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quinta-feira, 15 de junho de 2017

A estrutura do conhecimento

Esquema da percepção segundo Descartes
Nossas crenças justificadas formam uma estrutura na qual mantêm relações de justificação. O assim chamado problema da estrutura do conhecimento é, na verdade, um problema acerca de qual seja a estrutura desse sistema de crenças justificadas. Dado que as relações que compõem essa estrutura são de justificação, o problema pode ser formulado assim: qual é a estrutura das relações de justificação entre nossas crenças justificadas?

O trilema de Agripa ou de Münchhausen

O problema da estrutura do conhecimento surge a partir do assim chamado trilema de Agripa[1] ou de Münchhausen. A formulação do trilema supõe uma certa concepção da justificação que pode ser denominada inferencialista. Segundo a concepção inferencialista da justificação, uma crença está justificada se, e somente se, ela for inferida validamente de outras crenças justificadas. Por exemplo: a crença de que João chegará atrasado na reunião seria justificada porque foi inferida validamente das seguintes crenças justificadas: João acabou de sair de casa, ele demora no mínimo meia hora para chegar ao local da reunião e a reunião começa em dez minutos. Mas, se uma crença está justificada se, e somente se, ela foi inferida validamente de outras crenças justificadas e a crença de que João acabou de sair de casa é justificada, então ela deve ter sido inferida validamente de outras crenças justificadas, talvez da crença de que João acabou de comunicar isso pelo telefone. Mas se essa última crença é justificada, ela também deve ter sido inferida de ao menos uma crença justificada, talvez a crença de que foi João quem falou ao telefone e que ele não tem o hábito de mentir. E assim por diante as crenças vão regredindo às demais que as justificam. Mas até onde esse regresso se estende? Há apenas três possibilidades e parece que nenhuma delas é aceitável. A primeira possibilidade é que o regresso se estende ao infinito (sem se repetir). Se esse for o caso e se for necessário percorrer toda a cadeia de crenças do regresso para justificar uma crença, então nenhuma crença é justificada, pois é impossível percorrer uma cadeia infinita de crenças. A segunda possibilidade é que o regresso, em algum ponto, retorna à crença que se queria justificar (e se repete). Isso tornaria a cadeia de crenças viciosamente circular. Ora, uma inferência circular não justifica uma crença, pois uma crença não pode ser justificada por ela mesma. Embora a inferência
P
Logo, P
seja dedutivamente válida, ela não justifica a crença em P. A terceira possibilidade é que o regresso tem um fim em uma crença não-justificada e, portanto, arbitrária. Se a crença em P1 é, supostamente, justificada por P2, que é justificada por P3, que é justificada por P4, que é justificada por P5, que não é justificada, então, na verdade, P4 não é justificada, pois foi inferida de uma crença não-justificada. Mas então P3 tampouco é justificada, pois foi inferida de P4, que não é justificada. P2 tampouco é justificada, pois foi inferida de P3, que não é justificada. Por fim, P1 tampouco é justificada, pois foi inferida de P2, que não é justificada. A conclusão cética aparentemente inevitável desse argumento é que não é possível justificar uma crença e, portanto, o conhecimento não é possível.

Infinitismo, coerentismo e fundacionalismo

Há três tipos de teorias sobre a estrutura do conhecimento que são apresentadas como soluções para o trilema de Agripa. O infinitismo procura mostrar que, embora não pareça, o regresso ao infinito das justificações não implica que as crenças que compõem esse regresso não estejam justificadas. O coerentismo, por sua vez, procura mostrar que, embora não pareça,  circularidade da cadeia de justificações não implica que as crenças que compõem esse regresso não estejam justificadas. O fundacionalismo, entretanto, rejeita a concepção inferencialista de justificação, sem a qual o trilema não pode ser formulado, e sustenta que o regresso das justificações termina em crenças que são justificadas, mas não porque são inferidas de outras crenças.

O infinitista procura justificar sua teoria criticando o coerentismo e o fundacionalismo e tentando mostrar que o regresso ao infinito das justificações não é vicioso, mas virtuoso, ou seja, não é um problema epistêmico, mas justamente é o que possibilita satisfazer as exigências de uma boa teoria da estrutura do conhecimento. O regresso seria vicioso apenas se, para que uma crença fosse justificada, devêssemos percorrer toda a cadeia infinita de crenças. Essa seria uma tarefa logicamente impossível, pois exigiria a realização de infinitas ações. Portanto, se essa fosse de fato uma condição necessária para que uma crença fosse justificada, então nenhuma crença poderia ser justificada. O infinitista alega que essa não é uma condição necessária para a justificação. O que é necessário é que as crenças componham uma cadeia infinita de justificações. Se isso acontecer, as crenças dessa cadeia estarão justificadas, mesmo que seja impossível percorrer toda a cadeia. O infinitismo é a teoria com o menor número de adeptos.

