No Tractatus, Wittgenstein queria mostrar a natureza puramente formal das relações lógicas (incompatibilidade, implicação) entre proposições. "Puramente formal" significa aqui que estas relações não dependiam do conteúdo particular de nenhuma proposição, embora dependessem de que proposições tenham conteúdo. A determinação dessas relações lógicas, portanto, poderia ser feita sem o exame ou análise de nenhum conteúdo proposicional. Por isso, esse determinação poderia ser feita de forma duas vezes a priori: não apenas independentemente da experiência, mas também independentemente da análise lógica completa de qualquer proposição particular.
A análise lógica completa de uma proposição é aquela que chega a proposições que não podem ser mais analisadas: as proposições elementares. As proposições elementares, claro, são complexas, na medida em que são a combinação de certos elementos. Mas esses elementos são logicamente simples e não podem mais ser analisados. Wittgenstein chamou esses elementos pelo enganador termo "nomes". Esse termo é enganador porque sugere que no nível elementar não há termos gerais, mas apenas termos singulares. Wittgenstein deixou essa questão em aberto. Nomes são quaisquer que sejam os elementos logicamente simples de uma proposição elementar. O que seria um exemplo de nome? Wittgenstein não sabia porque nem ele, nem ninguém tinha até então analisado completamente qualquer proposição, ninguém tinha chagado até o fim da análise lógica de qualquer proposição, tal como essa análise era concebida a priori no Tractatus. Ele sabia a priori apenas que era o que deveria ser encontrado no final da análise de uma proposição.
Os nomes de uma proposição elementar, seus elementos simples, representam elementos simples da realidade. Wittgenstein chamou esses elementos por outro termo enganador: "objetos". Esse termo é enganador porque sugere que na realidade há apenas indivíduos e nenhum entidade universal. Wittgenstein também deixou essa questão em aberto. Objetos são quaisquer que sejam os elementos simples da realidade representados pelos nomes. Exemplos de objetos estavam indisponíveis pela mesma razão que exemplos de nomes estavam. A proposição elementar diz que os objetos que ela representa estão ligados. Se eles estiverem ligados, a proposição é verdadeira. Se não estiverem ligados, ela é falsa. Mas mesmo sendo falsa ela tem sentido, porque o seu sentido é a representação dessa ligação de objetos, ligação essa que Wittgenstein denomina estado de coisas. portanto, quando o estado de coisas que a proposição elementar representa existe, é um fato, então a proposição é verdadeira, caso contrário ela é falsa.
Há uma condição formal para que os nomes representem objetos. Embora simples, os objetos possuem uma espécie de multiplicidade modal. Todo objeto possui uma totalidade de possibilidades combinatórias, de ligação, com outros objetos. Essa totalidade de possibilidades combinatórias é a forma do objeto. A ligação efetiva de objetos é uma estrutura. Portanto, a forma de um objeto é a totalidade das possíveis estruturas que podem ser formadas com esse objeto. Para que um nome represente um objeto, as suas possibilidades combinatórias com outros nomes, sua forma, devem representar as possibilidades combinatórias desse objeto. Em outras palavras: a forma do nome deve espelhar, por assim dizer, a forma do objeto, para que aquele seja o nome deste.
Nesse ponto, algo dito no início do texto pode ser reformulado: as relações lógicas entre proposições poderiam, segundo o Tractatus, ser determinadas independentemente do conhecimento do conteúdo das proposições elementares e, portanto, independentemente do conhecimento das formas dos nomes e dos objetos. Mas isso somente seria possível se as formas dos nomes e dos objetos não determinassem nenhuma relação lógica entre as proposições elementares. Se o objeto a não puder se combinar com os objetos b e c ao mesmo tempo, por exemplo, embora possa se combinar com b e c sucessivamente, então as proposições elementares "a-b" e "a-c" são logicamente incompatíveis, isto é, não podem ser ambas verdadeira. Por isso, "a-b" implica logicamente a negação de "a-c". Essas relações lógicas seriam determinadas pelas formas de a, b e c, e, portanto, pelo conteúdo das proposições "a-b" e "a-c". Sendo assim, o projeto tractariano de mostrar a natureza puramente formal das relações lógicas entre as proposições dependia da tese que as proposições elementares eram logicamente independentes entre si. Dizer que elas são logicamente independentes entre si é dizer que entre elas não há nem incompatibilidade lógica, nem implicação lógica. Se não há incompatibilidade lógica entre as proposições elementares, qualquer conjunção de proposições elementares pode ser verdadeira. Se não há implicação lógica entre proposições elementares, qualquer inferência que contenha apenas proposições elementares como premissa e uma proposição elementar como conclusão será dedutivamente inválida.
