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quarta-feira, 8 de abril de 2020

Ética da crença, acrasia epistêmica, pensamento enviesado e fake news


Há uma série de condições epistêmicas que devemos satisfazer para obter crença justificada ou conhecimento. Mas e se não quisermos obter conhecimento ou crença justificada? Há algo de errado nisso? Alguém poderia acreditar que é assunto privado querer ou não querer obter conhecimento ou crença justificada; que deve ficar a critério de cada um querer ou não querer obter conhecimento ou crença justificada; que não podemos exigir ou obrigar as pessoas a obterem conhecimento ou crença justificada. Todavia, uma reflexão sobre a relação entre nossas crenças, nossas ações e suas consequências mostra que está longe de óbvio, para dizer o mínimo, que querer ou não querer obter conhecimento ou crença justificada seja um assunto privado. Primeiramente, vejamos a relação entre nossas crenças e nossas ações.

Imagine que um cão está perseguindo velozmente um coelho em uma trilha na floresta.[1] O cão perde o coelho de vista e, de repente, a trilha se trifurca. O cão então entra mais lentamente na trilha da direita farejando, tentando recuperar o rastro de odor do coelho. Depois de uma dezena de metros ele desiste, por não encontrar o rastro, volta e se embrenha na trilha do meio. Novamente, depois de uma dezena de metros ele desiste, por não encontrar o rastro, volta e, então, sai em disparada na trilha restante da esquerda.

Esse comportamento é a expressão de uma inferência: o silogismo disjuntivo. Sua inferência foi a seguinte:
Ou o coelho tomou a trilha da direita, ou o coelho tomou a trilha do centro, ou o coelho tomou a trilha da esquerda.
O coelho não tomou a trilha da direita.
O coelho não tomou a trilha do meio.
Logo, o coelho tomou a trilha da esquerda. 
Por meio dessa inferência o cão adquiriu a crença de que o coelho tomou a trilha da esquerda. E essa crença então orientou a sua ação: ele saiu em disparada na trilha da esquerda. Isso é o que primeiramente nos interessa: crenças orientam nossas ações; decidimos o que fazer com base no que acreditamos. Também decidimos o que fazer com base no que queremos, nos nossos desejos. Se acreditamos que dois fios desencapados estão eletrificado, se acreditamos que tocando esses fios podemos receber uma descarga elétrica que pode ou nos ferir gravemente ou nos matar e se queremos permanecer vivos e sadios, então decidimos evitar tocar esse fios. Mas se desejamos morrer, então talvez decidamos tocar esses fios. Seja como for, parte do que orienta nossas ações são nossas crenças e nossos desejos.

No caso do cão acima, sua crença foi adquirida por meio de uma inferência. Se a inferência tiver premissas verdadeiras e se for válida ou se, mesmo não sendo válida, suas premissas fornecerem forte evidência para sua conclusão, então ela justifica essa crença, ou seja, garante em algum grau que ela seja verdadeira, com uma probabilidade de acerto acima de uma adivinhação sortuda. Isso aumenta a probabilidade de que o cão encontre o coelho, que é seu objetivo. Se o cão quisesse escolher uma das três trilhas aleatoriamente, sem raciocinar, sem justificação, parece que o único prejudicado seria ele, se ele tivesse má sorte. Mas vejamos um outro exemplo para ver que isso quase nunca é o caso.

Imagine que João seja dono de uma embarcação que transporta pessoas por um rio e está prestes a partir para mais uma viagem.[2] A embarcação está há um bom tempo bastante desgastada pelo uso e precisa de reparos, embora ainda seja navegável. Portanto, a probabilidade de que haja algum problema com a embarcação durante a viagem que esta prestes a começar não é pequena. João sabe disso, mas ele procura se convencer de nada de mal irá acontecer na viagem, pensando que a embarcação já fez viagens naquele estado e nada aconteceu e que ele era uma pessoa que tinha fé em Deus e que Ele, por isso, não permitiria que algo de mal acontecesse com a embarcação. A embarcação naufraga e muitas pessoas morrem. A crença de João que nada de mal aconteceria com a embarcação não apenas não era justificada pelos fatos conhecidos sobre a embarcação como foi obtida por meio falácia do apelo à esperança, que é também um tipo de racionalização, um mecanismo psicológico de defesa que procura dar a falsa aparência da racionalidade a uma crença não-racional. Essa crença orientou a ação de João de autorizar a viagem com a embarcação e essa ação teve como consequência o naufrágio do navio e a morte de vários passageiros. Por isso, João é responsável pelo acidente e pelas mortes. Sua crença injustificada revelou-se falsa e a sua ação baseada nessa crença teve consequências fatais para outras pessoas.

