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domingo, 20 de março de 2011

Modalidades metafísicas e epistêmicas


Algumas vezes antes de descobrir o valor de verdade de uma proposição p, podemos dizer:

(a) Pode ser que p seja verdadeira, pode ser que seja falsa.

E (a) pode ser verdadeira, mesmo que p seja necessária (ou necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa), tal como uma proposição matemática. Se p for necessária, então ou ela é falsa e não é possível que ela seja verdadeira, ou ela é verdadeira e não é possível que ela seja falsa. Mas como (a) pode ser verdadeira, dado que p é necessária? Em (a), "pode" está sendo usado em um sentido epistêmico, por oposição a um sentido metafísico. Quando "pode" está sendo usado em um sentido metafísico, como em "'2+2=5' pode ser verdadeira", está-se atribuindo à verdade de uma proposição a propriedade de ser possível (de ser verdadeira em ao menos um mundo possível). É claro que se uma proposição for necessária, digamos, necessariamente verdadeira, então não é possível descobrir que ela é falsa, pois "Sei que não-p" implica "não-p". Portanto, o fato que p é necessariamente verdadeira implica que "s descobriu que p é falsa [ou sabe que não-p]" (onde s é um sujeito cognoscente qualquer) é necessariamente falsa. Mas quando usamos "pode" em um sentido epistêmico, como em (a), então a frase em que ocorre não atribui uma propriedade metafísica ao valor de verdade de p, mas uma propriedade ao estado cognitivo do sujeito que está enunciado (a) (ou de sua comunidade, ou da humanidade). Uma paráfrase de (a) poderia ser:

(b) Dado tudo que sei (sabemos), não estão excluídas nem a possibilidade de que p seja verdadeira nem a possibilidade de que p seja falsa.

Agora fica mais claro como (a) pode ser verdadeira, mesmo que p seja necessária. O fato de o que eu sei não excluir a possibilidade de p ser falsa não implica que p pode (no sentido metafísico) ser falsa. (a) Descreve a situação epistêmica do falante (ou de sua comunidade, ou da humanidade) em relação ao valor de verdade de p: as proposições que ele sabem serem verdadeiras não implicam nem a verdade nem a falsidade de p.

7 comentários:

  1. Muito interessante e esclarecedor! Muito mesmo. Alexandre, não é tbm um uso epistêmico de 'pode' que eu faço ao dizer "Você não pode saber das minhas dores!"?
    Porque, quando afirmo tal, não é que esteja aberta a possibilidade de você sabê-las...

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  2. Oi Mar (Sra. Ramsay)! Obrigado! Bem, um sentido de "pode" não é epistêmico apenas porque a proposição à qual se atribuí a modalidade é epistêmica. Se o que se está querendo dizer com tua frase é que não há mundo possível em que a proposição "Vc sabe das minhas dores" seja verdadeira, então esse é um uso metafísico de "pode". Parece que é assim que vc entende a frase, quando vc diz "quando afirmo tal, não é que esteja aberta a possibilidade de você sabê-las...". Wittgenstein (acho que vc tem ele em mente quando faz a pergunta) diria que ou se está enunciado uma proposição empírica com essa frase, mas falsa (vc pode saber das minhas dores), ou se está dizendo um contra-senso, na media em que se está supondo uma assimetria epistêmica (diferentes modos de se conhecer) entre a primeira pessoa a e terceira, quando na verdade o que há é uma assimetria lógico-semântica (uma diferença entre um enunciado expressivo e um enunciado cognitivo). To evitando algumas complicações para ser breve.

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  3. Oi, Alexandre! Saudade dos papos.

    Entendi o que disse. Acho que antes fiz uma confusão entre uso metafísico (propriedade da proposição - a de ser possível) e uso epistêmico (propriedade do estado em que o sujeito se encontra - o de ainda não conhecer o suficiente para excluir a possibilidade nem de p ser verdadeira nem de p ser falsa).

    Sim, dado que o que eu quero dizer quando digo "Você não pode saber das minhas dores" é que as dores que são minhas não podem ser conhecidas por outros (não dispõem dessa propriedade), então se trata de um uso metafísico de 'pode'.

    Pensei sobre o 'pode' de (a), em seu sentido epistêmico. É interessante notar que a negação de um 'pode' em sentido epistêmico parece gerar um 'pode' em sentido metafísico. Se negamos "Pode ser que p seja verdadeira, pode ser que seja falsa", em que 'pode' diz respeito ao estado cognitivo do falante, temos "Não pode ser que p seja verdadeira, não pode ser que seja falsa", em que se atribui uma propriedade ao valor de verdade de p, e não ao estado cognitivo do sujeito. Mas por que é assim? Se em (a) temos um uso epistêmico de 'pode', por que em em ~(a) não temos simplesmente a sua negação (a negação de um uso epistêmico de 'pode')? Parece que negar uma possibilidade, como em ~(a), é sempre negar uma possibilidade referente ao valor de verdade de 'p', e não referente ao estado cognitivo do sujeito.

    Ah, sim, eu tinha Wittgenstein em mente quando fiz a pergunta (que dúvida... :-P). Pois é, ou o uso de 'saber' ali é empírico, e a proposição é falsa, ou o uso de 'saber' ali é gramatical (revela, como você diz, uma assimetria lógico-semântica, não epistêmica), e a proposição não é nem verdadeira nem falsa...

    Escrevi demais... :-P

    Beijão! Excelente blogue!

    Mar

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  4. Obrigado, Mar! Dado o que eu disse, negar (a) é ou negar uma afirmação empírica, ou negar um absurdo. No primeiro caso, temos uma proposição empírica. No segundo caso temos uma proposição gramatical, pois (a), quando é um contra-senso, resulta de negar uma proposição gramatical, que diz que podemos saber sobre as dores dos outros. Mas isso, é claro, levanta questões sobre o que é uma negação, nesse contexto.

    Eu não quis dizer que (a) é uma proposição gramatical. Acho que ou é empírica, ou é contra-senso, resultante da negação de uma proposição gramatical. Mas, sabe como é "diga o que quiser, desde que isso não te impeça de ver os fatos". Podemos dizer que há proposições gramaticais que constituem o significado das expressões lingüísticas, e proposições gramaticais que são a negação das primeiras e, por isso, são contra-sensos. Mas acho que não ganhamos nada e só perdemos com essa forma de expressão.

Beijo!

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  5. Obrigado, Mar! Dado o que eu disse, negar (a) é ou negar uma afirmação empírica, ou negar um absurdo. No primeiro caso, temos uma proposição empírica. No segundo caso temos uma proposição gramatical, pois (a), quando é um contra-senso, resulta de negar uma proposição gramatical, que diz que podemos saber sobre as dores dos outros. Mas isso, é claro, levanta questões sobre o que é uma negação, nesse contexto.

    Eu não quis dizer que (a) é uma proposição gramatical. Acho que ou é empírica, ou é contra-senso, resultante da negação de uma proposição gramatical. Mas, sabe como é "diga o que quiser, desde que isso não te impeça de ver os fatos". Podemos dizer que há proposições gramaticais que constituem o significado das expressões lingüísticas, e proposições gramaticais que são a negação das primeiras e, por isso, são contra-sensos. Mas acho que não ganhamos nada e só perdemos com essa forma de expressão.

Beijo!

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  6. Tenho notado essa divergência inclusive no cotidiano e para mim que sou leigo em filosofia o seu texto foi informativo e de fácil compreensão.

    Grato.

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  7. Matheus: Obrigado. Que bom que meu texto foi de ajuda.

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