O infinitismo sofre muitas objeções. Algumas das principais são as seguintes. Se o infinitismo está correto, então aquele que possui uma crença justificada possui infinitas crenças. Todavia, uma mente finita como a nossa é incapaz de ter infinitas crenças. Logo, o infinitismo deve estar errado. Um outra objeção consiste em afirmar que o infinitismo é incapaz de explicar a origem e transmissão da justificação ao longo da cadeia infinita de justificações. Afinal, como essa cadeia infinita se origina?

O coerentismo, na sua forma mais forte, afirma que pertencer a um conjunto de crenças coerente não é apenas necessário, mas suficiente para que uma crença seja justificada.[2] Uma grande dificuldade do coerentismo é definir de maneira satisfatória a propriedade da coerência. Um consenso é que ela envolve consistência lógica. Mas é claro que isso não pode ser suficiente porque há abundantes exemplos de proposições sabidamente falsas que fazem parte de conjuntos de crenças logicamente consistentes e nenhuma crença em uma proposição sabidamente falsa pode estar justificada (o que não implica que uma crença justificada não possa ser falsa). Outros elementos que se costuma acrescentar como constitutivos da coerência de um conjunto de crenças são a abrangência (quanto mais abrangente, mais crenças sobre mais coisas o conjunto contém) e o poder explicativo (quanto maior o poder explicativo de um conjunto de crenças mais coisas podemos explicar com ele e melhor).

A coerência também envolve a circularidade na cadeia das justificações. Mas isso o coerentista acredita ser não um vício epistêmico dessa cadeia, mas uma virtude. Mas como explicar que a circularidade da cadeia de justificações não é viciosa como a inferência que tem como premissa e conclusão a mesma proposição? Alguns argumentam que a circularidade somente é viciosa quando a cadeia de justificações é muito pequena. Tais coerentistas defendem que a cadeia de justificações é grande o suficiente para que a circularidade não seja viciosa. Outros coerentistas não aceitam essa explicação e afirmam que a circularidade não é viciosa porque o que é justificado na cadeia de crenças coerente é a própria cadeia como um todo, não as suas crenças particulares. A circularidade dessa cadeia, dessa forma, apenas mostraria o caráter holístico o nossos sistema de crenças, onde todas se apoiariam mutuamente. Uma maneira de tornar plausível a idéia de apoio mútuo é por meio de analogias, como aquela com o arco de tijolos. Cada tijolo de um arco de tijolos ao mesmo tempo apóia e é apoiado pelos demais. Todavia, coerentismo ainda envolve afirmar que as crenças de uma cadeia circular de crenças estão justificadas e que, portanto, uma crença é justificada, entre outras coisas, porque apóia indiretamente a si mesmo. Por fim, o coerentismo não elimina a possibilidade de haver dois conjuntos de crenças que atendam a todas as exigências para serem coerentes, embora sejamincompatíveis. Esta seria uma situação paradoxal, em que duas crenças incompatíveis seriam, no entanto, ambas justificadas.

O fundacionalismo é de longe a teoria mais aceita. De acordo com o fundacionalismo, há dois tipos de crenças: as crenças básicas, cuja justificação não depende de outras crenças, e crenças não-básicas, cuja justificação é fornecida pelas crenças básicas. A idéia de crença básica, portanto, é incompatível com a concepção inferencialista da justificação, um dos elementos necessários para se formular o trilema de Agripa. Parte da argumentação a favor do fundacionalismo é uma defesa da inteligibilidade da idéia de crença básica e uma tentativa de mostrar que crenças básicas existem. O restante procura explicar como as crenças básicas justificam as crenças não-básicas.