Agora imagine um novo desfecho para a história: a embarcação não naufraga, nada de mal acontece e a viagem chega ao seu final sem problemas, com todos a salvo. Alguns poderiam pensar que, nesse novo desfecho, João não é responsável por nada de errado. Afinal, a viagem transcorreu sem nenhum problema. Todavia, a crença de João, o modo como ela foi obtida e a ação baseada nessa crença são exatamente as mesmas. Portanto, probabilidade de que ocorresse um acidente era exatamente a mesma. A única diferença é que, no segundo desfecho, por pura sorte, a crença de João se revela verdadeira. Sendo assim, mesmo não tendo as consequências fatais que teve no primeiro desfecho, a crença de João foi obtida de uma maneira igualmente injustificada, e ao agir baseando-se nessa crença, ele assumiu um grande risco de causar a morte de outras pessoas. Por isso, sua crença e sua ação são igualmente erradas nas duas versões da história. As consequências reais de sua crença e de sua ação são irrelevantes para se determinar se elas são acertadas ou erradas. Dado que os fatos conhecidos sobre a embarcação indicam uma considerável probabilidade de consequências ruins da crença e ação de João, o correto seria formar uma crença com base apenas no conhecimento desses fatos.

Esse exemplo mostra que, no processo de obtenção de crenças, há regras que não são apenas regras epistêmicas, mas também morais. Para a obtenção de crenças racionais, devemos seguir a seguinte regra, que podemos chamar de princípio da justificação:
(PJ) Acredite que p se e somente se a crença de que p for justificada. 
Essa regra não é apenas uma regra epistêmica. Ela é também uma regra moral. Temos a obrigação moral, não apenas epistêmica, de seguir essa regra, porque nossas ações são baseadas nas nossas crenças e nossas ações têm consequências para as outras pessoas. Embora possa haver casos em que não seguir essa regra não resulte em prejuízo para outras pessoas, esses casos são exceções. Portanto, é prudente seguir essa regra. Crenças, portanto, não são um assunto puramente privado. Somos responsáveis por nossas crenças serem ou não serem justificadas, por seguirmos ou não seguirmos o princípio da justificação.

A ética da crença é a disciplina filosófica que investiga aquelas regras epistêmicas que também são regras morais que devemos seguir na obtenção, revisão e mudança de crenças. O caráter epistêmico dessas regras determina que crenças obtidas de acordo com elas é racional. Mas a falha em seguir essas regras são de dois tipos que devemos distinguir. Ao falhar na obtenção de crenças racionais, podemos obter crenças que ou são não-racionais, ou são irracionais. Toda crença irracional é não-racional, mas não vice versa. Uma crença não-racional é uma crença não justificada, mas que não é incompatível com crenças racionais (justificadas). Se, por exemplo eu acreditar que há vida inteligente em outro planeta, mesmo não tendo justificação para essa crença, ela não é incompatível com nenhuma crença racional. Uma crença irracional não apenas não é justificada, mas é incompatível com ao menos uma crença racional. O erro epistêmico mais grave, portanto, na falha em ser racional, não é ser não-racional, mas é ser irracional. Quem acredita que a Terra é plana, por exemplo, não apenas tem uma crença não-racional, injustificada, mas tem uma crença que é incompatível como muitas crenças racionais e, portanto, é uma crença irracional.

