então, dado que Deus não teve nenhuma participação causal nesse ato, pois não causou a vontade de João matar Pedro, Deus não é responsável pelo ato, mas sim João.

Esta tentativa de solução do problema enfrenta várias críticas. Uma delas está relacionada a uma das propriedades definitórias da perfeição de Deus: a onisciência. Se Deus é onisciente, então ele sabe tudo que ocorre no mundo. Mas ele não sabe apenas o que ocorre no presente e o que ocorreu no passado, mas também tudo que ocorrerá no futuro. Se o futuro contém alguma indeterminação, ou seja, se está indeterminado se no futuro ocorrerá tal e tal fato,  então Deus não sabe se esse fato ocorrerá e, portanto, há algo que nem Deus sabe. Mas se há algo que Deus não sabe, Deus não é onisciente. Consequentemente, se Deus é onisciente, ele sabe tudo sobre o que ocorrerá no futuro. Mas se ele sabe tudo que ocorrerá no futuro, ele sabe o que todas as suas criaturas farão no futuro, ele sabe como será o comportamento futuro de todas as suas criaturas. Dentre as suas criaturas estão os seres humanos. Portanto, quando Deus criou os seres humanos, ele sabia como cada um se comportaria no futuro. Eles sabia que os seres humanos realizariam ações moralmente más. Mas se ele sabia disso, por que nos criou do modo como somos? Por que Deus nos criou dotados de vontade livre, se sabia que essa vontade livre seria a causa de más ações? Deus não poderia ter evitado a ocorrência de más ações nos criando determinados a fazer boas ações?

O que parece problemático no apelo à vontade livre para livrar Deus da responsabilidade pelo existência do mal nesse mundo é que, aparentemente, nesse apelo, supõe-se que um agente somente é responsável pelas consequências diretas de suas ações. Uma consequência direta de uma ação é o efeito imediato que ela causa, Por exemplo: abrir uma torneira tem como efeito imediato o fluxo de água, mas um efeito mediado, uma consequência indireta, pode ser o transbordamento da água na cuba que está abaixo dela, caso o ralo esteja tampado. A ação direta que faz a água transbordar é realizada pelas forças da natureza sobre os elementos do sistema hídrico em questão. Todavia, se sabemos que o ralo da cuba está tampado e deixamos a água fluir indefinidamente, sabemos que em algum momento a água vai transbordar. Se não fazemos nada para que a o fluxo de água pare antes do transbordamento, se não fechamos a torneira antes do transbordamento, somos indiretamente responsáveis pelo transbordamento também, não apenas pelo fluxo da água. Dado que Deus é onisciente, ele conhece todas as consequências de todos os seus atos, por mais remotamente distante que tais consequências estejam no futuro. Portanto, ele é indiretamente responsável por todas essas consequências.

O criacionista poderia objetar que essa crítica falha ao não se ater ao fato que nenhuma cadeia causal iniciada por Deus inclui atos de uma vontade livre. Isso é o que faz tais atos serem livres. Esses atos somente seriam responsabilidade indireta de Deus, se estivessem incluídos em alguma cadeia causal iniciada por ele. Essa objeção, todavia, parece falhar justamente por estar baseada nessa última tese. Mesmo que Deus não cause nem diretamente, nem indiretamente os atos da vontade livre de uma pessoa, se ele sabia o que essa pessoa faria se a criasse dotada de vontade livre e mesmo assim a criou, então ele é indiretamente responsável pelo que essa pessoa faz. Sua onisciência e sua capacidade de evitar as consequências do que ele fez, de antemão conhecidas por ele, são suficientes para responsabilizá-lo.

O criacionista poderia objetar que, como já foi dito, Deus nos criou dotados de vontade livre porque a vontade livre é em si mesmo boa e Deus somente faz o que é bom e o que é o melhor. Mas essa objeção falha porque não explica como conciliar a bondade de Deus nesse ato de criação de seres humanos dotados de vontade livre e o fato de ele saber de antemão que ao menos alguns desses seres humanos realizará ações moralmente más. Como pode ser bom criar seres que se sabe que farão más ações, sendo que se poderia criá-los com incapacidade para realizar o mal? O criacionista provavelmente responderia: porque ser capaz de escolher livremente o que fazer é melhor do que ter as escolhas de ação determinadas. Mas essa resposta pressupõe um falso dilema: ou suas escolhas são livres e você é capaz de escolher realizar o mal, ou suas escolhas são todas determinadas. Trata-se de um falso dilema porque Deus poderia ter-nos feitos incapazes de escolher livremente realizar apenas más ações. Nos restaria ainda a capacidade de escolher livremente entre ações moralmente boas, ou entre ações moralmente não-más.[5]