Segundo o Tractatus, todas as relações lógicas entre proposições estão no nível das proposições não-elementares. Tais relações são determinadas pelo modo como construímos proposições não-elementares a partir de proposições elementares: aplicando uma determinada operação lógico-formal reiterável sobre proposições elementares e formando funções de verdade de proposições elementares. E essa operação somente poderia gerar todas as demais proposições se as proposições elementares fossem logicamente independentes entre si. Segundo o Tractatus, portanto, toda proposição com sentido ou é uma proposição elementar ou é uma função de verdade de proposições elementares.[1] E é na construção das proposições não-elementares que surgem as relações lógicas entre proposições. A incompatibilidade lógica surge com a negação de uma proposição elementar. A única forma de incompatibilidade lógica admitida pelo Tractatus é a contraditoriedade, a relação que há entre uma proposição (p) e sua negação (~p). A conjunção de ambas é uma contradição: p & ~p.
O aparente contra-exemplo da tese de que a única incompatibilidade lógica que existe é a contraditoriedade é a existência de proposições que parecem manter a relação que se costuma denominar como contrariedade. E eis que surge o problema das cores. As cores se apresentam para nós como excludentes. Isso significa dizer que atribuições de cores distintas, como "a é verde" e "a é vermelho", e atribuições de graus distintos de uma mesma cor, como "a é vermelho esbranquiçado" e "a é vermelho escuro" são logicamente incompatíveis. Todavia, nem "a é verde" é a negação de "a é vermelho", nem vice-versa. Além disso, parece que, embora incompatíveis, ambas podem ser falsas. Esse é o que se costuma chamar de problema das cores. A promissória teórica sobre esse problema que Wittgestein assina no Tractatus é a tese que essas proposições devem poder ser analisadas afim de que, por meio dessa análise, se exiba a contraditoriedade oculta entre ambas.
Num artigo de 1929 intitulado "Algumas observações sobre a forma lógica", Wittgenstein exibe o resultado da tentativa de resgatar aquela promissória teórica. Ele voltou ao problema das cores e o resultado foi a refutação da tese da independência lógica das proposições elementares. Seu argumento é um modus tollens que tem a seguinte estrutura:
1. Se as atribuições de cores são analisáveis, então ou elas são analisáveis do modo M1, ou ou elas são analisáveis do modo M2, ou elas são analisáveis do modo M3.As razões que Wittgenstein oferece para 2, 3 e 4 não serão expostas aqui. Deve-se notar que o que a conclusão diz mais precisamente é que tais proposições não são analisáveis nos termos do Tractatus: elas não são funções de verdade de proposições elementares. Esse resultado não vale apenas para atribuições de cores, mas pode ser obtido, por meio de um argumento com essa mesma estrutura, para qualquer proposição que atribua uma propriedade que admita graus.[2] Wittgenstein chama essas proposições justamente de proposições de grau. Mas, se essas proposições não são analisáveis, então elas são proposições elementares, pois é uma condição suficiente para uma proposição ser elementar que ela não seja analisável, dado que elas são, por definição, aquelas proposições que são encontradas no fim da análise. Somando-se esse resultado ao fato de que tais proposições mantém relações lógicas entre si, pode-se concluir que ao menos essas proposições elementares mantém relações lógicas entre si, o que contradiz a tese do Tractatus que todas as proposições elementares são logicamente independentes entre si.