Voltemos ao exemplo da crença de que há vida inteligente em outro planeta. É difícil imaginar que ações poderiam ser orientadas por essa crença. O que poderíamos fazer com base nela? Talvez quem tenha essa crença vote em políticos que estão dispostos a destinar o dinheiro de impostos à pesquisa que visa descobrir vida inteligente em outros planetas, tal como era uma das pesquisas do famoso físico e divulgador da ciência Carl Sagan. E isso pode ter consequências para as demais pessoas, que, de alguma forma, dependam do dinheiro desses impostos. Isso mostra que, embora seja uma falha menor que ter uma crença irracional, ter uma crença não-racional pode ter consequências problemáticas, se basearmos nossas ações nela.

Um outro tipo de exemplo importante de crença não-racional que pode ter consequências problemáticas são aquelas relativas a acusações de crimes. Em alguns casos, a acusação de crime não possui uma boa justificação. Disso não se segue que haja boa justificação para se acreditar que a pessoa acusada não seja criminosa. Talvez não haja uma boa justificação nem para a crença de que a pessoa seja criminosa, nem pra a crença de que ela não seja criminosa. Nesse caso, o mais racional a ser feito é suspender o juízo. Suspender o juízo é justamente nem acreditar em uma proposição, nem acreditar na sua negação. No sistema jurídico brasileiro, quando isso acontece em relação a uma acusação de crime, a pessoa não é considerada culpada. Mas isso não é o mesmo que ser considerada não-culpada ou inocente. Os agnósticos são aqueles que, com relação à existência de Deus, justamente suspendem o juízo. Eles nem acreditam que Deus existe, nem acreditam que Deus não existe, pois acreditam que não há justificação para nenhuma dessas crenças, que nenhuma delas é uma crença racional.

A possibilidade de se suspender o juízo tem a importante função de evitar que cometamos a falácia do apelo à ignorância. Essa falácia é frequentemente cometida por pessoas de inclinação mística. Algumas delas argumentam mais ou menos assim: “A ciência não tem nenhuma explicação para esse fato. Mas aquela teoria mística fornece uma explicação para esse fato. Portanto devemos acreditar naquela teoria mística.” O que motiva esse místico a cometer essa falácia é, primeiramente, a falsa suposição que, dadas as explicações disponíveis para um determinado fato, uma delas deve ser verdadeira. Se você percebe que existe espaço para a suspensão do juízo diante de uma pergunta, que você pode muito bem dizer, justificadamente, “Não sei”, então você percebe que, às vezes, o mais racional a se fazer é admitir que não há nenhuma resposta justificada a uma determinada pergunta.

Os cientistas em geral são muito mais pacientes na busca de uma resposta justificada a uma pergunta dos que os leigos. Há perguntas científicas que demoram séculos ou milênios para serem respondidas. Os gregos antigos, por exemplo, se colocaram a seguinte pergunta: dado que podemos bi-seccionar um ângulo usando régua e compasso, é possível tri-seccionar um ângulo usando a régua e compasso? A resposta a essa pergunta somente foi obtida aproximadamente dois mil anos depois, em 1837, por meio do matemático francês Pierre Laurent Wantzel, que usou a geometria analítica, criada por René Descartes e Pierre de Fermat em 1630. A geometria analítica não existia na Grécia antiga. Wantzel provou que não é possível tri-seccionar um ângulo usando régua e compasso. A propósito, em 1637, Fermat formulou uma série de conjecturas matemáticas, ou seja, proposições matemáticas que pareciam verdadeiras, mas para as quais não havia nenhuma prova matemática. Essas conjecturas ficaram conhecidas como os teoremas de Fermat. Ao longo do tempo, todos os seus teoremas foram provados, exceto um, que passou a ser chamado de o último teorema de Fermat. Esse teorema foi provado apenas em 1995, pelo matemático inglês Andrew Wiles, 358 anos depois de sua formulação.

