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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Falácia normativista e as lutas sociais


O termo "falácia naturalista" algumas vezes é usado para se referir ao que também é chamado de problema do "deve" e do "é", embora também designe uma falácia analisada por Edward Moore, que consiste na tentativa de reduzir os conceitos morais a conceitos naturais. Aqui uso o termo no primeiro sentido. A falácia naturalista consiste em inferir afirmações sobre como as coisas devem ser, afirmações normativas, de afirmações sobre como as coisas são. Por exemplo:
Há diferenças biológicas entre homens e mulheres além das diferenças sexuais.
Logo, homens e mulheres devem ter direitos civis distintos.
Não quero discutir se há ou não exceções em que podemos fazer uma inferência válida desse tipo. Mas o exemplo acima é um claro caso de inferência inválida. Ela é geralmente cometida por quem defende o que se costuma chamar de darwinismo moral.

Há um outro tipo de falácia que é uma versão contrária à falácia naturalista. Eu a chamo de falácia normativista. Ela consiste em inferir afirmações sobre como as coisas são de afirmações sobre como as coisas devem ser. Por exemplo:
Homens e mulheres devem ter os mesmos direitos civis.
Logo, não há diferenças biológicas entre homens e mulheres além das diferenças sexuais.
Mas quem comete esse tipo de falácia? Infelizmente ela tem sido cometida com cada vez mais frequência por alguns daqueles que lutam causas sociais justas, como a luta contra o machismo, a luta contra o racismo, a luta contra a homofobia, e outras. O que motiva essa falácia, entre outras coisas, é o compromisso com uma certa agenda ético-política, um conjunto de afirmações normativas, sobre como o mundo social deve ser, a partir da qual o ativista julga como o mundo é, seja o mundo social, seja o natural (mais sobre a diferença entre social e natural a seguir). Mas o mundo natural está pouco se lixando para nossas agendas ético-políticas. Isso não deveria causar nenhum alvoroço, pois a lição que a falácia naturalista deveria nos ensinar é que nossas regras morais e políticas não podem ser nem justificadas apenas a partir dos fatos da natureza, nem revogadas com base neles, salvo, é claro, se parte do conteúdo ou uma suposição dessas regras for uma afirmação falsa sobre o mundo natural. Para continuar no exemplo das falácias acima, diferenças biológicas não implicam, por si só, diferenças ético-políticas.

A falácia normativista é cometida com mais frequência quando se trata de discutir se certas diferenças e padrões sociais têm ou não têm uma origem biológica. Parte do estudo para decidir essa questão consiste num estudo histórico-sociológico dessas diferenças e padrões. Mas é um erro pensar que isso é suficiente. Uma das causas desse erro é o desejo de mostrar que as referidas diferenças são elimináveis e os referidos padrões de comportamento mutáveis porque são puras "construções sociais", tese que seria justificada apenas por uma investigação histórico-sociológica. Mas aqui há duas suposições problemáticas. Uma delas é achar que o fato de uma coisa ser uma construção social implica que essa coisa não tem uma origem biológica. A segunda suposição é uma versão generalizada da primeira: pensar que a sociedade não faz parte do mundo natural, que ela não tem uma história natural. Nenhuma dessas suposições é óbvia. E para decidirmos se são verdadeiras, precisamos estudar também biologia, o que inclui a biologia evolutiva. Alguns temem os resultados desses estudos porque temem que isso tenha implicações ético-políticas, como se o conhecimento da gênese biológica de nosso comportamento social fosse uma justificação desse comportamento. Ou seja, o que leva alguns a cometer a falácia normativista é o temor de que sua agenda ético-política seja atacada por falácias naturalistas.

Um exemplo muito claro de como o conhecimento da nossa evolução não tem implicações ético-políticas é a discussão em torno de um certo argumento contra o veganismo. O argumento infere que devemos comer carne do fato que o consumo de carne dos nossos antepassados é uma das coisas que contribuiu causalmente para que tenhamos o cérebro altamente evoluído que temos. Mas o que possibilitou a evolução do nosso cérebro foi o consumo de proteína. E agora que ele está assim evoluído, podemos usá-lo para saber sobre a sua evolução e saber que a proteína que o ajudou a evoluir poderia ter sido retirada de outras fontes, embora não soubéssemos disso no passado e embora essas outras fontes talvez não estivessem tão facilmente disponíveis quanto a carne. O conhecimento de que o consumo de carne desempenhou um papel importante na nossa evolução nem implica que devemos comer carne, nem o contrário.

O temor que o resultado de investigações da ciência natural tenham implicações ético-políticas é infundado. Ele pode ser usado falaciosamente, claro. Mas não é uma boa justificação para a não produção desse conhecimento argumentar que assim evitamos o seu uso falacioso.

2 comentários:

  1. O perigo de usarmos argumentos da lógica formal, em forma isolada, para abordar temas, de violências sociais, tão melindrosos, como machismo, feminismo, racismo, homofobia... como exemplos explicáveis da simples "lógica do raciocínio", sem levar em consideração questões históricas das sociedades em constantes construções e transformações... È cair no na simples aparência do tendencioso. Visto que a filosofia independente DEVE ESTAR livre de "crenças" (teológicas, científicas ou políticas), devemos nos apoiar nos argumentos históricos, da construção epistemológica das ciências humanas, sociais e jurídicas, onde o necessário positivismo lógico foi, aos poucos, sendo superado pelo neo-positivismo.
    Analisar a sociedade brasileira, na atualidade, requer um mínimo de alternativas que flexibilizem nosso "racionalismo ético", pois conforme Nietzsche, vivemos um processo de "transvalorações" morais e esse processo transpessoal, transnacional que culmina no "emotivismo ético", subverte a linearidade da lógica ética, moral, legal e política, impondo uma inversão da política à tolerante ética, mesmo sem adesão absoluta de todos os cidadãos.
    O assunto se torna mais "nitroglicerínico" quando no diálogo dos opostos, sem extremar os opostos falaciosos de ambos discursos dogmáticos, não se tem juridicamente a noção de "direito de personalidade" e individualidade, suprimindo o "ser" ético, numa epocal moralidade vigente.
    Numa questão de encaminhamento, devemos buscar, em resgate, a "dúvida metódica", da "modernidade", em Descartes e o seu Discurso do Método Científico, também aplicado às ciências humanas e jurídicas.
    Sem esquecer que mesmo onde "ser" diferente da maioria dogmática, possa postular uma "pós-modernidade", ser livre das "algemas" dos sistemas de crenças (teológicas, científicas ou políticas), remete-nos à idade clássica da República e do "mito da caverna" de Platão.
    Bom dia e um feliz 2016 a todo(a)s!

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    1. Desculpe, não sei se entendi. Isso é uma crítica a algo que eu disse?

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