Algumas vezes se argumenta contra essa restrição da liberdade dizendo que se uma pessoa não é capaz de escolher livremente o mal, então o que quer que ela escolha livremente, não é o bem, muito menos ainda se não se pode escolher livremente nem o mal, nem o bem. Mas não vejo nenhuma boa razão para isso. O máximo que se poderia concluir da ausência de liberdade é a ausência de responsabilidade, mas não que a ação não é moralmente boa, moralmente desejável. Como uma ação tal como, por exemplo, salvar uma criança que está em perigo de morte pode não ser boa, mesmo que não seja realizada livremente? Mais misterioso ainda, como essa ação pode não ser boa se for realizada livremente, mesmo que sejamos incapazes de realizar o mal? É importante notar que os exemplos paradigmáticos de ações moralmente boas são identificáveis independentemente de a questão sobre se somos livres ou determinados ser decidida.

Algumas vezes se argumenta que Deus permite o mal no mundo para poder testar nossa fé. Mas que necessidade um ser onisciente como Deus tem de fazer tal teste, se ele já sabe o que todos os agentes fariam em todos os mundos possíveis e, portanto, já sabe o resultado de todos os testes possíveis a esse respeito? Outras vezes se diz que Deus permite o mal no mundo para que possamos evoluir espiritualmente, resistindo ao mal e realizando o bem. Mas qual a justificação para isso? Qual mundo é melhor, um em que há criaturas ainda não evoluídas que realizar livremente o mal, ou um em que todas as criaturas já são evoluídas e só realizar livremente o bem?

A onisciência de Deus gera um outro problema para a solução libertária. O conhecimento é factivo, ou seja, necessariamente se alguém sabe que algo é o caso, então é o caso. Portanto, se Deus sabe que uma pessoa realizará uma ação moralmente má, então essa pessoa realizará uma ação moralmente má. Mas isso implica que as ações futuras dessa pessoa estão todas determinadas, pois Deus as conhece todas. Isso pode ser generalizado para todas as ações de todos os seres humanos. Portanto, a tese que Deus é onisciente parece incompatível com a tese que Deus criou os seres humanos dotados de vontade livre.

Uma outra tentativa de solucionar o problema do mal, que chamarei de holística, consiste em negar uma das teses que constituem o problema: a existência do mal.[6] Segundo essa solução, consideramos algumas ações boas e outras más porque nossas mentes são atraídas por algumas delas (as que nos favorecem) e repelidas por outras (as que nos prejudicam), não porque bem e mal sejam propriedades objetivas dessas ações. Bem e mal, desta forma, não existem objetivamente no mundo. As consideramos boas e más porque nossas mentes finitas não compreendem por que todas elas fazem parte de um todo necessário e perfeito.[7]

Um dos problemas enfrentados pela solução holística para o problema do mal é que ela fere frontalmente nossas intuições morais. Como admitir que a fome de crianças, o estupro e o latrocínio não são males? Se essas coisas não são más, disso não se segue que não devemos evitá-las e que não é proibido realizá-las? Para explicar isso, e esse é outro problema, a solução holística apela para um conceito de perfeição que está, por definição, para além da capacidade de compreensão do nossos poderes cognitivos. O mundo como todo é perfeito em um sentido que somos incapazes de compreender, se não somos capazes de compreender como isso que (de forma supostamente errônea) consideramos mal contribui para a perfeição do mundo. Apenas um intelecto infinito, seja isso o que for, poderia compreender isso.


_______________

[1] Alguns alegam que um ser onipotente seria capaz de fazer, ou realizar, ou criar até mesmo o que é impossível. Tudo depende do sentido de "impossível". Voltarei a esse ponto mais adiante.

[2] Caso alguém acredite que há mais coisas que a totalidade das coisas do mundo natural, como por exemplo, entidades abstratas (não espaço-temporais) e estas coisas forem distintas de Deus, então, de acordo com a tese criacionista, Deus também criou essas coisas.

