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segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Sociedade, natureza e naturalismo


Há uma distinção geralmente aceita e aparentemente inócua entre natural e artificial. Natural seria aquilo que é como é sem que para isso a ação humana tenha qualquer papel causal. Por exemplo: as montanhas que formam a cordilheira do Himalaia são naturais, pois nenhuma ação humana desempenhou qualquer papel causal para que elas se formassem. Artificial seria justamente o contrário: seria aquilo que é como é porque a ação humana teve algum papel causal. Por exemplo: falamos de seleção artificial de espécies (por oposição à seleção natural) nos referindo àquelas espécies de seres vivos que criamos por diversas razões: estéticas, medicinais, alimentares, de segurança, sociais, etc. Cães, por exemplo, são lobos modificados por essa seleção artificial.

O natural é normalmente pensado como aquilo que não poderia ser de outro modo, pois é o que é devido exclusivamente às leis naturais. O artificial é normalmente pensando como aquilo que poderia não existir ou ser de outro modo, dado que é efeito das ações humanas, que seriam livres.

Essa distinção entre natural e artificial, embora possa ser útil para alguns propósitos, pode gerar problemas. Se natural é aquilo que é como é sem que para isso a ação humana tenha qualquer papel causal, então o que dizer das próprias ações humanas? Ou elas são naturais ou não são naturais.

Se elas são naturais, então por que aquilo que é efeito dessas ações e de outras causas naturais, o artefato, não é, também, natural? Alguém poderia argumentar: ações humanas não são naturais porque são o efeito de coerções sociais. Mas ser o efeito de coerções sociais somente seria uma razão suficiente para que nossas ações fossem artificiais se tais coerções não fossem, elas próprias, artificiais. Entretanto, o que são essas coerções sociais se não ações de outras pessoas? Como explicar que essas coerções seriam não-naturais?

Uma das causas que geram esses problemas é o fato de a distinção entre natural e artificial, tal como apresentada acima, ser relativa a nós, humanos, e definida a partir das nossas ações. Para um João-de-barro, as coisas que fazemos, nossos prédios, pontes, carros, computadores, etc., são naturais, mas não a sua casa de barro. Ela não existiria sem suas ações. Por ser relativa a nós e nossas ações, tentar aplicar a distinção natural/artificial às nossas ações gera os problemas do parágrafo anterior. Dadas as definições de "natural" e "artificial" acima, perguntar se ações humanas são artificiais parece análogo a perguntar se estou à minha direita. Todas as coisas, exceto eu mesmo, estão ou não estão à minha direita. Todas as coisas, exceto as ações humanas, são, ou naturais, ou artificiais, no sentido definido acima.

Talvez muitos problemas sejam evitados se definirmos "natural" como aquilo que é como é sem que, para isso, a ação de um agente qualquer tenha qualquer papel causal

Mas não há nenhum sentido em que possamos dizer, das ações humanas, que algumas são naturais e outras são artificiais? Em um sentido diferente do definido acima, sim. As ações humanas são naturais no sentido em que são eventos naturais que não são exceções às leis naturais. Essa não é uma definição relativa de "natural", muito menos relativas às nossas ações. Por isso podemos dizer das ações humanas que elas são naturais nesse sentido. Mas há algum sentido em que possamos dizer das ações humanas que algumas são artificiais? Sim, mas esse sentido não se opõe ao sentido de "natural" recém definido. Nesse sentido, uma mesma ação pode ser, ao mesmo tempo, natural e artificial. Uma ação pode ser considerada artificial quando ela é aprendida e natural, em um sentido diferente do recém definido, quando não-aprendida. Para que uma criança aprenda algo, ela deve reagir ao ensino de forma não aprendida. Tais reações são ações naturais. Mas ações aprendidas, mesmo sendo artificiais nesse sentido, são naturais no sentido de não serem exceções às leis naturais.

Essas reflexões mostram que qualquer afirmação que repouse sobre uma distinção entre natural e artificial não esclarecida é, no mínimo, obscura. Em muitas discussões sobre problemas sociais essa distinção é frequentemente evocada, seja de forma explícita, seja de forma tácita. Mas o ponto para o qual quero chamar a atenção é a discussão sobre a metodologia da sociologia, a ciência dos fenômenos sociais. Se as ações humanas não são exceções às leis da natureza, então por que os fenômenos sociais não podem ser estudados usando-se as metodologias das ciências naturais? Por que a sociologia, o estudo dos fenômenos sociais, tais como a ética, a religião, a economia, o gênero, etc., não pode ser naturalizada? Por que há tanta resistência a essa naturalização nas ciências humanas e sociais em geral?

Muito dessa resistência se deve a ignorância e/ou preconceito em relação às ciências naturais. Todavia, um dos focos da resistência teórica bem informada consiste em apontar para uma dificuldade enfrentada por essa naturalização: dar conta dos valores e, principalmente, das normas. O comportamento humano (mas não apenas o humanos) é em boa medida normativo, isto é, determinado por normas ou regras. Isso significa que de algumas ações podemos dizer que são corretas, porque estão de acordo com determinadas regras, e de outras que são incorretas, porque estão em desacordo com determinadas regras. Além disso, algumas regras, as regras morais, são seguidas porque são consideradas (valoradas) boas em si mesmas. Dessa valoração nascem os deveres ou obrigações morais. Os anti-naturalistas argumentam que uma metodologia naturalista não é capaz de explicar o comportamento normativo. Leis naturais não são como regras que seguimos. Em primeiro lugar, a ação de seguir regras é voluntária. Podemos muito bem nos recusarmos a seguir regras. Mas nada do que fazemos pode ser a exceção a alguma lei natural. Além disso, podemos cometer erros na tentativa de seguir regras. Eventos naturais, por sua vez, não podem errar. Sendo assim, como poderíamos explicar a prática de seguir regras por meio de teorias que explicam todos os eventos naturais por meio de leis naturais?

Na esteira desse receito teórico à naturalização da sociologia está o receio de uma darwinismo moral. Uma naturalização da sociologia, argumenta-se, implicaria tratar a ética como um mero instrumento de adaptação evolutiva e isso implicaria que padrões de comportamento que tiveram um papel causal no nosso sucesso evolutivo seriam normativos, ou seja, seriam os padrões de comportamento que deveríamos adotar. Isso enfrenta ao menos dois problemas. O primeiro é o problema da falácia naturalista: inferir como nosso comportamento deve ser de como ele de fato é, ou tem sido. Essa inferência, prima facie, é inválida. O segundo problema consiste no fato de que comportamentos para os quais atualmente temos boas razões para considerar errados seriam aparentemente justificados por um tal darwinismo moral, tal como o comportamento machista, por exemplo. Se a monogamia, a divisão de tarefas entre homens e mulheres, etc., tiveram um importante papel casual no nosso sucesso evolutivo, então uma naturalização da ética implicaria que esses padrões de comportamento seriam normativos.

Parece que os naturalistas têm uma vantagem nessa controvérsia: se as ações humanas não são uma exceção às leis da natureza, então se se pretende que a sociologia seja mesmo uma ciência, parece plausível supor que é possível naturalizar a sua metodologia e que, portanto, é possível dar uma explicação naturalística do comportamento normativo. Se isso for possível, então todas as  disciplinas cognitivas que possuam um componente normativo podem ser naturalizadas. A própria ética poderia ser naturalizada. E provavelmente nosso comportamento normativo tem alguma coisa a ver, sim, com a história evolutiva de adaptação da nossa espécie. