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domingo, 2 de abril de 2017

A verdade é relativa?

A tese de que a verdade é relativa é muito popular na academia, principalmente entre estudantes e professores da assim chamadas ciências humanas. Mas o que significa dizer que a verdade é relativa? Qual e o conteúdo dessa tese? Esta é uma tese sobre a verdade, sobre o ser verdadeiro, por oposição a uma tese sobre a crença, o tomar algo como verdadeiro, o considerar algo como sendo verdadeiro. A tese diz que o ser verdadeiro é dependente ou do esquema conceitual, ou da cultura, ou da linguagem, ou da época histórica, ou de todos os fatores anteriores. Vou chamar esses fatores de  fatores relativizantes. Sendo assim, a afirmação de que a Terra gira em uma órbita elíptica em torno do Sol, ou a afirmação que 2+2=4 jamais seriam verdadeiras simpliciter, isto é, independentemente daqueles fatores relativizantes. Tais afirmações seriam verdadeiras apenas dentro do nosso esquema conceitual, e/ou nossa cultura, e/ou nossa linguagem, e/ou nossa época histórica. Elas seriam verdadeiras para nós, mas não para quem tem um outro esquema conceitual, e/ou cultura, e/ou linguagem, e/ou é de uma época histórica diferente da nossa.

Ao que a tese relativista se opõe? Em primeiro lugar, a tese relativista se opõe a seguinte tese:

(1) A verdade é absoluta. O absolutismo sobre a verdade diz o que ser verdadeiro não depende de nenhum daqueles fatores relativizantes. É claro o conteúdo de uma certa afirmação depende de ao menos um daqueles fatores relativizantes. Mas se esse conteúdo é ou não verdadeiro, isso não depende mais desses fatores segundo o absolutista. Os padrões de medida são claramente convencionais. Mas os resultados da aplicação desse padrão, diz o absolutista, não são convencionais. Que o nosso padrão de medida seja o métrico é algo totalmente convencional. Mas que um determinado objeto tenha mais, ou menos, ou exatamente um metro não é matéria de convenção. Algumas vezes a expressão "verdade absoluta" é usada para referir-se a crenças dogmáticas, que são mantidas sem justificação e sem a disposição para revisá-las frente a novas evidências. Mas se é de crenças dogmáticas que se quer falar, então evitaria muita confusão não chamá-las de verdades (cf. "O que é verdade para alguém", "as minhas verdades"). "Crença dogmática" seria uma expressão muito menos enganadora.

(2) A verdade é objetiva. Objetivismo sobre a verdade diz que o ser verdadeiro não depende nem das nossas crenças, nem do nosso conhecimento. Isso seria exibido claramente, segundo o objetivista, no fenômeno do engano. Estar enganado é ter uma crença falsa, é tomar algo como verdadeiro quando, de fato, é falso. Se essa definição de engano está correta e o engano é possível, então quando alguém está enganado, sua crença é objetivamente falsa, ou seja, falsa independentemente de sua crença e de seu conhecimento. Mas se a falsidade é objetiva, assim o é a verdade.

(3) A verdade é única. O singularismo sobre a verdade diz que, em ao menos alguns casos de afirmações discordantes, não pode ser o caso que todas sejam verdadeiras. Ou seja, há afirmações que não apenas são discordantes, mas incompatíveis. Nestes casos, apenas uma delas pode ser verdadeira, se alguma é. Se duas pessoas focam em grupos de causas distintas de um mesmo evento, por exemplo, pode ser que suas afirmações sobre as causas desse evento sejam discordantes, mas não incompatíveis, na medida em que os dois grupos de causas são causas do evento em questão. Mas se a discordância for entre, por exemplo, a afirmação de que algo tem 2m de comprimento e a afirmação de que tem 3m de comprimento, ou entre a afirmação de que algo tem 2m de comprimento e a afirmação de que não tem 2m de comprimento, diz o singularista, apenas uma das afirmações de cada par discordante pode ser verdadeira.