[3] Nesse texto não abordarei o assim chamado mal natural, com catástrofes naturais, por exemplo. Muitas pessoas que, aparentemente, não mereceriam morrer, tal como crianças muito novas, são mortas por catástrofes naturais e, por isso, tais catástrofes parecem um mal natural. A ocorrência do mal natural também coloca em dúvida a perfeição divina, tal como definida no início desse texto. Há outro fato que parecem denunciar que esse não é o melhor dos mundos possíveis: o fato de que em algumas circunstâncias devemos fazer o que gostaríamos de não ter de fazer, tal como matar e mentir. Para um um paradoxo evolvendo esses casos, ver meu "O dever de realizar o mal".

[4] Alguns textos de Santo Agostinho são um locus classicus dessa tentativa de solução. Mas o que se segue não pretende ser uma apresentação do conteúdos desses textos.

[5] Em outra postagem eu formulo um experimento mental para lançar dúvidas sobre a suposta bondade da vontade livre, tal como é concebida no problema do mal. Suponha os seguintes mundos possíveis: em um deles nossa vontade e, portanto, nossas ações são todas determinadas, não-livres, mas realizamos apenas ações moralmente boas, ou ao menos, nenhuma ação moralmente má; no outro, nossa vontade e, portanto, nossas ações são totalmente livres, não determinadas, mas realizamos apenas ações moralmente más. Qual desses mundos é moralmente melhor? Como um mundo onde se realiza apenas o mal pode ser melhor que em que se realiza apenas o bem? A próxima objeção no texto poderia ser uma tentativa de responder a essa última pergunta: em um mundo onde as ações fossem todas determinadas não haveria ação moral e, portanto, nenhuma ação seria moralmente boa.

[6] Um locus classicus dessa solução são alguns textos de Espinosa. Mas o que se segue não pretende ser uma apresentação do conteúdos desses textos.

[7] Esse todo algumas vezes é concebido como uma criação de Deus e algumas vezes como o próprio Deus (panteísmo), como é o caso no pensamento de Espinosa.


____________

Leituras

Michael Tooley - The problem of evil
James R. Beebe - Logical problem of evil
Philosophy Talk - The problem of Evil (podcast)


quinta-feira, 1 de junho de 2017

Internalismo e externalismo epistêmico

Cena do filme Ray Man, em que o protagonista,
um autista (Dustin Hoffman), diz, sem contar,
quantos palitos há no chão.

Antes de mais nada, algumas palavras sobre a origem dos termos "internalismo" e "externalismo". Estes termos são resultados e um anglicismo. Um anglicismo é um modo próprio de falar da língua inglesa, mas que acaba sendo adotado na língua portuguesa. Em inglês, "interno" é "internal", e "externo" é "external". Desses termos em inglês derivam-se os nomes ingleses das duas teorias "internalism" e "externalism". A tradução correta desses dois termos para o português deveria ser "internismo" (de "interno") e "externismo" (de "externo"). Todavia, os anglicismos "internalismo" e "externalismo" já estão, infelizmente, consolidados na literatura sobre o assunto no Brasil.[1]