A possibilidade de se suspender o juízo não deve ser usada como desculpa para não se esforçar para obter crença justificada. Obter crenças justificadas, em boa parte dos casos, é algo que demanda esforço e trabalho. Mesmo assim, seguir o principio da justificação continua sendo uma obrigação moral. Apenas depois de um esforço para a obtenção de crenças justificadas, ou seja, apenas depois de uma investigação para tentar encontrar uma resposta justificada a uma questão é que a opção de suspender o juízo se torna justificada, caso nenhuma resposta justificada seja encontrada.

A fraqueza da vontade de seguir princípios morais chama-se acrasia. No caso do princípio de justificação, essa acrasia não é apenas moral, mas também epistêmica. Essa acrasia frequentemente ocorre quando o assunto é política. Algumas pessoas, para evitar o esforço necessários para se obter crenças justificadas sobre esse assunto, dizem não se importarem com questões políticas. Estes frequentemente dizem que não há diferença entre quaisquer políticos, que são todos igualmente ruins e prejudiciais para a sociedade. Eles geralmente não votam, ou anulam o voto, ou votam em branco. Entretanto, embora nenhuma comunidade política seja uma comunidade de anjos, está longe de óbvio que todos os políticos sejam igualmente ruins e prejudiciais para a sociedade. A escolha de um partido e de um candidato raramente é a escolha daquilo que é o nosso ideal de partido e de candidato. Em boa parte dos casos trata-se da escolha do menor dos males. Seja como for, nada justifica a acrasia epistêmica em assunto políticos, muito pelo contrário: evadir-se de questões políticas tem consequências para os demais cidadãos tanto quanto engajar-se em projetos políticos: se todos que se evadem mudassem de atitude e se esforçassem para obter crenças justificadas sobre os partidos e políticos, talvez o resultado de uma eleição fosse melhor, mesmo que não fosse o ideal.

Quando se trata de crenças empíricas, sua justificação nunca implica logicamente a verdade da proposição que acreditamos (as inferências não-dedutivas são sempre dedutivamente inválidas). Por isso, algumas vezes ocorre a seguinte desafortunada situação: tudo leva a crer em uma determinada proposição, há abundante justificação para se crer nessa proposição e, por isso, a coisa mais racional a se fazer é crer nessa proposição, embora, de fato, ela seja falsa. Em certas circunstâncias, portanto, por azar epistêmico, o mais racional a se fazer é crer em uma proposição falsa, pois, nessas circunstâncias, a crença nessa proposição está justificada. Vejamos isso por meio de um exemplo: imagine que você saiba que um amigo seu costuma usar um automóvel, guardá-lo na garagem da casa onde ele mora sozinho, mandá-lo para a manutenção, comprar acessórios, pintá-lo, que seu amigo se refira a ele como “meu carro”, que vocês já tenham viajado juntos nesse automóvel e você tenha visto ele mostrar os documentos do automóvel a um policial rodoviário, que você nunca tenha visto outra pessoa dirigir o referido automóvel, etc. Isso tudo parece justificar a crença de que seu amigo é o dono do automóvel. Parece que, diante desses fatos, o mais racional seria crer nessa proposição. Agora imagine que você descubra que o dono do automóvel é o pai do seu amigo. Seu amigo tem apenas o usufruto do automóvel. Situações desse tipo acontecem em investigações criminais, algumas vezes, e inocentes são condenados.

É justamente porque tal situação é possível que devemos estar sempre abertos à revisão de nossas crenças e devemos receber de boa vontade novos argumentos contrários a elas. Eles podem, no fim, se revelarem insuficientes para refutar nossas crenças. Mas, eventualmente, eles podem se revelar suficientes. O cultivo do assim chamado espírito crítico envolve uma atitude crítica não apenas em relação às crenças alheias, mas também às crenças de si. Caso contrário, adquirimos o vício cognitivo que se costuma chamar de pensamento enviesado. O pensamento enviesado consiste na tendência, ou viés (dai o seu nome), a dar atenção e buscar apenas aquilo que justifica as crenças de si, negligenciando tudo mais que ameace refutar as crenças de si. O pensamento enviesado geralmente é acompanhado da falta de caridade interpretativa em relação àquele que apresenta uma crítica negativa às nossas crenças. Mesmo que nos engajemos em um debate com alguém que acredita ter uma refutação de nossas crenças, se não temos caridade interpretativa com o que diz nosso crítico, dificultaremos ao máximo que seu argumento atinja nossa compreensão com a sua máxima força. 

