Paul Horwich |
O feito singular do controverso filósofo do início do século XX, Ludwig Wittgenstein, foi ter discernido a verdadeira natureza da filosofia ocidental – o que há de especial nos seus problemas, de onde eles vem, como eles deveriam ou não deveriam ser tratados e o que se pode e o que não se pode obter digladiando-se com eles. As respostas únicas e perspicazes a essas meta-questões é o que dá ao seu tratamento de questões específicas nessa disciplina – a respeito da linguagem, experiência, conhecimento, matemática, arte e religião entre outras – um poder de iluminação que não pode ser encontrado no trabalho de outros.
Deve-se admitir que poucos concordariam com essa avaliação idílica – certamente não muitos filósofos profissionais. Aparte um círculo pequeno e ignorado de apoiadores comprometidos, a opinião comum hoje em dia é que esta forma de escrever é auto-indulgentemente obscura e que por trás dos slogans contagiantes há pouco valor intelectual. Mas essa rejeição disfarça o que bem claramente é a real causa da impopularidade de Wittgenstein dentro dos departamentos de filosofia: a saber, sua completa rejeição da disciplina tal como ela é tradicionalmente e atualmente praticada; sua insistência em que ela não pode nos dar a espécie de conhecimento geralmente considerado como sua razão de ser.
Wittgenstein afirma que não há nenhum reino de fenômenos cujo estudo seja a ocupação específica de um filósofo, e sobre os quais ele ou ela deveria elaborar profundas teorias a priori e sofisticados argumentos que as apoiam. Não há nenhuma impressionante descoberta a ser feita sobre os fatos não aberta aos métodos da ciência, mas mesmo assim acessível “da poltrona” através de alguma mistura de intuição, razão pura e análise conceitual. De fato, toda a idéia de uma disciplina que poderia obter tais resultados é baseada em confusão e pensamentos desejosos.
Essa atitude está em total oposição à visão tradicional, que continua a prevalecer. A filosofia é respeitada, até mesmo exaltada, por sua promessa de fornecer percepções fundamentais sobre a condição humana e o caráter último do universo, levando a conclusões vitais sobre como devemos arranjar nossas vidas. É tomado como certo que há um profundo entendimento a ser obtido sobre a natureza da consciência, de como o conhecimento do mundo exterior é possível, sobre se nossas decisões podem ser verdadeiramente livres, sobre a estrutura de qualquer sociedade justa, e assim por diante – e que o trabalho da filosofia é fornecer tal entendimento. Não é por isso que somos tão fascinados por ela?
Se é por isso, então estamos ludibriados e fadados a nos desapontarmos, diz Wittgenstein, pois estes são meros pseudo-problemas, os infames produtos de ilusões linguísticas e pensamento confuso. Portanto, deveria ser inteiramente não surpreendente que a “filosofia”, ao almejar resolvê-los, tenha sido marcada por controvérsia perene e falta de progresso decisivo – por um fracasso embaraçoso, depois de mais de 2000 anos, para resolver qualquer de suas questões centrais. Por conseguinte, a teorização filosófica tradicional deve dar lugar a uma árdua identificação de suas tentadoras, mas desorientadas, pressuposições e a um entendimento de como nós primeiramente chegamos a considera-las como legítimas. Mas nesse caso, ele pergunta: “De onde [nossa] investigação obtém sua importância, dado que ela parece apenas destruir tudo que é interessante, isto é, tudo que é grande e importante? (Por assim dizer, todas as construções, deixando para trás apenas pedaços de pedras e escombros)”. E ele responde: “O que estamos destruindo nada mais são do que castelos de cartas e estamos clarificando o fundamento da linguagem sobre os quais eles repousavam”.
Dado esse extremo pessimismo sobre o potencial da filosofia – talvez equivalente à negação de que exista uma tal disciplina – é dificilmente surpreendente que “Wittgenstein” seja pronunciado com desprezo na maior parte dos círculos filosóficos. Pois quem gosta de ser informado de que o trabalho de sua vida é confuso e sem sentido? Desse modo, até mesmo Bertrand Russell, seu primeiro professor e apoiador entusiasta, foi eventualmente levado a reclamar de modo irritadiço que Wittgenstein parecia ter “cansado do pensamento sério e inventado uma doutrina que tornaria essa atividade desnecessária.”