Há várias formulações do internalismo epistêmico. A começar, ele pode ser uma teoria sobre o conhecimento ou sobre a justificação.[2] Seja como for, o externalismo é invariavelmente uma teoria cuja tese principal é a negação de alguma tese principal do internalismo. Como uma teoria sobra a justificação, podemos formular a principal tese do internalismo do seguinte modo (onde s é um sujeito cognoscente qualquer e p é uma proposição qualquer):
s está justificado em crer que p se s é consciente dos justificadores de p.
O ponto central dessa tese é que o que justifica a crença de que p (os justificadores de p, sejam esses quais forem) deve ser cognitivamente acessível a quem possui uma crença justificada. Mas que tipo de acesso seria esse, atual ou potencial? Muitas vezes não estamos atualmente conscientes daquilo que torna nossas crenças justificadas, embora possamos nos tornar conscientes delas por mera reflexão, ou seja, sem a necessidade de fazer inferências e adquirir novos conhecimentos. Sendo assim, uma versão fraca do internalismo sobre a justificação pode ser formulada assim:
s está justificado em crer que p se s pode tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores de p.
Outro ponto sobre os quais os internalistas podem discordar é sobre se o acesso cognitivo aos justificadores de uma crença deve ser completo ou parcial. Se uma pessoa precisa agir rapidamente e, no curso de sua ação, ela adquirir rapidamente muitas crenças, é implausível que ela seja consciente de todos os justificadores dessas crenças. E é irrealista exigir que ela lembre-se de todos os justificadores de suas crenças em um momento posterior, mais calmo. Por isso, parece mais plausível e realista que ela deve poder lembrar-se ao menos de parte desses justificadores. Qual parte? A parte essencial, isto é, a parte não poderia ser esquecida sem que a crença se torne injustificada. Com base nessas considerações, esta seria a principal tese do internalismo da justificação:
s está justificado em crer que p se s pode tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
A versão do internalismo do conhecimento correspondente a esta versão do internalismo da justificação seria, então, a seguinte:
s sabe que p se s pode tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
Mas o que são os justificadores essenciais de uma crença? Tanto o internalismo sobre a justificação quanto o internalismo sobre o conhecimento parecem implicar o mentalismo sobre os justificadores, ou seja, parece implicar que os justificadores são itens mentais, pois o que mais poderia ser cognitivamente acessível por mera reflexão? Todavia, entre tais itens mentais, um conjunto deles tem desempenhado um papel central no internalismo tradicional: a inferência dedutiva. De acordo com isso, ter uma justificação para uma crença C é ter outras crenças justificadas de onde C é inferida validamente. O problema dessa tese sobre a justificação é que ela parece implicar um regresso ao infinito. Para se ter justificação para se acreditar que p é necessário inferir p de q e ter justificação para se acreditar que q. Mas então é necessário ter justificação para se acreditar que q e, por isso, é necessário inferir q de r e ter justificação para se acreditar que r, inferir r de s e ter justificação para se acreditar que s, inferir s de t e ter justificação para se acreditar que t, e assim por diante ad infinitum.

Uma maneira e se apresentar o internalismo sobre o conhecimento é dizendo que, para o internalista, se uma pessoa sabe alguma coisa, então ela sabe o que constitui o conhecimento, ou seja, ela sabe que sabe. Por isso, ela estaria sempre em condições de responder corretamente à pergunta "Como você sabe?", apresentando as razões sobre as quais sua crença está baseada.

O externalismo da justificação, sendo a simples negação do internalismo da justificação, baseia-se fortemente na apresentação de contra-exemplos da tese internalista. Desta forma, sua principal tese é a seguinte:
Em alguns casos, s está justificado em crer que p, mesmo que s não possa tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
A principal tese do externalismo do conhecimento seria a seguinte:
Em alguns casos, s sabe que p, mesmo que s não possa tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
Um caso que seria um contra-exemplo da tese internalista seria o de algumas pessoas que são capazes de dizer o dia da semana de cada data. Sabemos que elas geralmente estão certas porque podemos conferir com um calendário o que elas dizem. Entretanto, elas não consultam o calendário para dizer o dia da semana de cada data. Se perguntarmos a algumas delas como elas sabem o dia da semana de cada data, elas não sabem responder. Podemos inferir da percentagem da correção do que elas dizem, muito cima da adivinhação sortuda, que há algum tipo de mecanismo gerando nelas crenças geralmente verdadeiras. Mas elas próprias são incapazes de dizer que mecanismo é esse. Elas são incapazes de ensinar outras pessoas a desenvolverem a mesma habilidade. Mas isso, segundo o externalista, não impede que elas saibam ou tenham crenças justificadas. A ação desse mecanismo desconhecido é justamente o que justifica as suas crenças verdadeiras, na medida em que esse mecanismo conduz à verdade, ou seja, é confiável.

Uma motivação adicional para o externalismo, além dos contra-exemplos das teses internalistas, é a possibilidade de evitar o regresso infinito das justificações implicado pelo internalismo. Se estar justificado em acreditar que p nem sempre é realizar uma inferência dedutivamente válida cuja conclusão é p e cujas premissas são proposições suja crença é também justificada, então abre-se espaço para a possibilidade de crenças básicas justificadas de uma outra maneira.

