Translate

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Definição tradicional de conhecimento

São Tomé, de Caravaggio

Imaginemos que alguém enuncie a seguinte frase:
(1) Sei que chove, mas não acredito que chove.
Todos nós notamos que há alguma coisa errada com essa frase. Mas qual é o erro? A primeira coisa que notamos é que, aparentemente, a frase não pode ser verdadeira. Por que? Porque a primeira parte da frase, "Sei que chove", parece incompatível com a segunda, "não acredito que chove", ou seja, parece que a primeira e a segunda partes não podem ser ambas verdadeiras. Mas não estamos diante de uma contradição formal, pois a primeira parte não é a negação do que a diz a segunda nem vice-versa. Pensemos por um instante: poderia ser o caso que eu acreditasse que chove, mas não soubesse que chove? Claro que sim. Então, se não podemos saber que chove e não acreditar que chove embora possamos acreditar que chove e não saber que chove, então isso mostra que acreditar que chove é uma condição necessária para saber que chove. De modo geral, parece que "Sei que p" implica "creio que p" (onde "p" é uma proposição qualquer). Se é assim, então uma definição de "conhecimento" em termos de condições necessárias e suficientes deve incluir a crença como condição necessária. Mas a crença é uma condição necessária e suficiente para o conhecimento? Ou seja, se creio que p, então sei que p? Claro que não, pois muitas vezes estamos enganados, ou seja, ou acreditamos que p e é o caso que ~p, ou acreditamos que ~p e é o caso que p. E se estamos enganados, não sabemos. A outra condição necessária para o conhecimento é revelada pelo que percebemos de errado com essa outra frase:
(2) Sei que chove, mas não é verdade que chove.
Não é possível que seja falso que chove e eu saiba que chove. O conhecimento é factivo, ou seja, em geral, se eu sei que p, então (é verdade que) p. Só conhecemos verdades, fatos. A verdade é outra condição necessária para o conhecimento. Portanto, o conhecimento é uma crença verdadeira. Mas essas são condições suficientes para o conhecimento? Se fossem, a seguinte afirmação poderia ser verdadeira:
(3) Sei que chove, mas não estou justificado em crer que chove.
Com eu posso saber que chove e, por isso, acreditar que chove e ser verdade que chove e eu não estar justificado em crer que chove? Para responder a essa pergunta, temos que entender o que é a justificação de uma crença. Uma crença é justificada quando alguma coisa, de algum modo, garante que estamos fazendo algo correto ao crer. Mas correto em relação ao que? Em relação a verdade. portanto a justificação é algo que fornece algum tipo de garantia de que estamos crendo na verdade. Parece absurdo dizer que sabemos que chove e, portanto, cremos que chove, mas que não temos nenhum garantia de que nossa crença que chove seja verdadeira. A justificação parece ser mais uma condição necessária para o conhecimento. O conhecimento, portanto, é uma crença verdadeira justificada.

A justificação é pensada como aquilo que faz que o conhecimento seja o oposto à adivinhação sortuda. Suponhamos que alguém acredite que as próximas dezenas sorteadas na mega sena sejam as 6 dezenas que ele encontrou escritas em um pedaço de papel na calçada. O sujeito então joga e acerta. Por um golpe de sorte, ou seja, uma coincidência acidental, ele acertou os números, ou seja, sua crença era verdadeira. Por isso, não dizemos que ele sabia quais seriam as dezenas sorteadas. Ele apenas teve sorte ao adivinhar.

O valor do conhecimento está ligado a essa garantia fornecida pela justificação de que a crença é verdadeira. Por exemplo: se ficarmos perdidos por vários dias numa floresta em que há apenas cogumelos para comer e alguns deles forem fatalmente venenosos, então atingiremos nosso objetivo de sobrevivermos e sairmos da floresta somente se comermos apenas cogumelos não venenosos. Podemos fazer isso por pura sorte, ou podemos fazer isso porque sabemos quais quais cogumelos não são venenosos. O conhecimento, portanto, é um meio que nos dá mais garantias de que atingiremos nossos objetivos.