Mas como as crenças básicas elas próprias são justificadas, se não são justificadas por meio de outras crenças? O fundacionalismo clássico afirma que as crenças básicas são justificadas ou porque são absolutamente certas ou indubitáveis (Descartes) ou porque são infalíveis, isto é, são geradas por um processo que necessariamente gera crenças verdadeiras, ou porque seu conteúdo são proposições necessárias (não podem ser falsas). Na forma mais simples de fundacionalismo contemporâneo, no que tange a crenças empíricas, crenças básicas seriam crenças sobre experiências perceptuais. O que as justificariam seria essas próprias experiências, que não são crenças. Por exemplo: a crença de que estou vendo vermelho seria justificada pela minha experiência perceptual de ver vermelho, pela sensação visual de vermelho no meu campo visual. E a experiência perceptual justificaria minha crença perceptual, em uma das versões do fundacionalismo, porque ela é confiável, ou seja, tende a gerar crenças verdadeiras. A crença não-básica de que o objeto que estou vendo é vermelho, por sua vez, seria justificada pela crença básica de que vejo vermelho.

Uma objeção comum ao fundacionalismo é que, no final das contas, ele não consegue eliminar a arbitrariedade das crenças básicas., pois nossas experiências não são infalíveis e frequentemente são enganadoras.Todavia, é difícil entender como seria possível a experiência de se ver vermelho, por exemplo, poderia ser falha. O que pode ser falha é a crença não-básica de que o objeto que estou vendo é vermelho.

Sellars formulou outra objeção ao fundacionalismo na forma de um dilema. Crenças e as demais atitudes proposicionais têm conteúdo representacional assertivo, ou seja, conteúdo que pode ser expresso em uma asserção e pode ser verdadeiro ou falso sobre o mundo. Ou a experiência possui conteúdo representacional assertivo ou não possui. Se a experiência possui conteúdo representacional assertivo, então é necessário que algo justifique a correção desse conteúdo e, portanto, a experiência não é o fim da cadeia de justificações. Se a experiência não possui conteúdo representacional assertivo, então ela não poderia desempenhar o papel de justificadora de crenças. Uma resposta a esse dilema consiste em alegar que ao contrário do que a primeira parte do dilema parece supor, a experiência não precisa ser justificada por algo que o sujeito cognoscente possui acesso cognitivo para ser justificadora. Ela pode ser justificadora por ser confiável. A experiência precisa ter essa propriedade, de ser confiável, embora o sujeito cognoscente talvez sequer tenha a crença de que ela a tem.

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[1] Agripa foi um filósofo cético antigo. O trilema é atribuído a ele por Diógenes Laércio.

[2] Não se deve confundir o coerentismo epistêmico com a teoria da verdade como coerência. O coerentismo epistêmico é uma teoria sobre o conhecimento ou justificação, não sobre a verdade. Em princípio o coerentismo epistêmico pode ser combinado com a teoria correspondencista da verdade, por exemplo.


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Teorias da verdade

Esse texto é uma versão modificada e ampliada de um texto que escrevi para a Wikipédia há alguns anos e foi baseado principalmente na leitura do livro Teorias da Verdade, de Richard Kirkham, embora contenha algumas divergências em relação ao que Kirkham defende nesse livro. Essa postagem se destina a apresentar brevemente apenas as teorias da verdade mais conhecidas e influentes.


Perguntas filosóficas sobre a verdade

Há várias perguntas filosoficamente relevantes que se pode fazer a respeito da verdade, e há mais de uma resposta a cada uma delas na história da filosofia, embora algumas predominem. As principais questões são:

Pergunta metafísica: O que é (no que consiste) a verdade? Essa pergunta tem uma versão mais tradicional: Qual é a essência ou natureza da verdade? A essência ou natureza de uma coisa X é tradicionalmente concebida como o conjunto das condições necessárias e suficientes para que algo seja X, ou seja, como o conjunto das características que todos os Xs possuem e apenas os Xs possuem. (A metafísica é tradicionalmente concebida como a disciplina filosófica que estuda a essência das coisas e determina que tipos de coisas existem (ontologia).)

Pergunta epistemológica: Como podemos conhecer a verdade? O conhecimento é concebido tradicionalmente como crença verdadeira justificada e a crença como a atitude de tomar uma certa proposição como verdadeira. Sendo assim, a pergunta epistemológica pode ser formulada assim: como podemos ter crenças verdadeiras justificadas? (A epistemologia é tradicionalmente concebida como a disciplina filosófica que estuda a essência e possibilidade do conhecimento.)

Pergunta semântica: Qual é o significado da palavra "verdade"? A explicação do significado de uma palavra é geralmente denominada "definição", num sentido amplo. Nesse sentido amplo, a pergunta semântica pode ser reformulada assim: Qual é a definição da palavra "verdade"? Mas há uma pergunta mais geral: qual é a função da palavra "verdade"? Ou: por que precisamos dessa palavra na nossa linguagem? (A semântica é tradicionalmente concebida como a parte da filosofia da linguagem que estuda o significado, ou, como algumas vezes é dito, a relação entre as expressões lingüísticas e aquilo que elas significam. Mas essa última formulação pode levar a mal-entendidos.)

