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terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Normatividade do significado, ironia e mentira


A discussão sobre a normatividade do significado teve origem na interpretação de Kripke das Investigações Filosóficas de Wittgenstein, apresentada no livro Wittgenstein on Rules and Private Language. A normatividade do significado é o suposto fato que, uma vez que usamos uma expressão linguística com um certo significado, certas normas ou regras em vigor determinam o uso dessa expressão.

Paul Boghossian (em um texto não publicado) distingue dois sentidos em que se pode dizer que o significado é normativo. Em um sentido, a normatividade é um caráter prescritivo do significado, em outro sentido ela é um caráter avaliativo do significado. Quando se trata de um caráter avaliativo, o significado é um padrão de correção do uso da expressão linguística. Se significo adição por meio de "+", então é correto dizer "125" em resposta à pergunta "68+57=?", dizer isso está de acordo com esse significado, as demais ações são incorretas, estão em desacordo com esse significado. Quando se trata de um caráter prescritivo, o significado gera obrigações subjetivas. Por exemplo: se significo adição por meio de "+", então não é apenas correto dizer "125" em resposta à pergunta "68+57=?", mas estou obrigado a dizer isso, isso é o que devo dizer, e estou proibido de dizer qualquer outra coisa, qualquer outra coisa é o que não devo dizer.  Boghossian argumenta que do fato de o significado ser normativo no sentido avaliativo não se segue que ele seja normativo no sentido prescritivo. Em outras palavras, do fato que certos usos de uma expressão são corretos, estão de acordo com o seu significado, não se segue que quem a usa tem a obrigação de usá-la corretamente. Para justificar essa tese, Boghossian cita dois usos da linguagem em que as expressões são usadas com um determinado significado, embora esses usos sejam incorretos, em desacordo com o seu significado. Estes usos ocorrem quando somos irônicos ou quando mentimos. Se dizemos ironicamente que um determinado objeto está limpo, quando de fato ele está sujo, usamos a palavra "limpo" em desacordo com o seu significado. Mas assim o fazemos justamente porque queremos ser irônicos. Nosso interlocutor compreenderá a ironia quando perceber a incompatibilidade entre o que acreditamos e o que dizemos. Se mentimos que um determinado objeto está limpo, quando de fato ele está sujo, também usamos a palavra "limpo" em desacordo com o seu significado, justamente porque queremos mentir, ou seja, levar nosso interlocutor a acreditar no que acreditamos não ser o caso. O sucesso no ato de mentir tem como condição necessária que nosso interlocutor não perceba a incompatibilidade entre o que acreditamos e o que dizemos.

Todavia, quero argumentar contra Boghossian que a ironia e a mentira não são contra-exemplos da normatividade prescritiva do significado. Para começar, gostaria de chamara atenção para o fato de que a normatividade do significado em questão é a normatividade da asserção. Quando asserimos, usamos uma frase do modo indicativo para expressar uma proposição. Todavia, e esse é meu ponto discórdia com Boghossian, não fazemos apenas isso. Quando asserimos, o uso que fazemos da frase indicativa manifesta uma crença que possuímos e, portanto, a asserção envolve, necessariamente, a sinceridade. Aprendemos a asserir seguindo a seguinte regra:

(A) Assira que p se e somente se você acredita que p.[1]

Quando aprendemos a asserir, aprendemos a seguir o objetivo de dizer a verdade e, portanto, de dizer aquilo que tomamos como verdadeiro. É claro que podemos tomar uma proposição como verdadeira e ela ser falsa. Mas se, por engano, a tomamos como verdadeira, ao proferir uma frase que a expressa, estamos perseguindo, embora de modo falho, o objetivo primário da asserção: dizer a verdade. A asserção é o ato primário do uso de frases no modo indicativo. Todos os demais usos são parasitários da asserção. Não poderíamos aprender a usar frases do modo indicativo por meio da ironia e da mentira. [2]

Mas o que são os atos de ser irônico e de mentir, então? Não são asserções? Exatamente, não são. Ironia e mentira são fingimentos de asserções. A diferença entre ambas é que nosso interlocutor, se compreendeu nossa ironia, sabe que estamos fingindo asserir, ao passo que, no caso da mentira, se ela for bem sucedida, ele não sabe que se trata de fingimento. Ademais tanto a ironia quanto a mentira somente são atos de comunicação bem sucedidos se nosso interlocutor souber que o ato que estamos fingindo realizar, no caso da ironia, ou que ele crê falsamente que estamos realizando, no caso da mentira, ou seja, a asserção, tem como objetivo dizer a verdade. Quando temos sucesso ao sermos irônicos, nosso interlocutor percebe que estamos fingindo uma asserção, ou seja, que, deliberadamente, estamos dizendo algo falso (ou ao menos que tomamos como falso) e que, portanto, não estamos tentando dizer a verdade. Quando temos sucesso ao mentir, nosso interlocutor não sabe que estamos fingindo, e por isso, acredita falsamente que estamos seguindo a regra (A) e, consequentemente, que estamos tentando dizer a verdade dizendo aquilo que tomamos como verdadeiro.

Asserir e fingir asserção não estão um para o outro tal como prometer e fingir uma promessa tampouco estão. Prometer e asserir estão um para o outro assim como fingir uma asserção está para fingir uma promessa. A frase que usamos para mentir, por exemplo, tem significado, é compreensível para nosso interlocutor. Mas ela assim o é porque, quando somos bem sucedidos, nosso interlocutor acredita que estamos cumprindo com nossa obrigação subjetiva constituinte do significado de nossa frase.

Em suma, no que concerne à asserção, o significado possui não apenas normatividade avaliativa, mas também normatividade prescritiva, e é essa normatividade prescritiva que dá sentido aos atos de fingir a asserção, seja na ironia, seja na mentira.

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[1] Essa caracterização da asserção precisa ser qualificada. Quando asserimos disjunções ou condicionais, estamos fazendo uso de frases indicativas que compõem frases complexas. Entretanto, não estamos asserindo essas frases componentes. Por isso, não estamos seguindo a regra (A) ao usá-las como componentes da frase complexa. Mas tais frases componentes estão sendo usadas para se asserir a frase complexa, e ao fazer isso estamos seguindo a regra (A). Mas somente nos tornamos capazes de asserir fases complexas formadas por frases que não asserimos porque primeiro aprendemos a asserir frases e porque esse uso de frases complexas é um uso para fazer asserções. Sendo assim, embora as frases componentes não estejam sendo usadas para asserir seu conteúdo, seu uso é entendido como parte de um ato de asserir, de seguir a regra (A).

[2] A rigor, quando dizemos em um tribunal que juramos dizer a verdade, o que estamos prometendo, na verdade, é a sinceridade.

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