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quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ceticismo e crença, ou: sobre o pirronismo rústico

Sexto Empírico
O ceticismo geralmente é a posição filosófica que procura levantar dúvidas racionais sobre a posse de conhecimento, seja em uma região específica da nossa atividade cognitiva, seja globalmente, tentando mostrar que não temos nenhum conhecimento. Mas há uma posição cética radical, originada de uma certa interpretação de uma forma de ceticismo antigo, o pirronismo, segundo a qual o cético pirrônico não teria não apenas nenhum conhecimento, mas nenhuma crença. Essa é a chamada interpretação rústica do pirronismo, por oposição à interpretação urbana. Não estou interessado em discutir a questão histórico-exegética aqui. Meu interesse é na possibilidade de um cético não ter nenhuma crença. Creio que a defesa dessa tese possui dois problemas, um teórico e outro moral.

A objeção teórica óbvia a essa tese segue a estratégia usual contra o cético, que consiste em mostrar que ele é incoerente. Se ele defende que não tem nenhuma crença, então ele tem ao menos essa crença, a de que não possui nenhuma crença, uma crença cujo conteúdo é refutado por ela própria. Dizer que não tem crença seria como dizer que não está dizendo nada. O ato de dizer contradiz o que está sendo dito. A resposta do cético leva a discussão para um nível mais profundo. Ele dirá que não está sustentando nenhuma tese, que não acredita que não possui crenças. Ele dirá que apenas está dizendo como as coisas vão aparecendo a ele (apenas expressando sua reação aos fenômenos). E ele dirá isso não apenas sobre a afirmação de que não possui crenças, mas sobre qualquer afirmação que faça, inclusive aquela sobre estar apenas dizendo como as coisas vão aparecendo a ele.

Todavia, é parte da lógica da nossa linguagem que a asserção sincera (não-irônica, não-mentirosa) de uma frase indicativa é a expressão de uma crença. Esse é um dos nossos critérios para a atribuição de crenças que determina o que entendemos pro "crença". Isso está relacionado ao paradoxo de Moore. Segundo Moore, embora seja psicologicamente estranho dizer "Chove, mas não acredito nisso", não é uma contradição, na medida em que a primeira frase descreve o tempo e a segunda descreve o estado psicológico de quem afirma a primeira, sua descrença na verdade da primeira. Moore não vê uma conexão lógica entre asserir uma frase indicativa e expressar uma crença. O que Moore diz seria água para moinho do pirrônico que estamos discutindo. Mas creio que Moore está errado. A frase de Moore é incoerente porque a asserção sincera de que chove é a expressão da crença de que chove. A pessoa não está dizendo que crê que chove ao dizer que chove, isso é certo. Ela de fato está falando sobre o tempo e não sobre si mesma. Mas ela está expressando essa crença, está manifestando-a. Isso se manifesta na definição de asserção sincera. Asserir sinceramente é asserir algo que se toma como verdadeiro, algo em que se acredita.

O cético tem uma resposta para essa última objeção. Ele poderia admitir a conexão entre asserção sincera e crença e afirmar que poderia dizer "Perece a mim que chove", em vez de dizer "Chove". Se ele colocasse o prefixo "Parece a mim que..." antes de cada afirmação sua, então não poderia ser acusado de acreditar na verdade da frase que sucede esse prefixo. Ele não está dizendo como as coisas são, mas como elas parecem ser a ele. O primeiro problema com essa resposta é que o que foi dito sobre a relação entre asserção e crença anteriormente vale também para a asserção de frases da forma "Parece a mim que p": se o cético a assere sinceramente, então ele está expressando uma crença. De outra forma, como o cético definiria asserção sincera? Ele não está sendo sincero quando assere que parece a ele que chove? É claro que usar o prefixo novamente sobre frases da forma "Parece a mim que p" apenas agravaria o seu problema, pois o levaria a um regresso ao infinito. Ademais, o cético de fato não fala desse modo, especialmente quando não está fazendo filosofia. Ele não coloca o referido prefixo antes de suas frases. Mas ele poderia dizer que não faz isso por comodidade, para poder interagir mais facilmente com as pessoas. Isso, entretanto, o leva a cometer o erro moral de que falei acima. Se ele usa o discurso assertivo sistematicamente como se estivesse asserindo sinceramente as frases que pronuncia, então ele está sistematicamente levando seus interlocutores ao erro, pois, pela razão já aduzida, eles acreditarão que ele está expressando a crença na verdade dessas frases.

Um problema adicional desse ceticismo é o fato que boa parte de nossas crenças são inconscientes e/ou involuntárias. Não basta refletir e pensar de si mesmo que não possui uma determinada crença para não tê-la. Podemos ter crenças que não sabemos que temos e nos casos extremos nos enganar sobre as crenças que temos. Não temos total autoridade a respeito daquilo que acreditamos. Muitas vezes os outros sabem melhor que nós. Por outro lado, algumas vezes queremos deixar de acreditar em algo e não conseguimos, assim como queremos passar a acreditar em algo e tampouco conseguimos. Portanto, não basta que o cético diga que não acredita que chove para que isso seja o caso. Ele pode querer, com base em seus argumentos, não acreditar que chove. Mas disso não se segue que ele não acredita. Ter uma crença é ter uma atitude em relação a um certo estado de coisas, é tomá-lo como um fato. E isso se manifesta no comportamento, verbal e não-verbal. Se o cético realmente não acreditasse que chove (nem que não chove), então deveria haver uma diferença no seu comportamento que exibisse a sua descrença. Mas não há. Quando ele diz "Parece a mim que chove", ele se comporta exatamente do mesmo modo como alguém que acredita que chove.


Leituras

Bett, Richard, Pyrrho (Stanford EP)
Schwitzgebel, Eric, Belief (Stanford EP)
Marcondes, Danilo, Rústicos x urbanos: o problema do insulamento e apossibilidade de uma filosofia cética

3 comentários:

  1. Passeando por antigos blogs da minha lista encontrei o seu.Adorei a discussão sobre crença..Curioso que começou a chover aqui.será que chove?Já nem sei....

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  2. No final do primeiro parágrafo faltou um "i" no "dos".

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