Alguém poderia pensar que a pergunta metafísica e a pergunta epistemológica são a mesma pergunta porque ambas procuram determinar os critérios da verdade. Mas Isso é uma confusão baseada na ambiguidade do termo "critério". Nesse caso, ele pode tanto significar as condições necessárias e suficientes para que algo seja verdade quanto as condições necessárias e suficientes para que saibamos que algo é verdade. Essa diferença pode ser esclarecida por meio de uma analogia: os critérios para que algo seja Deus não implicam que sejam critérios para que conheçamos Deus, caso contrário um ateu não poderia dar uma resposta positiva à pergunta "O que é Deus?", pois isso implicaria que eles estaria dando critérios para se conhecer Deus, e o conhecimento de Deus implica que ele existe. Analogamente, os critérios para que algo seja verdade não implicam que sejam critérios para que conheçamos a verdade, caso contrário um cético sobre a existência da verdade (alguém que acredita que não há verdade) não poderia dar uma resposta positiva à pergunta "O que é verdade?", pois isso implicaria que eles estaria dando critérios para se conhecer a verdade, e o conhecimento da verdade implica que ele existe.

Alguns filósofos de fato tentaram reduzir a verdade à justificação (tal como os intuicionistas na filosofia da matemática). Mas a possibilidade do engano parece falar contra essa redução, Quando estamos enganados, cremos que p e é o caso que não-p, ou vice-versa. Isso implica que, quando estamos enganados, a proposição que acreditamos tem um valor de verdade independente da nossa crença e, portanto, do nosso conhecimento.

Por fim, se o conhecimento é ao menos crença verdadeira justificada, como pode a verdade e a justificação serem a mesma coisa? Quando justifico uma crença, a justifico como verdadeira.

Uma das motivações para uma teoria da verdade é o paradoxo do mentiroso, que pode ser formulado de vários modos. Uma das formulações é aquela que aparece no imagem desta postagem: uma frase A que diz de outra frase B que é verdadeira enquanto B diz da frase A que é falsa. Nesse caso, se A for verdadeira, então ela é falsa, pois é isso que B diz. Se A for falsa, então B é falsa e, portanto, A é verdadeira. (Em outra postagem eu procuro mostrar que essa formulação enfrenta um problema. Mas há maneiras de formular o paradoxo que não enfrentam esse problema.)


Dois usos de "verdadeiro"

Antes da apresentação das principais teorias da verdade, convém chamar atenção para uma distinção importante entre dois usos de "verdadeiro".

Uso objetual

Algumas vezes atribuímos verdade a objetos materiais, como quando dizemos "isso é ouro verdadeiro". Mas há uma distinção essencial entre esse uso do predicado "é verdadeiro" e o uso em que atribuímos (ao menos aparentemente) a verdade a coisas que dizemos (ou pensamos, ou cremos, etc). Ouro falso não é um tipo de ouro. Ouro falso é um metal que parece ouro, mas não é. Ouro verdadeiro é um metal que não apenas parece ouro, mas é ouro. Nesse uso, "verdadeiro" é sinônimo de "genuíno" e "falso" é sinônimo de "de mentira", "pseudo". Usamos "falso" nesse sentido para falar do que tem uma aparência enganadora.

Uso semântico

Uma frase (ou enunciado, ou pensamento, ou crença, etc.) falsa não deixa de ser uma frase por ser falsa. (O problema dos enunciados falsos do Sofista de Platão surge justamente porque um certo argumento de Parmênides conclui que não pode haver enunciados falsos, que um enunciado falso, tal como o ouro falso, não é um tipo de enunciado.) Nesse uso, "verdadeiro" não é sinônimo de "genuíno". Há relações sistemáticas entre o uso objetual e o semântico de "verdadeiro". Eles podem aparecer na mesma frase. Por exemplo: "A frase 'Esse pedaço de metal é ouro verdadeiro' é verdadeira". Mas, quando se fala de teorias da verdade, é o uso semântico que se tem em mente.