(4) A verdade é real. O realismo sobre a verdade diz que uma afirmação é verdadeira porque descreve uma realidade ontológica e epistemologicamente objetiva. Essa realidade é ontologicamente objetiva quando sua existência não depende da nossa existência e é epistemologicamente objetiva quando ela é como é independentemente de nossas crenças e de nosso conhecimento. O realismo sobre a verdade implica o objetivismo e o singularismo sobre a verdade.

Embora o relativismo da verdade se oponha diretamente ao absolutismo da verdade, a maior motivação do relativista, principalmente fora da filosofia, geralmente vêm da sua vontade se opor ao singularismo da verdade. Por que? Porque o singularismo sobre a verdade parece, segundo o relativista, implicar intolerância. Antes mesmo de discutir se essa implicação é o caso, podemos ver que essa estratégia de argumentação comete o que eu chamo noutra postagem de falácia normativista. Tal falácia consiste em deduzir como as coisas são de uma norma moral e da suposição de que essa norma implica que as coisas são de uma certa forma. No caso da verdade a norma moral é: devemos ser tolerantes. A suposição é: se é verdade que devemos ser tolerantes, a verdade não é única. Disso se conclui que a verdade não é única e, portanto, é relativa. Todavia, aquela suposição está longe de ser óbvia, para dizer o mínimo. Muito pelo contrário, a tolerância parece ser justamente apoiada pela tese de que verdade é absoluta, objetiva e única. Se eu considero a verdade como absoluta, objetiva e única, então considero que minhas alegações de conhecimento da verdade podem muito bem ser falsas, ou seja, eu posso estar objetivamente enganado. Isso me faz ser mais cuidadoso e tolerante com quem me critica, pois se posso estar objetivamente enganado, então talvez meu crítico esteja objetivamente correto. Uma pessoa pode ser o que eu chamo de fanático por uma crença justificada, ou seja, ter uma justificação para a sua crença e ser intolerante com quem pensa de modo diferente de si. Mas isso não se deve ao fato de a verdade ser absoluta ou de sua crença ser justificada. A intolerância só nasce da crença de que quem pensa de modo diferente é um mal que deve ser combatido.

Noutra postagem eu procuro mostrar que tese que a verdade é absoluta, objetiva e única por si só não implica a negação da norma da tolerância. Creio que, muito pelo contrário, a tese da relatividade da verdade é que pode levar à intolerância. Como? Se a verdade é relativa a uma época histórica e a uma cultura, então não pode haver justificativa para se afirmar que uma crença de uma outra cultura em uma época diferente da nossa é falsa, seja que crença for. Devemos ser tolerantes com todas as crenças de culturas e épocas distintas da nossa. Mas se é assim, devemos ser tolerantes com a crença dos conquistadores segundo a qual os índios não tinham alma e, por isso, poderiam ser escravizados. Devemos ser tolerantes também com os jesuítas que impuseram suas crenças religiosas e culturais aos índios co base na crença de que a verdadeira religião é a cristã e todos deveriam adotá-la. Mas a tolerância e a relatividade da verdade não foi defendida justamente para combater esse tipo de atitude dos conquistadores e jesuítas? O relativismo parece implicar o paradoxo da tolerância: a tolerância relativista acaba por promover a intolerância. O relativista poderia dizer ele acredita que é errado ser intolerante, embora essa crença seja verdadeira em relação à sua época e sua cultura. Todavia, se ele se posicionar contra a intolerância em outras culturas e épocas, ele estará sendo intolerante de acordo com seus próprios critérios.

Seja como for, a tolerância não precisa do relativismo sobre a verdade. A intolerância em relação a uma crença discordante surge quando se acredita, sem nenhuma justificação (dogmaticamente), que essa crença discordante é um mal a ser combatido primeiramente pela proibição, possivelmente violenta em alguns casos. E isso não é implicado nem causado pela tese de que a verdade é absoluta, objetiva e única. Acreditar que a verdade é absoluta, objetiva e única não implica a crença dogmática de que quem tem crenças divergentes deve ser proibido de as ter. Se não sou relativista, posso ao menos tentar, sem ser incoerente, justificar a afirmação de que certa crença, além de dogmática, é nociva, na media em que dogmaticamente (sem nenhuma justificação e sem possibilidade de revisão) proíbe crenças, e, por isso, deve ser proibida. Dessa forma vou estar combatendo a intolerância baseado, entre outras coisas, na crença de que a verdade é absoluta, objetiva e única. Mas ao relativista essa estratégia não está disponível. Só lhe resta tolerar, impotente, a intolerância de quem pensa de modo diferente.

Mas a agenda de problemas do relativista não acaba por aqui. Além de não ser claro como o relativista explicaria o engano, não é claro como ele explicaria a distinção entre crença e verdade. Se a crença consiste em tomar (tratar) algo como sendo verdadeiro, o que é o ser verdadeiro? Crer consiste em tratar algo como o que?A dificuldade do relativista em explicar essa distinção se deve ao fato de sua posição aparentemente ter como consequência que o tratar como verdadeiro implica que o que se trata assim é verdadeiro, pois não existe um ser verdadeiro independente de ser tratado como verdadeiro. Aqui o relativista aproxima sua análise da verdade da análise do conceito de agradável. Agradável é algo em grande parte subjetivo, pois o que é agradável para alguns indivíduos não é agradável para outros. O ser agradável é o causar um efeito prazeiroso no sujeito. O ser verdadeiro, de acordo com o relativismo, é análogo ao ser agradável. Não é uma propriedade objetiva dos nossos pensamentos, que qualquer sujeito poderia reconhecer, independentemente de cultura e época histórica, mas é uma propriedade que eles causam em alguns sujeitos e não causam em outros, dependendo de sua cultura e época histórica desses sujeitos. O ser verdadeiro do pensamento que a intolerância é um mal, por exemplo, é o efeito que esse pensamento tem sobre nós devido à nossa cultura e à época histórica em que vivemos. Qual efeito? O de dar assentimento a ele, o de tomá-lo como verdadeiro. Mas, se é assim, o ser verdadeiro é o mesmo que parecer verdadeiro, assim como o ser agradável é o mesmo que parecer agradável. Tudo que parece verdadeiro a pessoas de uma certa cultura e época histórica é verdadeiro. O ser verdadeiro do pensamento que a intolerância é um mal é o seu parecer verdadeiro para as pessoas da nossa cultura e época histórica. E como não há ser verdadeiro independentemente dessa aparência, não faz muito sentido verificar se, a despeito de parecer, esse pensamento é verdadeiro. Não há aparências ilusórias no que tange à verdade. Fica mais claro agora por que, nesse caso, o engano seria simplesmente impossível, pois toda crença seria verdadeira. O máximo que se pode ter, dentro desse quadro teórico, é uma mudança de crenças, mas não porque as crenças que se abandonou nessa mudança sejam enganos.

Mas se o relativista quer mesmo sustentar essas teses implausíveis, ele deveria abandonar o discurso objetivo, isto é, ele deveria parar de dizer que as coisas são desse ou daquele jeito. Ele deveria dizer que elas parecem ser desse ou daquele jeito. O discurso sobre o ser deveria ser substituído pelo discurso das aparências. Todavia, essa estratégia esbarra noutro problema: ela parece supor que o discurso sobre as aparências é mais primitivo que o discurso sobre o ser. Se esse fosse o caso, então alguém poderia aprender a dizer como as coisas parecem antes de aprender a dizer como as coisas são. Mas isso não é possível. E há boas razões para se pensar que, ao menos nos casos primitivos, não se pode aprender a dizer como as coisas são sem ao mesmo tempo saber como elas são. Só adquire o conceito de amarelo, por exemplo, quem aprende a identificar casos paradigmáticos de coisas que são amarelas.

Um último problema, embora não pequeno, para o relativista é que, aparentemente, sua posição implica que contradições podem ser verdadeiras. Se um mesmo pensamento ("Ser intolerante é mau", por exemplo) pode ser verdadeiro para uma certa cultura e ser falso para outra cultura e essas culturas são mutuamente contemporâneas, então esse pensamento é verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Ser tomado como verdadeiro e ser tomado como falso ao mesmo tempo não é uma contradição. Mas ser verdadeiro (para uma cultura) e ser falso (para outra), ao mesmo tempo, é uma contradição.

7 comentários:

  1. Prof. Alexandre Machado,

    Lamento a extensão do meu comentário, mas achei o seu post de tal forma interessante que não pude deixar de comentar com um texto algo extendo e que que não cabe na limitação de 4096 caracteres por comentário.
    Dividirei o meu comentário em duas caixas de comentário indicando “Inicio do comentário” e “Continuação do comentário” para referencia de leitura.
    Desde já os meu muito obrigado por ter escrito este post tão interessante.

    INICIO DE COMENTÁRIO:

    Encontrei este seu post com mais de quatro anos de atraso, mas satisfez-me muito lê-lo com muita atenção porque clarifica e aprofunda uma questão com que me debato pessoalmente e em pensamento há bastante tempo: A verdade é relativa ou absoluta?
    Não tenho qualquer formação académica na área da filosofia, mas apraz-me ler um filósofo académico escrever aquilo que, de forma amadora e sem conseguir construir um formalismo lógico que o sustente, sempre suspeitei: que a verdade deve ser absoluta.
    Não quero sequestrar o seu blog, nem quero escrever um comentário que em dimensão ou em conteudo se aproxime do seu post original que aqui comento. Mas, não obstante, ao ler, entender e concordar com a argumentação que constroi a favor do carácter absoluto da verdade, não posso deixar de partilhar consigo aquilo que me parece ser a questão que entendo estar na origem desta dicotomia entre o absolutismo e o relativismo da verdade:
    Se o debate acerca do absolutismo ou relativismo da verdade perdura na humanidade, com correntes de pensamento e argumentação a favor de ambas as posições, não podemos senão concluir que assim é porque a solução (a verdade!) acerca desta questão não é trivial. A posição relativista que o prof. Alexandre aqui descontroi terá seguramente uma contra-argumentação à sua posição, pese embora não ter sido aqui postada como um comentário em jeito de contraditório.
    Nas suas próprias palavras: “Se eu considero a verdade como absoluta, objectiva e única, então considero que minhas alegações de conhecimento da verdade podem muito bem ser falsas, ou seja, eu posso estar objectivamente enganado”. Posição esta que me parece de uma honestidade intelectual a toda a prova.

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  2. CONTINUAÇÃO DE COMENTÁRIO 1

    Ou seja, o absolutista crê que a verdade é absoluta, mas não pode, nem quer, reclamar a verdade para si. Mas se assim for, o carácter absoluto da verdade é simplesmente a sua crença, tal como o relativista crê que a verdade é relativa. Assim, ambas as posições não passarão de crenças, e ambos os filósofos estarão amarrados às suas crenças enquanto a verdade absoluta acerca desta questão não for conhecida. O relativismo seria então o conformismo com a ideia que que na falta de uma prova inequivoca que que algo é verdade, então todas as crenças são relativas e equivalentes, com todos os paradoxos que isso levanta e que o prof. explanou.
    Sou forçado então a concluir que aquilo que separa uma crença duma verdade é o acesso à própria verdade, que, novamente, parece não estar ao nosso alcance a não ser nas questões mais triviais. Se assim não fosse, então o debate acerca duma questão tão nuclear para a existência humana como a natureza da verdade não teria correntes divergentes e antagónicas, ambas protagonizadas por intelectuais formados e bem intencionados que não buscam senão a verdade acerca dum tema, neste caso a verdade acerca da verdade.
    Parece-me então que o absolutista e o relativista são o que são simplesmente como resposta à pergunta: Como saber a verdade?
    O absolutista acredita (crê) que a verdade é única e absoluta, mas vê-se perante o facto de que, em muitos casos, a verdade lhe está aparentemente vedada.
    O relativista parece-me contornar esse obstáculo, declarando a questão anterior nula ao argumentar que a verdadade é relativa. Desta forma, dispensa a busca, quiça impossível, por essa verdade única e absoluta que agoniza o absolutista.
    Ao mesmo tempo, não consigo deixar de pensar (e não encontro a falácia no meu raciocínio), de que mesmo que se conseguisse provar que a verdade é relativa, então teriamos chegado a uma verdade absoluta acerca da verdade. Para que isto não sucedesse, restaria somente ao relativista que o carácter relativo da verdade não fosse demonstrável, salvando-se assim esta ideia acerca da verdade à custa da impossibilidade da sua demonstração.
    Mas como absolutista, não consigo disfarçar a agonia de não conseguir provar que a minha crença absolutista é a verdade absoluta. Apresento várias hipóteses para isto suceder:
    Ou o meu (o nosso) intelecto não é suficientemente potente para, de permissa em premissa, conseguir provar a minha tese, ou como civilização ainda não descobrimos as ferramentas de inferência lógica para provar tal tese; ou - pináculo da agonia - a verdade acerca da verdade está simplesmente vedada ao meu intelecto.
    Sabemos desde há cerca de cem anos, através do teorema de Gödel, que existem proposições verdadeiras que não têm demostração. Poderá a natureza da verdade ser uma delas?
    Sabemos também que no âmbito da física quântica, por intermédio do princípio de incerteza de Heisenberg, que há medições (aferições acerca da verdade física do universo) que, em pares, nos estão fisicamente vedadas. Poderá a verdade acerca da verdade estar para lá deste manto de incerteza?
    Se por um lado isto não não ajuda o relativista (porque ele não se interessa), por outro lado afunda ainda mais o absolutista com a prespectiva de que que a sua crença pode nunca vir a transformar-se numa verdade.