O pensamento enviesado pode ter várias causas. Se, por exemplo, fomos criados entre pessoas que amamos e se tais pessoas, por meio da nossa educação informal, nos transmitiram e alimentaram certas crenças sobre assuntos importantes, como política, religião, costumes, etc., então essas crenças passam a ter um valor sentimental para nós. Isso dificulta muito a revisão de tais crenças, porque dificulta muito considerar a possibilidade de que tais crenças sejam falsas. Revisar essas crenças pode resultar em conflitos com aqueles que amamos. Essa dificuldade para revisar nossas crenças é tão maior quanto mais essas crenças determinarem a nossa identidade social, ou seja, o sentimento de pertencer a um certo grupo social, no qual estão nossos familiares, nossos amigos de infância, etc.. Revisar esse tipo de crença implica a possibilidade de não nos sentirmos mais pertencentes a esse grupo social, que determinava nossa identidade social até então. E isso não é uma mudança fácil, sem sofrimentos, sem atribulações. Por isso, a inércia educacional e social, ou seja a tendência a mantermos aquilo que aprendemos na educação informal e que é reforçado por nosso grupo social é muito grande e, por isso, frequentemente é causa de um pensamento enviesado.

Outra causa do pensamento enviesado é o que se pode chamar de dogmatismo (ou fanatismo) da crença justificada, que é fruto de uma má compreensão da natureza da justificação. O dogmatismo, em um sentido desse termo, é a propriedade daquele que possui dogmas, ou seja, crenças que são mantidas mesmo frente a argumentos e evidências refutadoras. Como vimos, em algumas circunstâncias o mais racional é crer em determinada proposição porque essa crença é, de fato, justificada, mesmo que, por azar, seja falsa. Mas alguns acreditam falsamente que o fato de estarem justificados em ter uma determinada crença implica que essa crença é irrefutável e, portanto, irrevisável. Afinal como poderia ser possível refutar uma crença justificada? É claro que essa falácia gera todo tipo de atitude negativa e resistência em relação a qualquer tentativa de se refutar a crença de si. Mas, como também vimos, uma crença justificada pode se revelar falsa. Por isso, mesmo estando justificado em crer em uma determinada proposição, não devemos jamais abandonar nossa disposição para revisar nossa crença nessa proposição, sob o risco de nos tornarmos dogmáticos com o pensamento enviesado.

O pensamento enviesado pode também ser causado pela vaidade intelectual. Aquele que tem zelo excessivo por suas próprias crenças, que tem dificuldade para reconhecer que está errado, que suas crenças são falsas, por medo de parecer pouco inteligente, esse provavelmente pensará enviesadamente e não aplicará o princípio de caridade. A vaidade intelectual é alimentada pela errônea idéia de que a crítica tem apenas aspectos negativos. Todavia, poucas coisas demonstram mais honestidade intelectual do que a disposição para abandonar uma crença frente a argumentos que a refutam. Além disso, alguns erros somente podem ser cometidos por quem é inteligente o suficiente para, por um lado, compreender certos problemas difíceis de se compreender, devido à sua complexidade, e, por outro, para compreender e propor soluções também difíceis de compreender, pela mesma razão. O fato de que uma pessoa se engana, comete um erro teórico, não implica que essa pessoa não seja inteligente.

Ludwig Wittgenstein, por exemplo, foi um filósofo austríaco que viveu na primeira metade do século XX. Sua obra contém dois livros principais. O segundo livro contém uma crítica severa ao primeiro. Mas ambos os livros foram muito influentes contribuíram para o surgimento de duas escolas filosóficas profícuas, mas, em muitos aspectos, incompatíveis entre si: o positivismo lógico ou empirismo lógico e a filosofia da linguagem ordinária. Esse exemplo mostra que, mesmo que um desses livros contenha erros filosóficos, não foram erros óbvios, elementares, que foram cometidos por falta de inteligência. Muito pelo contrário: ele tornou-se o ponto de partida de uma escola filosófica profícua. Mas se foram erros, foram erros, e, uma vez percebidos, devem, como obrigação moral, ser admitidos.