Mas que doutrina notória é essa e ela pode ser defendida? Nós a podemos resumir a quatro afirmações correlacionadas:
- A primeira é que a filosofia tradicional é cientificista: seus objetivos primários, que são chegar a princípios simples e gerais, descobrir explicações profundas e corrigir opiniões ingênuas, são tomados das ciências. E isso é indubitavelmente o caso.
- A segunda é que o caráter não-empírico (“poltrona”) da investigação filosófica – seu foco na verdade conceitual – está em tensão com seus objetivos. Isso é assim porque nossos conceitos exibem uma complexidade e variabilidade altamente resistentes a teorias. Eles evoluíram não por causa da ciência e seus objetivos, mas antes para dar conta das contingências interativas da nossa natureza, nossa cultura, nosso ambiente, nossas necessidades comunicacionais e nossos outros propósitos. Como consequência disso, os comprometimentos que definem os conceitos individuais raramente são simples ou determinados, e diferem dramaticamente de um conceito para outro. Ademais, não é possível (como o é em domínios empíricos) acomodar complexidade superficial por meio de princípios simples em um nível mais básico (p.ex. microscópico).
- A terceira afirmação principal da metafilosofia de Wittgenstein – uma consequência imediata das duas primeiras – é que a filosofia tradicional é necessariamente infestada de excessiva simplificação; analogias são inflacionadas de modo não razoável; exceções a regularidades simples são erroneamente rejeitadas.
- Portanto – a quarta afirmação – uma abordagem digna da disciplina deve evitar a construção de teorias e ser, em vez disso, meramente “terapêutica”, confinada a expor as suposições irracionais sobre as quais investigações com pretensões teóricas estão baseadas e as conclusões irracionais às quais elas levam.
Considere, por exemplo, a questão paradigmaticamente filosófica “O que é verdade?”. Essa provoca perplexidade, pois, por um lado, ela demanda uma resposta da forma “Verdade é tal e tal coisa”, mas, por outro lado, a despeito de séculos de procura, nenhuma resposta aceitável dessa forma jamais foi encontrada. Já tentamos a verdade como “correspondência com os fatos”, “provabilidade”, como “utilidade prática” e como “consenso estável”; mas todas se mostraram defeituosas de um jeito ou de outro – ou circular, ou sujeita a contra-exemplos. Reações a este impasse incluíram uma variedade de propostas teóricas. Alguns filósofos foram levados a negar que haja algo como uma verdade absoluta. Alguns sustentaram (insistindo em algumas das definições acima) que embora a verdade exista, ela carece de certos aspectos que ordinariamente são atribuídos a ela – por exemplo, que a verdade algumas vezes pode ser impossível de descobrir. Alguns inferiram que a verdade é intrinsecamente paradoxal e essencialmente incompreensível. E outros persistiram na tentativa de elaborar uma definição que se ajuste a todos os dados intuitivos.
Mas, da perspectiva de Wittgenstein, cada uma dessas três primeiras estratégias atropela nossas convicções fundamentais sobre a verdade, e a quarta tem muito pouca probabilidade de ser bem sucedida. Em vez disso, deveríamos começar ele pensa, por reconhecer (como mencionado acima) que nossos vários conceitos desempenham diferentes papéis em nossa economia cognitiva e (respectivamente) são governados por diferentes princípios de espécies diferentes. Portanto, sempre foi um erro extrapolar do fato que conceitos empíricos, tais como vermelho, ou magnético, ou vivo, representam propriedades com naturezas subjacentes especificáveis para a pressuposição de que a noção de verdade deve representar uma tal propriedade também.