Portadores de verdade

Quando dizemos de uma garrafa que ela é transparente, atribuímos a ela a propriedade da transparência e, por isso, a garrafa é a portadora dessa propriedade. Nesse caso, não há controvérsia sobre o que é o portador da transparência: um determinado objeto físico. Quando dizemos que algo é verdade, ou verdadeiro (no sentido semântico), atribuímos a propriedade da verdade a algo. Um portador de verdade é o que quer que se possa dizer que é verdadeiro, ou que é falso. Mas o que é, que tipo de coisa é, isso a que atribuímos a propriedade da verdade? Há muita controvérsia sobre a natureza dos portadores de verdade. Alguns acreditam que apenas um ou alguns dos candidatos a portadores de verdade são portadores de verdade genuínos ou primários, enquanto outros não o são ou o são apenas secundariamente. Mas há quem ache essa controvérsia inútil, na medida em que qualquer coisa poderia ser portador de verdade. Os principais candidatos a portadores de verdade são: frases particulares  ou concretas (em inglês token sentences), tipos de frases (em inglês type sentences), proposições ou pensamentos, enunciados e crenças. Nem sempre é clara a distinção entre esses candidatos e, muitas vezes o mesmo candidato recebe diferentes nomes de diferentes filósofos.

Frases

Alguns céticos em relação à existência de proposições, entendidas como entidades que são o conteúdo semântico de frases, tal como Quine, p.ex., defendem que os portadores de verdade são as frases indicativas. Frases, ou seja sinais lingüísticos, é que são verdadeiras ou falsas. Mas dado que há ambigüidade tipo/particular, esses defensores devem especificar qual desses portadores é primário qual é secundário. Essa ambigüidade também ocorre com termos como "letra" e "palavra". A diferença pode ser explicada por meio da elucidação da seguinte pergunta: quantas frases há dentro dos seguintes colchetes ["Chove", "Chove"], duas ou uma? Ambas as respostas podem ser corretas, dependendo de como entendemos "frase". Se for no sentido de frase tipo, há uma frase tipo. Se for no sentido de frase particular, há duas frases particulares, duas instâncias do mesmo tipo. Frases particulares são objetos espaço-temporais, enquanto que frases tipo são como que entidades abstratas. Não parece fazer sentido perguntar onde estão as frases tipo, ou as letras do alfabeto (as letras tipo). Defensores dessa posição terão dificuldade de explicar como animais não-humanos que não possuem linguagem podem ter relação epistêmica com a verdade.

Proposições

Parece contra-intuitivo dizer que são as frases que são portadores de verdade, porque uma mesma frase pode ser usada em um contexto para se dizer algo verdadeiro e usada em outro contexto para se dizer algo falso. Parece que é o conteúdo de uma frase que é verdadeiro ou falso, não a própria frase. O conteúdo de frases indicativas é geralmente denominado proposição. Diz-se que frases expressam proposições. A idéia tradicional de tradução (criticada por Quine por meio do seu argumento da indeterminação da tradução) envolve a tese que duas frases são traduzíveis uma pela outra justamente quando ambas expressam a mesma proposição, tal como "Chove" e "It rains". Proposição, não frases, seriam verdadeiras ou falsas primariamente. Frases seriam verdadeiras ou falsas apenas secundariamente, na medida em que expressam proposições verdadeiras ou falsas. Frases que não expressam nenhuma proposição, que não possuem nenhum conteúdo, não são nem verdadeiras, nem falsas. As proposições são concebidas às vezes como entidades abstratas, ou seja, como entidades não-espaciais e não-temporais. Os pensamentos fregeanos (o que Frege chama de "pensamentos") são um exemplo de proposições assim concebidas. Mas elas também podem ser pensadas como entidades mentais.

Enunciados

Suponhamos que eu escreva a frase "Chove" no quadro como exemplo de uma frase do português. Essa frase é verdadeira ou falsa? Bem, depende do estado da atmosfera no local e momento em que eu escrever a frase, dirão alguns. Essa resposta supõe que a frase escrita no quadro possui um conteúdo determinado, a saber o conteúdo que tem quando alguém diz algo sobre o estado da atmosfera. Mas por que não poderia ter o conteúdo que tem quando alguém a enuncia após outra pessoa dizer: "Chove pretendentes para aquela moça. Ela é muito bonita!"? O conteúdo primário da frase é aquele em que falamos das condições da atmosfera, por certo. Mas ele não é mais legítimo que os conteúdos secundários e não é necessário que uma frase escrita como exemplo de frase do português contenha seu conteúdo primário. Mas, afinal, qual conteúdo ela tem num contexto desses? Alguns defendem que quando ela não está sendo usada para enunciar um conteúdo determinado em um determinado contexto, ela não tem conteúdo nenhum; é apenas um sinal que pode ser usado com conteúdo, mas que fora desse um contexto de enunciação, não tem conteúdo algum. Esses defendem que os portadores de verdade primários são os enunciados, entendidos como o uso de frases em determinados contextos para expressar uma certa proposição.