Tradicionalmente se pensou que crença, verdade e justificação eram as três condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que o conhecimento.[1] Mas, deve-se notar que essa definição, se correta, é correta apenas em relação a um tipo de conhecimento, o conhecimento proposicional. O conhecimento proposicional é aquele que se expressa em frases da forma
s sabe que p
onde "s" é um sujeito qualquer e "p" é uma proposição qualquer. O conhecimento, nesse caso, é uma das possíveis atitudes proposicionais, isto é, dos estados que são descritos por frases da forma
s A que p
onde "A" é um verbo para atitude proposicional, como "crer", "saber", "desejar", "esperar", "temer", etc.  Outro tipo de conhecimento se expressa em frases da forma
s sabe B
onde "B" é um verbo. Por exemplo: "João sabe cozinhar", "Paulo sabe cantar", "Maria sabe andar de bicicleta", etc. Nesse caso, o conhecimento não é uma relação que um sujeito mantém com uma proposição, mas é uma certa habilidade. Para esse tipo de conhecimento, a definição acima não é correta. Saber andar de bicicleta não é ter uma crença verdadeira justificada (embora sua aquisição possa, talvez, envolver ter certas crenças verdadeiras justificadas). A distinção entre esses dois tipos de conhecimento é algumas vezes apresentada como a distinção entre saber que (to know that) e saber como (to know how).

Há um suposto outro tipo de conhecimento, que se expressa em frases da forma.
s conhece a.
onde "a" é o nome de um indivíduo qualquer, uma pessoa, uma cidade, uma montanha, um planeta, etc. Esse tipo de conhecimento é às vezes chamado conhecimento por contato. Uma pessoa pode saber (proposicionalmente) que Lula é o presidente do Brasil, mas não conhecer Lula, no sentido de nunca ter tido contato direto com ele. (Mas alguém poderia pensar que esse contato é apenas uma maneira de justificar certas crenças sobre Lula, não um terceiro tipo de conhecimento.)

A definição tradicional de conhecimento foi colocada em xeque em meados do séc. XX com a publicação de um artigo de Edmund Gettier, "É a crença verdadeira justificada conhecimento?". Nesse artigo Gettier apresenta dois contra-exemplos da definição tradicional, ou seja, casos que satisfazem as três condições individualmente necessárias para o conhecimento, mas que não são casos de conhecimento. Isso mostraria que essas três condições não são suficientes para o conhecimento.
______

[1] No diálogo Teeteto, Platão apresenta uma versão dessa definição: conhecimento é opinião verdadeira acompanhada de razão (logos).

______

Leituras

Sober, E. "O que é conhecimento?" (Crítica)
Kenny, A. "A definição de conhecimento no Teeteto" (Críitca)
Gettier, E. "É a crença verdadeira justificada conhecimento?" (Críitca)
The Analysis of Knowledge  (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Plato on Knowledge in the Theaetetus (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
The Value of Knowledge  (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Knowledge by Acquaintance vs. Description  (Stanford Encyclopedia of Philosophy)

4 comentários:

  1. Estava pesquisando sobre "indeterminação", Quine, Wittgenstein - Kirple... e tive a oportunidade de conhecer seu blog (post de 2008). Por hora, passo a acompanhá-lo. Parabéns pelo blog... J. Faller.

    ResponderExcluir
  2. Jacson: Obrigado! Comentários e críticas são bem-vindos.

    ResponderExcluir
  3. Achei estranho vc dizer que não há uma contradição formal na frase "Sei que chove, mas não acredito que chove". claro que isso depende do que se entende por contradição formal e por analiticidade. Mas vamos supor que a negação de uma proposição analitíca seja contraditória; então nos falta precisar o que é uma proposição analítica. O assunto é espinhoso,mas vamos pensar em uma concepção que tem uma grande tradição desde Bolzano: analítico é aquilo que é verdadeiro em virtude do significado das expressões e das leis lógicas. Ora, a frase em questão consta dos conceitos de conhecimento e de crença. É intuitivo que conhecimento envolve crença como um dos seus ingredientes necessários, portanto, afirmar que se conhece p é afirmar (implicitamente) que se acredita em p. Nesse caso, afirmar que se conhece (portanto que se crê) acarreta a negação da descrença. Assim, caso se mantenha as duas coisas (conhecimento e descrença)tem-se uma contradição implícita na frase .
    Volnei

    ResponderExcluir
  4. Volnei, o que eu quis dizer é que "Não acredito que chove" não é a negação (lógica) de "Sei que chove". A negação de uma proposição é obtida tão somente ao se colocar o sinal de negação do lado direito da proposição. Por meio de uma definição podemos derivar uma contradição. Se definimos "s sabe que p" assim

    s sabe que p sse se acredita que p, p, e s está justificado em acreditar que p

    então podemos fazer as devidas substituições e derivar a contradição formal assim

    Sei que chove & não acredito que chove.
    (Acredito que chove, chove e estou justificado em crer que chove) & não acredito que chove.

    Agora sim temos uma contradição formal.

    ResponderExcluir