Há uma objeção ao externalismo baseada numa concepção normativa ou deontológica da justificação. De acordo com essa concepção, um sujeito cognoscente obtém justificação para suas crenças quando cumpre com os sua obrigações ou deveres epistêmicos de forma excelente. Isso significa que um sujeito cognoscente obtém justificação quando segue as normas para a obtenção de crenças justificadas. A idéia de uma ética da crença é justamente a idéia de um conjunto de normas que devemos seguir para a obtenção de crenças justificadas. Ocorre que normas devem especificar as condições que, se satisfeitas, elas são seguidas. Por exemplo: se houver uma placa no meio fio que contém um círculo vermelho com fundo branco, no interior do círculo há um "E" maiúsculo preto cortado por uma linha vermelha diagonal, não estacione naquele local. Para garantir que as pessoas possam em geral seguir as placas de trânsito, os responsáveis por elas procuram deixar essas placas sempre facilmente visíveis. Caso contrário, elas não poderiam ser seguidas. Mas como se poderia seguir as normas para a obtenção de crenças justificadas, se os justificadores das nossas crenças fossem cognitivamente inacessíveis por meio de uma mera reflexão? Se o justificador de minha crença é algum processo regular no meu cérebro cognitivamente inacessível à mera reflexão, como posso saber que estou seguindo normas para a obtenção de justificação quando ele ocorre? O argumento, em suma, é este:
Nossas crenças adquirem justificação por meio de um processo normativo, em que se segue regras epistêmicas para a obtenção de crenças justificadas.
Seja o que for que aconteça nos casos que os externalistas apresentam como contra-exemplos do internalismo, não se trata de um processo normativo em que se segue regras epistêmicas para a obtenção de crenças justificadas.
Logo, seja o que for que aconteça nos casos que os externalistas apresentam como contra-exemplos do internalismo, não se trata de aquisição de justificação para crenças.
Há uma resposta a esse argumento que ataca um pressuposto da concepção normativa ou deontológica da justificação. Como vimos, segundo essa concepção, um sujeito cognoscente obtém justificação quando segue as normas para a obtenção de crenças justificadas. Dado que se tratam normas para a aquisição, manutenção e revisão de crenças, elas têm as seguintes formas gerais:
Se tais e tais condições forem satisfeitas, você deve acreditar que p.
Se tais e tais condições não forem satisfeitas, você deve não acreditar que p.
Mas, deveres implicam possibilidades.[3] Se uma norma determina que eu devo fazer X, deve ser possível, em todos os sentidos de "possível", que eu faça X. Mas não apenas isso: deve ser possível que eu não faça X. Não faz sentido obrigar alguém a fazer o que ele não pode não fazer. Analogamente, não faz sentido proibir alguém de fazer algo que que não pode fazer. Em outras palavras, as normas para se fazer X implicam que fazer X é algo voluntário, ou seja, é algo que está sob o controle direto da vontade. Sendo assim, as normas para a aquisição, manutenção e revisão de crenças implicam que a aquisição de crenças é voluntária, está sob o controle direto da vontade. Todavia, há o seguinte argumento contra essa tese:[4]
Se a aquisição de crenças fosse voluntária, então alguém poderia crer que não-p, mesmo depois de aceitar as premissas e a validade de um argumento cuja conclusão é p.
Ninguém poderia crer que não-p, depois de aceitar as premissas e a validade de um argumento cuja conclusão é p.
Logo, a aquisição de crenças não é voluntária.
O problema com essa concepção não voluntarista da aquisição de crenças é que, aparentemente, de acordo com ela, não faz sentido dizer que uma crença falsa é errada. Correta é uma ação voluntária que é realizada de acordo com uma norma. Errada é uma ação voluntária realizada em desacordo com uma norma. Se a crença não é voluntária, então ela não pode ser nem correta nem errada. E se não faz sentido dizer que uma crença falsa é errada, então não podemos punir ou repreender alguém por ter crenças falsas.