Crenças

Assim como as frases, conceber os enunciados como portadores de verdade, porque são usos de frases, também enfrenta o problema de tornar difícil explicar qualquer relação epistêmica que animais não-humanos sem linguagem tenham com a verdade. Isso motiva alguns a defender as crenças como portadores de verdade primários, entendidas como atitudes proposicionais independentes da linguagem. Os enunciados, quando sinceros, seriam a expressão lingüística de crenças.


Teorias metafísicas da verdade

Há quatro grupos principais de respostas à pergunta metafísica: teorias correspondencistas, teorias coerentistas, teorias pragmatistas e teorias deflacionárias.

Teorias correspondencistas

Teorias da verdade desse grupo são as mais aceitas, entre outras coisas por causa do seu caráter intuitivo. Nossas intuições pré-filosóficas sobre a verdade geralmente nos inclinam a explicar a verdade, ao menos aparentemente, em termos de correspondência (como podemos ver nas definições de "verdade" da maioria dos dicionários). Segundo as teorias correspondencistas, a verdade é uma relação (ou propriedade relacional) entre dois tipos de entidades: um portador de verdade e um fator de verdade (em inglês truth maker), isto é, aquilo que torna esse portador de verdade verdadeiro, cuja totalidade é o mundo ou a realidade. O fator de verdade é algumas vezes denominado fato. A teoria diz que o portador de verdade "p" expressa ou representa o fator de verdade p ("p" diz que p) e que o portador é verdadeiro quando o fator de verdade ocorre ou é atual. Mais formalmente:

("p")("p" é verdadeiro se, e somente se, "p" diz que p e p)

Há dois tipos de teorias da correspondência: correspondência isomórfica e correspondência não-isomórfica como correlação. A correspondência isomórfica exige que a estrutura dos elementos do fator de verdade e a estrutura dos elementos do portador de verdade sejam isomórficas, isto é, que possuam a mesma forma. (Ludwig Wittgenstein, no Tractatus Logico-Philosophicus, e Bertrand Russell). A teoria da correspondência como correlação não exige esse isomorfismo (John Langshaw Austin), mas apenas convenções correlacionando portadores de verdade e fatores de verdade.

Geralmente se considera Aristóteles como um defensor de uma teoria da verdade como correspondência. Ele diz na Metafísica que "Dizer do que é que é e do que não é que não é é dizer a verdade e dizer do que é que não é e do que não é que é é dizer algo falso". Mas há quem diga que essa passagem pode ser interpretada como a expressão de uma teoria deflacionária da verdade (cf. infra).

Alguns acreditam que toda teoria correspondencista da verdade é uma teoria realista da verdade. Isso depende de como definimos "realismo" nesse contexto. Se uma teoria realista da verdade é aquela que concebe os fatores de verdade (os fatos) como entidades independentes da nossa mente, então parece que poderia haver uma teoria correspondencista não-realista da verdade, isto é uma teoria que concebe os geradores de verdade como dependentes da nossa mente. Mas "independente da mente" é uma expressão ambígua. Algo pode ser independente da nossa mente quanto à existência ou quanto aos nossos estados intensionais (pensamentos, crenças ou conhecimento). Algo pode ser concebido como independente dos nossos estados intensionais, mas não independente da existência da nossa mente (ou de alguma mente). Se uma teoria realista da verdade exige apenas que os fatores de verdade sejam independentes dos nossos estados intensionais, então uma teoria da correspondência que concebesse os fatores de verdade como dependentes da existência da nossa mente (ou de alguma mente) seria realista.

Não se deve confundir a definição correspondencista de "verdade" e o que Alfred Tarski chama de esquema T:

(T) "p" é verdadeira se, e somente se, p

Acreditar que as instâncias desse esquema (ou seja, os portadores de verdade que têm essa forma) são verdadeiras não implica aceitar a teoria correspondencista da verdade. Dizer que "'p' é verdadeira" equivale a "p" não é o mesmo que dizer que "p" é verdadeira porque p. Enquanto a equivalência é uma relação simétrica, a relação expressa por "porque" não é. Em outras palavras: dizer "'p' é verdadeira se, e somente se, p" e "p se, e somente se,'p' verdadeira" é dizer a mesma coisa, mas dizer "'p' é verdadeira porque p" não é o mesmo que dizer "p porque 'p' é verdadeira", salvo se quisermos negar que possa ocorrer fatos (fatores de verdade) aos quais não corresponde nenhum portador de verdade. Parece intuitivo supor que há fatos que não são representados por nenhum portador de verdade.