A acrasia epistêmica e o pensamento enviesado são causas de um fenômeno contemporâneo: a grande difusão de fake news. "Fake news" é um termo inglês que significa notícia falsa ou pseudo-notícia. Os criadores de fake news, por várias razões, mas geralmente políticas, têm a intenção explícita de enganar as pessoas fazendo-as acreditar que certos textos, ou imagens, ou vídeos, ou áudios veiculam notícias confiáveis, quando, de fato, são falsidades. Nos últimos anos, graças ao surgimento e multiplicação das redes sociais e aplicativos de mensagens, a difusão de fake news tem se ampliado e tem influenciado a formação das crenças de boa parte das pessoas, determinando suas decisões políticas e, consequentemente, os resultados de eleições, tanto no Brasil quanto em outros países.

Obter conhecimento é um processo que consome tempo, exige esforço e pode ser frustrante e doloroso. Mas não há terceira alternativa, ou nos engajamos nesse processo, ou temos que contar apenas com a sorte ou acaso para que nossas crenças sejam verdadeiras. Todavia muitos estão simplesmente iludidos que possuem conhecimento. Essa ilusão é parcialmente explicada pela acrasia epistêmica e pelo pensamento enviesado. A acrasia epistêmica faz com que a pessoa não realize o esforço necessário para a aquisição de conhecimento fazendo com que a sua aquisição de crenças não seja realizada por meio dos melhores critérios epistêmicos possíveis. O resultado são crenças injustificadas. O pensamento enviesado reforça essas crenças fazendo com que a pessoa dê atenção apenas àquilo que é favorável às suas crenças e não dê atenção àquilo que que é desfavorável às suas crenças. As fake news têm sua difusão facilitada por essa combinação de acrasia epistêmica e pensamento enviesado. Todavia, como vimos, a acrasia epistêmica é não apenas um erro epistêmico, mas também um erro moral.

A melhor maneira de se combater a acrasia epistêmica e o pensamento enviesado é uma boa educação, informal e formal, que desenvolva o hábito de seguir o princípio da justificação, de receber com boa vontade as críticas honestas às crenças de si, de suspender o juízo quando as investigações não encontram uma resposta justificada a uma pergunta, de ter caridade interpretativa com nosso crítico, de não alimentar a vaidade intelectual, de vencer a inércia educacional e social, enfim, uma educação para as virtudes epistêmicas e morais. Se uma pessoa não recebeu uma tal educação, então é difícil fazê-la abandonas seus vícios epistêmicos e morais, justamente porque esses vícios são como que autoimunes: eles prejudicam justamente a competência epistêmica que alguém deve ter para compreender a situação viciosa em que se encontra.

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[1] Se não me falha a memória, algo semelhante a esse experimento mental é atribuído aos estóicos. Mas não consegui encontrar a referência disso.

[2] Esse experimento mental é, no essencial, o mesmo que Clifford apresentou em seu famoso artigo "A Ética da Crença", cuja discussão deu origem à disciplina filosófica de mesmo nome.


2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto meu amigo. Você acha que seria válido diferenciar uma pura preguiça ou negligência em buscar evidências para as crenças - caso que poderia ser chamado de pusilanimidade epistêmica - da acrasia, na qual o indivíduo já tem alguma evidência de que sua crença é furada mas persiste (geralmente por um desejo) com a crença? Abraços!

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    1. Obrigado, meu amigo! Eu defini "acrasia epistêmica" como a fraqueza da vontade para seguir princípios epistêmicos. Esses princípios implicam não apenas a busca de evidências, mas também seguir o princípio de caridade e não ser negligente com evidências contrárias às crenças de si. Essa fraqueza pode ter várias origens, desde a pura e simples preguiça até o auto-engano diante evidências contrárias.

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