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sábado, 21 de maio de 2011

O estatuto do problema de Molyneux

Em 7 de Julho de 1688, William Molyneux escreveu uma carta a John Locke em que propunha um problema. John Locke apresentou o problema na segunda edição do seu Ensaio da seguinte forma:
Suponha um homem cego de nascença, agora adulto, ensinado pelo seu tato a distinguir entre um cubo e uma esfera do mesmo metal e aproximadamente do mesmo tamanho, de tal forma que possa dizer, quando ele sentisse um ou o outro, qual é o cubo e qual é a esfera. Suponha, então, o cubo e a esfera colocados sobre uma mesa e o cego é tornado capaz de ver. Qaere, se pela sua visão, antes de tocá-los, ele agora pode distinguir e dizer qual é o globo e qual é o cubo.
Esse ficou conhecido como o problema de Molyneux. Na sua forma geral, o problema é sobre a conexão entre o que percebemos por meio de um sentido, o tato, e o que percebemos por meio de outro sentido, a visão: essa conexão é inata e, portanto, a priori ou empiricamente aprendida? Se for inata então o cego que passou a ver saberá dizer, sem necessidade de experiências adicionais, qual dos objetos ele vê é o triângulo e qual é o cubo. A resposta de Locke foi, é claro, empirista: a conexão é empiricamente aprendida e, portanto, o cego que passou a ver não saberá dizer imediatamente qual é o triângulo e qual é o cubo.

Mas aqui devemos fazer um distinção. Uma coisa é uma resposta empirista baseada em experiências particulares; outra coisa é uma resposta empirista baseada apenas em reflexão a priori. A resposta de Locke, por exemplo, assim como a de alguns racioinalistas do século XVIII, tal como Leibniz, não é baseada em nenhuma experiência particular. Ainda no século XVIII surgiram as primeiras tentativas de resolver o problema por meio de experimentos. William Cheselden operou algumas pessoas que tinham catarata em grau elevado e fez experimentos com os pacientes. Mas os experimentos foram criticados, por causa do modo como foram realizados. Todavia, algo parece não ter sido questionado: que o problema poderia ser resolvido por meio de experimentos.

Recente notícia informa que novos experimentos comprovam que a resposta de Locke estava correta. Cegos de nascença que passaram a enxergar foram submetidos a testes sobre a correlação entre o que é visto e o que sentido pelo tato. A percentagem do número de acertos ficou em torno do ponto de adivinhação. Mas em uma semana de prática ela subiu para 80%. Se o estudo está mesmo correto, então o problema de Molyneux foi resolvido empiricamente e a resposta empirista estava correta, embora não porque a defesa a priori do empirismo estivesse correta.[1] Ainda precisamos de uma teoria que explique esses dados obtidos no experimento. Mas, seja qual for a teoria, ela deve ser uma teoria sobre o funcionamento da percepção baseadas em dados empíricos independentes dos dados a serem explicados. Mas os dados empíricos obtidos até agora parecem ser suficientes para resolver o problema de Molyneux.

Creio que essa solução do problema mostra algo sobre a sua natureza: ele nunca foi um problema filosófico, mas um problema particular da ciência natural. É claro que essa alegação é controversa. Mas antes de justificar minha alegação, quero torná-la mais intuitiva por meio de dois pontos que, creio, são independentes de qualquer concepção particular de filosofia.

O primeiro ponto diz respeito ao que não pode ser considerada condição suficiente para que um problema seja filosófico: não basta que esse problema seja proposto e tratado por alguns filósofos, ou seja, não basta que alguns filósofos acreditem que ele seja um problema filosófico. Se o fato de um filósofo acreditar que um problema é filosófico fosse suficiente para que ele fosse filosófico, então o fato de um filósofo acreditar que um problema não é filosófico deveria ser igualmente suficiente para que ele não fosse filosófico. Mas se isso fosse o caso e um filósofo acreditasse que um certo problema é filosófico, enquanto outro filósofo acreditasse que o mesmo problema não é filosófico, então esse problema seria e não seria filosófico. Mas se alguém achar que é condição suficiente para se chamar um problema de filosófico que ele tenha sido tratado por alguns filósofos, então não vou argumentar contra isso, desde que se reconheça que esse é um critério que não diz respeito à natureza do problema, mas apenas ao fato de que havia filósofos entre aqueles que lidaram com ele.

O segundo ponto diz respeito à inexistência de uma fronteira objetiva entre problemas filosóficos do tipo em questão e problemas não filosóficos do mesmo tipo. Qual tipo? Trata-se de um problema empírico sobre nossas capacidades cognitivas. Se todo problema desse tipo fosse um problema filosófico, então a psicologia cognitiva seria parte da filosofia. Mas nem todo problema empírico sobre nossas faculdades cognitivas é um problema filosófico. Por que esse problema seria?

Há duas teses que não se seguem da alegação que o problema de Molyneux não é filosófico. A primeira tese é que o tratamento dado pelos filósofos não fará mais parte da história da filosofia. Assim como o tratamento que alguns filósofos deram a certos problemas que eram, na verdade, problemas da física não deixaram de fazer parte da história da filosofia, o tratamento que alguns filósofos deram ao problema de Molyneux não deixaria de fazer parte da história da filosofia, mesmo que fosse reconhecido que ele não era um problema filosófico.