A chamada concepção semântica da verdade de Alfred Tarski é apresentada por ele como uma versão da teoria da verdade como correspondência. Mas há quem discorde disso e a veja como precursora do deflacionismo. Uma das motivações da teoria de Tarski era evitar que o paradoxo do mentiroso fosse formulado em uma linguagem que estivesse de acordo com a concepção semântica da verdade. Em tal linguagem o predicado "é verdadeiro" nunca é usado para atribuir verdade aos portadores de verdade da própria linguagem, ele pertence a uma metalinguagem em que se se atribui verdade aos portadores de verdade de uma linguagem objeto. Segundo Tarski a linguagem ordinária permite a formulação do paradoxo do mentiroso porque nela o predicado "é verdadeiro" atribui verdade aos portadores de verdade da própria linguagem ordinária.

A teoria da verdade como correspondência parece muito plausível quando examinamos o caso de enunciados empíricos os primeiros que aprendemos a fazer. Quando verificamos tais enunciados, parece que o que fazemos é uma comparação entre eles e o mundo empírico. Portanto, verificar se são verdadeiros é verificar se uma determinada relação entre eles e o mundo ocorre. Mas essa plausibilidade desaparece quando examinamos o modo como verificamos se enunciados matemáticos, por exemplo, são verdadeiros. Para isso, nós fazemos cálculos ou os provamos a partir de outros enunciados matemáticos e nenhum desses procedimentos parece ser a comparação desses enunciados com o mundo ou a realidade.

Teorias coerentistas

Segundo as teorias coerentistas da verdade, a verdade é uma relação (ou propriedade relacional) não entre os portadores de verdade e os geradores de verdade, mas entre os próprios portadores de verdade. A teoria diz que um portador de verdade é verdadeiro se faz parte de um conjunto coerente de portadores de verdade. A coerência é geralmente definida (quando é) do seguinte modo: um conjunto de portadores de verdade é coerente quando nenhum contradiz o outro. Mas não poderia haver dois conjuntos internamente coerentes de portadores de verdade de tal forma que um contradissesse o outro? Qual dos dois então teria portadores de verdade verdadeiros? É para evitar essa dificuldade que se costuma complementar a definição coerentista de verdade do seguinte modo: um portador de verdade é verdadeiro quando faz parte de um conjunto coerente de crenças abrangente, ou seja, que descreve completamente o mundo. Um romance de ficção, por exemplo, não atende a essa última exigência, apesar de ser internamente coerente. Mais formalmente:

("p")("p" é verdadeiro se, e somente se, "p" faz parte de um conjunto coerente de portadores de verdade que descreve completamente o mundo)

Mas quais seriam os critérios para se dizer que uma um conjunto coerente de portadores descreve completamente o mundo?

Teorias pragmatistas

Não é muito claro se, de acordo com as teorias pragmatistas da verdade, a verdade é uma propriedade que os portadores de verdade possuem independentemente das relações que mantêm entre si ou com fatores de verdade. A teoria diz que um portador de verdade é verdadeiro quando a crença na sua verdade é útil, sendo que algo é útil quando facilita atingir os objetivos almejados pela ação. Geralmente se acrescenta que essa utilidade deve ser medida a longo prazo. Uma crença imediatamente útil pode mostrar-se um obstáculo para a ação a longo prazo. A utilidade em questão é referente principalmente às ações de se lidar com objetos no mundo, comunicar-se, prever e explicar acontecimentos. Mais formalmente:

("p")("p" é verdadeiro se, e somente se, a crença que "p" é verdadeiro é útil a longo prazo)

Mas quais os critérios para que uma crença seja útil a longo prazo?