2. As atribuições de cores não são analisáveis do modo M1.
3. As atribuições de cores não são analisáveis do modo M2.
4. As atribuições de cores não são analisáveis do modo M3.
5. Logo, as atribuições de cores não são analisáveis.
Mas se essas proposições elementares mantêm relações lógicas entre si, o que determina tais relações? Não parece ser a forma dessas proposições. No cálculo proposicional, "a é verde" e "a é vermelho" são escritas assim: p e q. Mas nesse cálculo, p e q não são formalmente incompatíveis. No cálculo de predicados, essas proposições são escritas assim: Fa e Ga. Mas estas tampouco são formas proposicionais incompatíveis nesse cálculo. Portanto, o único candidato para explicar a incompatibilidade entre essas proposições é o conteúdo dos termos "verde" e "vermelho". Entretanto, o que determina tais relações lógicas é apenas o que há de formal nesse conteúdo. Se estas são proposições elementares, então esses termos são exemplos do que, para o Tractatus, são nomes, e aquilo que eles representam são exemplos de objetos. Mas, nesse artigo, Wittgenstein abandona essa terminologia passa denominar aquilo que tais termos representam como fenômenos, aquilo que é imediatamente dado na experiência. Portanto, o que determina as relações lógicas entre proposições de graus, são as formas dos fenômenos. Sendo assim, a tarefa da lógica, a saber, construir uma teoria sobre o que determina as relações lógicas entre as proposições, não está completa se ela não contiver uma investigação sobre as formas dos fenômenos. Wittgenstein aceitou que essa investigação pudesse ser chamada de fenomenologia.
Embora essa investigação esteja interessada na forma dor fenômenos, não devemos esquecer que ais fenômenos são o que determina o conteúdo dos termos que os representam. Portanto, se as relações lógicas entre as proposições de graus são determinadas pelas forma dos fenômenos, tais relações em alguma medida são, digamos, conteudísticas, por oposição a relações puramente formais, como eram concebidas no Tractatus. Essa consequência pode ser interpretada como o começo de uma revisão do que Wittgenstein entendia por forma lógica no Tractatus. Dai o nome do artigo.
Entretanto, uma parte importante desse projeto fenomenológico é uma herança teórica do Tractatus. Wittgenstein ainda acreditava que a investigação sobre a forma dos fenômenos deveria resultar na construção e uma notação logicamente perfeita que exibisse tais formas de maneira perspícua. A essa notação ele deu o nome de linguagem fenomenológica. Ele tentou a construção dessa linguagem durante quase todo o assim chamado período intermediário, que começa com o artigo de 1929 e termina justamente quando Wittgenstein desiste do projeto de construir uma linguagem fenomenológica e passa gradualmente a amadurecer um novo método de análise lógica: o exame do uso da linguagem cotidiana através da técnica dos jogos de linguagem, que consiste em uma série de experimentos mentais que visam nos fazer lembrar e organizar a informação sobre a lógica da nossa linguagem que, enquanto usuários competentes, já temos.
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[1] Isso implica a tese extensionalista segundo a qual o valor de verdade de qualquer proposição complexa (uma proposição formada por outras proposições) é determinado pelo valor de verdade de suas proposições componentes. A tese extensionalista tem aparentes contra-exemplos, como o caso das atribuições de atitudes proposicionais, tal como a proposição "João acredita que chove", pois o valor de verdade dessa proposição não parece depender do valor de verdade de "chove". Wittgenstein lidou com esse aparente contra-exemplo no Tractatus. Mas a sua solução é um tanto difícil de ser compreendida.
[2] Estas são propriedades que admitem grau quantificável. Logo, seja qual for a forma dos fenômenos, sua representação deve incluir números. E essa é mais uma consequência que está em conflito com o Tractatus. Se as proposições elementares tractarianas contivessem números, elas manteria relações lógicas entre si. Por isso, Wittgenstein explica a natureza do número como algo que aparece apenas no nível não-elementar da linguagem, como um produto do método de construção de proposições não elementares a partir de proposições elementares.
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