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  3. CONCLUSÃO DE COMENTÁRIO:

    Termino com um exemplo:
    Imaginemos que algures no Brasil, um pai cristão e crente que a verdade é absoluta, diz ao seu filho para ir estudar a Bíblia porque ela é a verdade absoluta. Ao mesmo tempo, algures no Iémen, um pai muçulmano mas também crente que que a verdade é absoluta, diz ao seu filho para ir estudar o Corão, porque ele é a verdade absoluta.
    Se a verdade for afinal relativa, ambos os pais estarão certos na sua crença religiosa e ambos enganados na sua crença acerca da verdade. Mas se ambos estão certos relativamente às suas crenças religiosas, então ambos estão enganados, porque a Bíblia e o Corão não podem estar simultâneamente correctos e errados, e temo escrever que a relatividade da verdade implicaria a inexistência ou, no limite, a incongruência de Deus.
    Por outro lado, se a verdade for absoluta, então ambos os pais estão correctos na sua crença de que a verdade é absoluta, mas pelo menos um deles está errado na sua crença religiosa. Mas novamente, dada a nossa inépcia como espécie racional em provar que uma determinada crença é realmente a verdade, seria necessário que o prório Deus descesse à Terra e esclarecesse qual dos pais, se algum, está correcto. O que coloca de novo em clara evidência que a nossa crença pode ter pouca ou nenhuma relacão com a verdade e que essa mesma verdade pode estar tão inacessível a nós que só uma sapiencia supra-humana, se existir, poderia resolver o paradoxo.

    No exemplo acima, escolhi propositadamente dois pais com religiões que partilham o mesmo Deus. Se tivesse escolhido um pai cristão e outro, por exemplo, Hindu, nem a descida do Omnisciente à Terra resolveria o paradoxo, porque não haveria sequer concordância entre os pais de que a informação recebida por via divida era a verdade.
    Creio que a verdade é absoluta, mas não contando com os casos mais triviais, sou impotente para aferir se a minha crença é a verdade. Resta-me então a tolerancia.