A segunda tese é que a discussão sobre o estatuto do problema de Molyneux não é uma discussão filosófica. A alegação de que o problema de Molyneux não é filosófico não implica que a discussão sobre seu estatuto não seja filosófica. Creio que minha alegação sobre o estatuto desse problema é uma alegação filosófica. Mas por que eu a considero uma alegação filosófica? Minha visão geral do que é filosofia está exposta resumidamente aqui. Mas o que preciso fazer aqui é algo mais específico. Parte da minha justificativa para minha alegação baseia-se nos dois ponto que destaquei para tornar minha alegação mais intuitiva. Se não pode ser critério para julgar que um problema é filosófico o fato de ter sido tratado por filósofos, e se o problema em questão é do mesmo tipo que outros que não são considerados filosóficos, a saber, um problema empírico sobre nossas faculdades cognitivas, então por que ele deveria ser considerado filosófico? Parece não haver razão para considerá-lo filosófico. Mas a alegação que um certo tipo de problemas não é filosófico é filosófica porque isso é parte da pergunta filosófica sobre a natureza da própria filosofia.

Mas talvez um quiniano objete que não há fronteira precisa entre filosofia e ciência, que a distinção entre ambas as disciplinas é apenas de grau e que, em última análise, todos os problemas são empíricos, na medida em que eles são respondidos por meio de teorias que compõem nossa teoria total sobre o mundo.

Entretanto, mesmo fronteiras vagas são fronteiras e diferenças de grau são diferenças. O fato de a fronteira entre o ser calvo e o não ser calvo ser vaga não implica que não há casos paradigmáticos de pessoas calvas e casos paradigmáticos de pessoas não calvas. Mesmo Quine reconhece uma diferença entre problemas filosóficos e problemas não filosóficos.[2] Além disso, o fato de a diferença ser de grau não parece explicar por que outros problemas semelhantes não são considerados filosóficos. Se trata-se do grau de generalidade e abstração dos problemas e teorias, então por que outros problemas empíricos tão gerais e abstratos quanto o problema de Molyneux não são considerados problemas filosóficos? Por fim, o holismo teórico implica apenas que a filosofia é parte da nossa atividade teórica, não que qualquer parte dessa atividade é filosofia. O próprio Quine admite isso explicitamente. E mesmo que todos os problemas sejam, em última análise, empíricos, eles não são empíricos no mesmo grau. Quine nunca elaborou experimentos para testar suas alegações filosóficas.[3] É claro que muitas alegações em física, por exemplo, não são aceitas com base em testes empíricos, experimentos ou observações. Mas não estou dizendo que não ser testável é uma condição suficiente para ser uma teoria filosófica. Estou dizendo que ser empiricamente testável é uma condição suficiente para uma teoria (e, portanto, o problema que ela procura solucionar) não ser filosófica. Portanto, creio que esse tipo de objeção, apresentada assim, de modo tão geral, não apresenta razões específicas para se considerar o problema de Molyneux um problema filosófico.

Mas o que posso dizer de positivo em favor da minha alegação? Creio, como Quine, que o núcleo da filosofia consiste numa reflexão sobre certos problemas muito gerais e abstratos que são formulados por meio de certos conceitos muito fundamentais. Tais conceitos são fundamentais na medida em que abandoná-los (se isso é factível) ou modificá-los implica uma mudança muito grande em todo ou em grande parte do nosso esquema conceitual (e, consequentemente, da nossa forma de vida). Nessa reflexão filosófica, o que visamos é entender o estado no nosso esquema conceitual, as conexões entre aquilo que já sabemos ou julgamos saber, suas conseqüências, etc. Mesmo que novos conhecimentos empíricos possam nos fazer revisar os resultados dessa reflexão, essa revisão não se dá como no caso do problema de Molyneux, com uma refutação baseada em experimentos. Se for assim, é porque a tese refutada não era suficientemente geral e abstrata; estava muito próxima da experiência para ser uma tese filosófica.

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* Essa postagem foi escrita tendo como motivação uma discussão no facebook, a qual me ajudou a pensar melhor sobre esses assuntos.

[1] Ver Marjolein Degenaar, "The Molyneux Problem", seção 5Stanford Encyclopedia of Philosophy.

[2] Para uma exposição oral breve da visão quiniana da filosofia feita pelo próprio Quine, ver esse vídeo. Para um transcrição de um trecho importante, ver essa postagem.

[3] Gilbert Harman, em "The Future of the A Priori", chama de "vanilla" (baunilha) um a priori que não é um conhecimento obtido de forma absolutamente independente da experiência. Eu tenho a tendência a dizer que chamar de empírica uma reflexão que procura compreender o que já sabemos, suas conexões, suas conseqüências, sem que seus resultados sejam aceitos por meio de quaisquer experimentos ou observações específicos destinados a testá-la, é usar "empírico" num sentido igualmente "vanilla".

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