De boas inteções o inferno está cheio. O livro Epistemologia, de Christopher Norris (Porto Alegre: Artmed, 2007), é escrito com boa intenção e é relativamente bem informado sobre os debates contemporâneos em epistemologia. Um dos destaques do livro é a tentativa de estabelecer um diálogo entre as tradições analíticas e continental. Quando li isso na introdução fiquei empolgado, esperando enriquecer minha visão sobre o assunto. Mas em uma certa passagem do segundo capítulo, Norris atribui a Dummett uma tese que ele não sustenta e que é facilmente criticável:
Dummett considera que o discurso sobre a verdade deveria ser substituido pelo discurso sobre a 'assertibilidade garantida', e que essa última deveria ser restringida somente àquelas proposições para os quais possuímos meios confiáveis de prova ou de verificação. De outra forma, estaremos diante de uma declaração autocontraditória, no sentido de sabermos que a proposição x é verdadeira ou falsa -- isto é, que ela possui um valor de verdade objetivo que está sujeito ao princípio da bivalência -- embora não possamos determinar sua verdade ou falsidade por meio do que sabemos ou mediante nossas capacidades investigativas. [pp. 39-40]Mas é fácil ver que não há nenhuma contradição em se dizer que sabemos que é verdade que ou P ou não-P e dizer que não sabemos se é verdade se P ou se é verdade se não-P. "Sei que P ou não-P" não implica "Ou sei que P ou sei que não-P". Analogamente, "Sei que essa barra possui alguma extensão" não implica "Sei qual é a extensão dessa barra". E Dummett nunca sustentou que houvesse implicação ai.
Além disso, mais adiante no livro, Norris descreve o primeiro dos três argumentos de Dummett contra o realismo assim:
seria impossível que nós adquiríssemos um conhecimento efetivo da linguagem, senão mediante a compreensão das condições de verdade (mais precisamente das condições de assertabilidade garantida) que se aplicam às diversas proposições aceitas ou endossadas pelos membros da nossa comunidade lingüística. [p. 40]
Mas antes ele tinha dito que, segundo Dummett, "o discurso sobre a verdade deveria ser substituido pelo discurso sobre a 'assertibilidade garantida'". Como então a análise deve ser das condições de verdade? E como isso pode ser uma análise das condições de assertibilidade garantida? O problema é que Dummett formula seu projeto de dois modos, como mostra Kirkham, em Teorias da Verdade. Ora ele o formula como um abandono do conceito de verdade na análise do significado, ora ele o formula como uma nova análise do conceito de verdade. Mas Norris parece não notar isso e apresenta Dummett de modo confuso, ao invés de apresentar a (ao menos aparente) confusão de Dummett.
Devo frisar que Norris defende o realismo explicitamente no seu livro.
O livro em geral não é ruim, mas tem coisas como as que aponto acima.
Noronha.
ResponderExcluirNão tive oportunidade de ler o texto na tradução brasileira, faz pouco o adquiri e tenho coisas mais urgentes sobre Wittgenstein. Contudo, eu me questiono sobre o seguinte: como está escrito no texto original? Segundo, a tradução foi elaborada por um filósofo? Tentei encontrar alguma informação do tradutor e sua relação com a filosofia, mas....Em terceiro lugar a tradução teve consultoria, supervisão e revisão de uma profissional formada pela EHESS e, portanto, uma filósofa que parece mais ligada aos temas afrancesados (depois de Descartes as coisas andam difíceis de serem compreendidas por lá).
Bem, alguém vacilou - se tuas suas observações procedem. Considerando que o tradutor sabia Inglês e não filosofia, então a consultoria cum supervisão cum revisão dormiu no ponto (o original era Inglês e não aquelas coisas que a Martins Fontes traduz do Fracês).
De qualquer forma, dada a avançada cultura filosófica neste país combinada com o uso que se faz de textos como este em aulas de filosofia, a coisa toda cai no vazio. Uma sugestão: entrar em contato com o Norris e argumentar com ele. Sabe lá Norris entra em contato com a Editora e exige uma revisão cum consultoria cum supervisão diferente.
Best wishes
Grande Arturo: Obrigado pelo comentário. Tua preocupação com a tradução é legítima. Mas não consigo ver como o problema que aponto poderia ter sido gerado por uma má tradução. Eu cito algumas passagens para comentar o ponto, mas há outras. Acho que foi má interpretação mesmo. Abraço.
ResponderExcluirEssa questão é pertinente na Ética: Será que nas proposições sobre os valores também podemos partir desse princípio P ou não P? Isto é também têm valor de verdade embora não saibamos qual é? E será que podemos fundamentar que algo tem valor de verdade sem que através dos nossos métodos de investigação possamos algum dia saber qual é?
ResponderExcluirAlexandre. Excelente o seu Blog. Sou Matemático, Físico e Cosmologista e tenho muito interesse em Filosofia, especialmente em Epistemologia e em Filosofia Analítica. Vou tecer mais comentários depois. Por ora quero te pedir a indicação do Template do seu blog, que achei magnífico e gostaria de colocar no meu (com modificações, é claro). Se puder me passar o link, eu agradeço.
ResponderExcluirMeu blogger é:
Wolf Edler
Tenho também um site:
Ernesto von Rückert (lá tem outro blog).
Um abraço.
Edler: Que bom que gostaste do meu blog. Infelizmente, o layout do meu blog é uma colcha de retalhos de várias receitas catadas daqui e dali. Eu não saberia explicar onde estão as modificações no código e onde as encontrei. Seja como for, volte sempre!
ResponderExcluirSabe dizer-me qual é o título original em inglês?
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