Teorias deflacionárias

Segundo as teorias deflacionárias da verdade, a verdade não é uma propriedade substancial, cuja natureza esteja oculta à espera de uma descoberta. Essa tese é sustentada através de uma análise da função do predicado "é verdadeiro". A função desse predicado, segundo o deflacionismo, pode ser completamente explicada por meio do esquema T (supra). (Mas aceitar que as instâncias do esquema T são verdadeiras não é o mesmo que aceitar o deflacionismo, ou seja, que a função do predicado "é verdadeiro" pode ser completamente explicada por meio do esquema T.) Para os deflacionistas, as teorias tradicionais da verdade estão todas equivocadas justamente porque supõem que a verdade é uma propriedade substancial cuja natureza oculta deve ser exibida por uma teoria que não se limita a afirmar que as instâncias do esquema T são verdadeiras. Há  mais de uma versão do deflacionismo. Aqui vou expor brevemente apenas duas: a teoria da verdade como redundância (a primeira a ser formulada) e o minimalismo.

De acordo com a teoria da verdade como redundância (geralmente atribuída a Frank P. Ramsey e às vezes chamada de teoria descitacional da verdade [em inglês disquotational theory of truth]), o esquema T é uma equivalência intencional, ou seja, uma sinonímia de acordo com a qual "'p' é verdadeira" significa o mesmo que "p" e, por isso, "é verdadeira" é redundante. Para o teórico da redundância, a verdade não é uma propriedade substancial porque não é propriedade nenhuma. A expressão "é verdadeira" é um pseudopredicado que não denota nenhuma propriedade. Com base nisso o teórico da verdade como redundância sustenta que o predicado "é verdadeiro" é redundante, ou seja, é eliminável da linguagem sem perda de capacidade expressiva. Isso significa que poderíamos dizer tudo o que dizemos usando esse predicado sem usá-lo. A eliminação desse predicado não nos impediria de dizer nada que dizemos com ele.

De acordo com o minimalismo (defendido por Paul Horwich), o esquema T é uma equivalência essencial (extensional e necessária), mas não intencional, ou seja, "'p' é verdadeira" e "p" não são sinônimas. O minimalista acredita que o predicado "é verdadeiro" não é eliminável da linguagem sem perda de capacidade expressiva. Segundo o minimalista, o predicado "é verdadeira" é um predicado genuíno que denota uma propriedade genuína, não uma propriedade substancial, mas uma propriedade lógica. (O minimalista tem uma concepção minimalista de predicado e propriedade.*) A função não eliminável do predicado verdade consiste em asserir proposições desconhecidas ou indeterminadas, como, por exemplo, quando alguém diz "A primeira coisa que vou dizer amanhã é verdadeira" ou "Tudo o que eu digo é verdade". sem o predicado "é verdade", não poderíamos construir essas frases e, por isso, perderíamos capacidade expressiva. Segundo o minimalismo, contrariamente ao que pensa Michael Dummett, o conceito de verdade é neutro com relação à controvérsia entre realistas e anti-realistas.

O minimalismo não nega que em alguns casos os portadores de verdade são verdadeiros porque há correspondência com fatos. Ele nega que, mesmo nesses casos, o ser verdadeiro seja essa correspondência. Assim como pintar um objeto de azul o torna azul, mas ser azul não consiste em ser pintado de azul, uma proposição pode ser verdadeira por causa da relação de correspondência com fatos, sem que o ser verdadeiro seja essa relação.

O deflacionismo em geral parece plausível quando examinamos o modo como o predicado "é verdadeiro" (ou "é verdade") é ensinado. Em geral dizemos coisas assim para uma criança: "Se vc disser que está chovendo e estiver chovendo, então o que vc disse é verdadeiro", "Se vc disser que está chovendo e o que vc disse é verdadeiro, então está chovendo". Ou seja, nós damos instâncias do esquema T, (contendo também enunciados matemáticos, éticos e estéticos) para a criança e isso parece suficiente para que ela adquira o conceito.


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* Uma maneira de se explicar a distinção entre propriedade lógica e propriedade substancial é esta: enquanto há condições necessárias e suficientes não-triviais para que algo seja um planeta, que pode ser usadas para se definir "planeta" e são satisfeitas tanto pela Terra quanto por Júpiter, por exemplo, não há condições necessárias e suficientes não triviais para uma proposição seja verdadeira que sejam satisfeitas pelas proposições "2+2=4" e "Júpiter é um planeta", por exemplo. Isso faz de "é um planeta" um predicado que expressa uma propriedade substancial, e de "é verdadeira" um predicado que expressa uma propriedade lógica.


Leituras

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Austin, J.L. (1950) "Truth", Proceedings of the Aristotelian Society, sup. vol. n. 24, pp. 111-28. 
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Horwich, Paul. (1990). Truth. Oxford: Basil Blackwell. JAMES, W. (1909) The Meaning of Truth, New York, Longman Green.
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