Mas é possível responde a esse argumento da seguinte forma. Nossa vontade tem controle direto apenas sobre ações básicas, isto é, ações que, para serem realizadas não é necessário realizar nenhuma outra ação, tal como levantar o braço, por exemplo. Basta que eu queira levantar o braço e nada esteja me impedindo de fazer isso para que eu faça. Da mesma forma, basta que eu não queira levantar o braço para que não o faça. O mesmo não é o caso em relação a ações não-básicas, como atirar uma flecha com um arco para atingir o alvo. Não basta que eu queira atirar para que a ação seja em seguida realizada. Eu preciso querer mover meus braços para agarrar o arco, querer mover meu corpo para me posicionar frente ao alvo, querer agarrar a flecha, querer posicioná-la adequadamente no arco, querer erguer o arco e a flecha para fazer mira, querer flexionar o braço para puxar a flecha para trás e fazer tensão na corda do arco, querer soltar rapidamente a flecha e a flecha, então, não mais sob o meu controle, deve atingir o centro do alvo. Mas embora não esteja sob o controle direto da minha vontade, ações não-básicas estão sob o controle indireto da vontade. É por isso que somos responsabilizados por elas. Realizar uma ação não-básica consiste justamente em fazemos tudo que está sob o controle direto da nossa vontade (ações básicas) que constitui a ação não-básica. A aquisição de crenças, embora não seja uma ação básica, pode ser concebida como uma ação não-básica e, por isso, como estando sob o controle indireto da vontade. Há um conjunto de ações básicas e não-básicas que podemos realizar para adquirir uma crença tal como ler um livro que argumenta em favor da verdade dessa crença. Essa aquisição pode não ocorrer? Pode. Mas da mesma forma, a flecha pode não atingir o alvo devido a uma série de fatores que escapam ao controle, direto ou indireto, da minha vontade. Isso não faz com que as ações que realizei não constituam a ação de atirar uma flecha com um arco para atingir o alvo.Se a vontade tem controle indireto da aquisição de crenças, então faz sentido falar de normas da aquisição de crenças e da responsabilização pelas crenças que temos e que não temos.

__________

[1] Um outro infeliz anglicismo na literatura filosófica brasileira é a tradução de "sentence" por "sentença", quando o correto seria "frase".

[2] Afinal, podemos ter crenças justificadas que, no entanto, são falsas e, por isso, não são conhecimento e, desde que Gettier apresentou os seus contra-exemplos para a definição tradicional de conhecimento, alguns epistemólogos focaram certas discussões no conceito de justificação para, entre outras coisas, evitarem ter de dar uma solução para o problema de Gettier.

[3] Essa tese é geralmente atribuída a Kant.

[4] Esse argumento é geralmente atribuido a Bernard Williams.


sexta-feira, 1 de julho de 2011

"Não sei o que quero"

Algumas vezes dizemos "Não sei o que quero". Mas o que significa isso? Essa é uma afirmação epistêmica sobre o conteúdo da nossa mente? É uma confissão de ignorância sobre os produtos da nossa faculdade volitiva? Geralmente quando dizemos isso estamos numa situação de conflitos de vontades. Nessa situação, queremos duas ou mais coisas incompatíveis. Dois objetos da vontade são incompatíveis quando não podem ambos serem realizados. Por exemplo: posso querer morar numa determinada cidade, A, por certas razões, e também morar em outra cidade, B, por outras razões. Isso é perfeitamente possível; tão possível que às vezes queremos duas coisas que não sabemos que são incompatíveis, como realizar uma ação que não sabemos ser ilegal e não ser punido pela lei, por exemplo. Pois bem, diante de uma tal situação de um consciente conflito de vontades, podemos ficar em dúvida sobre qual das vontades conflitantes é a mais forte, que impele mais. Por isso, podemos expressar essa dúvida justamente dizendo "Não seio o que quero", que seria uma espécie de abreviação de "Não sei o que mais quero". E numa tal situação, pode-se descobrir que, fazendo abstração das razões, o que se mais quer é morar em A, embora haja mais razões para se morar em B. Nesse caso, podemos escolher entre seguir o impulso da vontade irracional ou seguir a razão. Esse é o conflito entre o que se mais quer e o que se deve fazer. É claro que se a vontade de fazer o que é mais racional prevalecer, podemos dizer que essa foi a vontade mais forte. Mas isso não impede que, fazendo-se abstração das razões, a vontade irracional seja a mais forte. Às vezes, mesmo fazendo-se abstração das razões, a vontade irracional é mais fraca. Em suma, se usada dessa forma, a frase "Não sei o que quero" é uma confissão de ignorância não sobre o que queremos, mas sobre o que mais queremos.

_________

* Texto redigido a partir de uma conversa com Laiz Fraga.