O pluralismo conceitual de Wittgenstein nos coloca em posição de reconhecer a função idiossincrática dessa noção, e de inferir que a própria verdade não será redutível a nada mais básico. Mais especificamente, podemos ver que a função do conceito na nossa economia cognitiva é meramente para servir como instrumento de generalização. Ele nos permite dizer coisas como “As últimas palavras de Einstein eram verdadeiras” e não ficar presos a “Se as últimas palavras de Einstein foram que E=mc2, então E=mc2; e se suas últimas palavras foram que armas nucleares deveriam ser banidas, então armas nucleares deveriam ser banidas; ...e assim por diante”, que tem a desvantagem de ser infinitamente longa! De modo similar, podemos usá-lo para dizer: “Deveríamos querer que nossas crenças sejam verdadeiras” (em vez de passar dificuldade com “Deveríamos querer que, se acreditamos que E=mc2, então E=mc2; e que, se acreditamos... etc.”) Podemos ver também que esse tipo de utilidade depende de nada mais do que a atribuição de verdade a um enunciado ser obviamente equivalente ao próprio enunciado - por exemplo: “É verdade que E=mc2” é equivalente a “E=mc2”. Dessa forma, a posse do conceito de verdade parece consistir na apreciação dessa trivialidade, em vez do domínio de qualquer definição explícita. A busca tradicional por uma tal definição (ou por alguma outra forma de análise reducionista) foi uma caçada a quimeras, um pseudo-problema. A verdade emerge tão excepcionalmente não-profunda como excepcionalmente não-misteriosa.
Este exemplo ilustra os componentes chave da metafilosofia de Wittgenstein e sugere como detalhá-la um pouco mais. Problemas filosóficos se originam tipicamente do choque entre os aspectos inevitavelmente idiossincráticos de conceitos com propósitos especiais – verdade, bom, objeto, pessoa, agora, necessário – e a cientificisticamente guiada insistência na uniformidade. Ademais, as várias espécies de manobras teóricas designadas para resolver tais conflitos (formas de ceticismo, revisionismo, misteriosismo e sistematização conservadora) não são apenas irracionais, mas desmotivadas. Os paradoxos que elas respondem deveriam, em vez disso, ser resolvidos meramente por meio da contemplação dos erros da perversa generalização excessiva da qual eles se originaram. E a fonte fundamental dessa irracionalidade é o cientificismo.
Como Wittgenstein coloca no “The Blue Book”:
Nossa ânsia por generalidade tem [como uma] fonte... nossa preocupação como o método da ciência. Eu tenho em mente o método de reduzir a explicação dos fenômenos naturais ao menor número possível de leis naturais; e, na matemática, de unificar o tratamento de diferentes tópicos usando-se uma generalização. Filósofos constantemente veem o método da ciência diante de seus olhos, e estão irresistivelmente tentados a perguntar e responder do modo como a ciência o faz. Essa tendência é a verdadeira fonte da metafísica e leva os filósofos para a completa escuridão. Quero dizer aqui que nunca pode ser nosso trabalho reduzir qualquer coisa a qualquer outra, ou explicar alguma coisa. A filosofia é “puramente descritiva”.
Estas idéias radicais não são corretas de maneira óbvia e podem, num exame mais próximo, mostrarem-se erradas. Mas eles merecem receber este escrutínio – serem levadas mais a sério do que são. Sim, a maior parte de nós estivemos interessados em filosofia apenas por causa da sua promessa de fornecer precisamente a espécie de percepções teóricas que Wittgenstein argumenta serem ilusórias. Mas tais esperanças não são nenhuma defesa contra suas críticas. Ademais, se ele se mostrar correto, suficiente satisfação deve ser encontrada no que ainda podemos obter – clareza, desmistificação e verdade.
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Paul Horwich professor de filosofia da New York University. Ele é autor de vários livros, incluindo Reflections on Meaning, Truth-Meaning-Reality e, mais recentemente, Wittgenstein’s Metaphilosophy.
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Publicado originalmente em 3 de Março de 2013 em The Stone, de Opinator, uma seção do The New York Times. Minha tradução.
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