    Bruno Silva

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    1. Bruno, muito obrigado pelos elogios e pelo seu longo comentário. Creio que devo construir minha resposta apontando para três distinções. A primeira é a distinção entre dois usos de "verdade absoluta". Às vezes essa expressão é usada para criticar a atitude de quem mantém crenças de maneira dogmática, sem justificação e sem a disposição de revisá-las, mesmo diante de evidências em contrário. Diz-se coisas do tipo: "Esse sujeito age como se suas crenças fossem verdades absolutas". Mas esse uso pejorativo dessa expressão nada tem a ver com o uso no debate filosófico entre absolutistas e relativistas sobre a verdade. Quando um absolutista diz que a verdade é absoluta, ele não quer dizer que uma vez que tomamos uma proposição como verdadeira, então não devemos mais revisar nossa crença nessa proposição. A tese que a verdade é absoluta não é uma tese epistêmica, sobre nossas crenças, ou sobre nossa justificação, ou sobre o conhecimento. Ela é uma tese semântica, sobre a própria verdade. Ela tampouco é uma tese sobre a essência da verdade, se entendemos essência como o conjunto das condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que algo seja verdade. Ela é uma tese sobre a relação entre a verdade e nossos estados epistêmicos: crenças, justificações, conhecimento. A segunda distinção a que me refiro é entre a tese geral de que a verdade é absoluta e a tese particular de que essa ou aquela tese é verdadeira. O absolutismo sobre a verdade é compatível como um ceticismo epistêmico moderado, ou seja, com a dúvida sobre a existência de conhecimento. Moderado, pois o absolutista, claro, acredita saber que a verdade é absoluta. Portanto, tudo que o absolutista precisa é que sua tese sobre a verdade seja verdadeira e justificada, mais nenhuma. Ele não precisa sustentar que as discordâncias sobre outras teses possam ser decididas. Mas como ele justifica a sua tese? Bem, ele a justifica examinando o uso dos termos relevantes, tal como "verdade", "crença", "conhecimento", "justificação". Mas ele também reduz ao absurdo o relativismo sobre a verdade, mostrando que ele possui consequências inaceitáveis. E não creio que o relativista apresente qualquer coisa que se compare à justificação do absolutista. Portanto, não acho que a situação do debate seja que os debatedores estão em pé de igualdade. Por fim, gostaria de distinguir entre a noção de verdade absoluta e a noção de certeza absoluta. Porque a verdade é absoluta, disso não se segue que somente estamos justificados em crer em uma determinada proposição quando temos certeza absoluta sobre sua verdade. Por exemplo: acabei de colocar compras na geladeira e, por isso, estou justificado em crer que essas compras estão lá. Isso significa que sei que ninguém entrou furtivamente no meu apartamento e roubou as compras da geladeira? Não. Não tenho justificação para refutar toda hipótese cética improvável. Mas disso não se segue que a verdade da proposição que acredito não seja absoluta ou que eu não esteja justificado em crer.

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    2. Olá a todos. Achei excelente o texto sobre o tema verdade absoluta e verdade relativa. Também apreciei a consideração do sr. Bruno que foi bem inteligente e provocativa, além da brilhante resposta dada pelo autor do texto depois. Apenas gostaria, com a devida permissão, de fazer um breve consideração. Não sou a favor de qualquer niilismo epistêmico. O ser humano é capaz do saber e da verdade. Se não o fosse, nossa episteme seria fracassada em diversas instâncias e setores. Mas o que constatamos é que descobriu-se a gravidade e exercem-se cálculos sobre ela, descobriu-se a forma do planeta, a penicilina, utiliza-se a Matemática enquanto ciência exata e que é aplicada à realidade em si, de forma proveitosa, há avanços na Medicina, na Astrofísica, na Engenharia, desenvolveu-se a linguagem formal e objetiva etc. Nada disto seria possível sem termos certos princípios norteadores quanto à verdade do conhecimento em geral. É perfeitamente possível, também, atingir-se a plena evidência e saber a falsidade ou veracidade de opiniões, crenças e proposições. O fato de haver opiniões, crenças e proposições contrárias, não depõe contra o fato de "não se poder" elucidar a veracidade de uma em detrimento de outra. Também não se deve confundir com "realidade". Por exemplo, um falso brinco de ouro pode no entanto ser uma verdadeira bijuteria. Realidade e verdade são coisas distintas. Realidade é a coisa em si em sua existência pura e simples, enquanto que a verdade é algo do , da razão. Mas não uma verdade que seja "só do intelecto ou da mente" (idealismo racionalista) mas sim do intelecto em contato com o objeto, ou seja, com a realidade em si mesma (verdade objetiva). É nesse sentido que um teólogo e filósofo da Igreja (Santo Tomás de Aquino - séc. XIII) afirmou ser a verdade a conformidade ou adequação entre o intelecto e a realidade. Não posso afirmar, ou será uma falsidade fazê-lo, que uma "laranja" seja o mesmo que um "gato". A mente, em contato com a realidade (adequada à ela), pode apreender as diferenças marcantes e pontuais entre uma coisa e outra, compreendendo a natureza de cada uma delas.

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    3. Continuação...

      O que existem são graus de adequação entre o intelecto e a mente, gerando diferentes estados de espírito ou estados de inteligência diante da verdade (ignorância - ausência do conhecimento de uma verdade, por alguém; dúvida - considera uma verdade como sendo possível; opinião - considera uma verdade como sendo provável ou como tendo probabilidade; certeza absoluta com base na plena evidência). É claro que há certezas com base no mero senso comum e que não possuem sustentação quando ponderadas, comparadas, analisadas e submetidas a rigorosos critérios com base na racionalidade e na experiência. Não é sobre este tipo de certeza que falo (a do senso comum), mas sim a de um estado de certeza irrecusável e inegável para a inteligência. Tais certezas estão assentadas em verdades metafísicas evidentes por si em si e que possibilitam todo e quer conhecimento. É o caso, por exemplo, de verdades metafísicas como a que afirma que toda unidade é diversa da multiplicidade, ou a de que todo efeito possui uma causa, ou a de que algo não pode ser o seu contrário simultaneamente e sob o mesmo aspecto, ou de que o todo é maior do que a parte. Uma verdade é tanto mais evidente na medida em que sequer pode ser provada justamente por ser por demais evidente. Não posso "provar" que "a luz de uma sala está acesa", quando está acesa e quem duvida está dentro da mesma sala comigo em suas condições normais de visão e consciência (com boa visão, acordado, consciente e de olhos abertos). Tratar-se-ia de uma verdade tão evidente que dispensaria qualquer "prova" a respeito. Portanto, no conceito de adequação temos sim uma conpreensão a respeito da natureza da verdade (o que ela é). O fato é que a verdade é sempre objetiva. Tem sempre a ver com o intelecto que vai ao encontro do objeto e apreende suas notas essenciais. Não se deve negar, todavia, que haja a verdade relativa, situacionista, circunstancial e subjetiva, mas esta só é possível justamente por haver a verdade absoluta. Quanto à fé religiosa, de fato a fé ou o que se crê não pode ser "provado", todavia, pode-se demonstrar boas razões para se crer naquilo que se crê. É possível saber se condiz com a realidade em si que ela tenha origem uma causa absoluta ou não. É possível comparar Cristianismo e Islamismo do ponto de vista histórico e teológico metafísico etc, a fim de concluir qual possui bases bem assentadas, sendo que as pessoas que não vêem as vantagens de crença de um sistema em detrimento ao outro, dificilmente empreenderam um processo acurado de exame a respeito. Outra coisa é a distinção entre e "saber plenamente a verdade". Ninguém conhece "toda a verdade", ou, não se pode saber toda a verdade a respeito de algo. Santo Tomás de Aquino dizia que o intelecto não pode esgotar a essência de uma mosca sequer. Todavia, é possível saber que . Esta é a conclusão do Realismo Moderado; podemos conhecer a verdade de algo, ainda que de forma limitada, mas sendo tal conhecimento plenamente verdadeiro ou plenamente condizente com a realidade. Obrigado.

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    4. Caro João. Obrigado pelo comentário. Em primeiro lugar, a teoria da verdade como adequação ou correspondência é extremamente problemática. Exponho algumas dessas razões aqui: http://problemasfilosoficos.blogspot.com/2014/11/teorias-da-verdade.html Em segundo lugar, essa idéia da totalidade da verdade sobre algo me parece obscura. Qual é o critérios para essa totalidade? Se não há critério, como se pode afirmar que essa totalidade não pode ser conhecida? Em terceiro lugar, essa comparação das religiões às ciências me parece descabida. A religião não é um sistema de verdades justificadas cientificamente. As crenças religiosas são aceitas com base em qualquer coisa, menos em evidências científicas, objetivas. Por fim, a idéia de auto-evidência tb é obscura. Como uma proposição pode ser evidência para si mesma? O princípio de não-contradição, por exemplo, é evidência para si mesmo? Isso não seria circular?

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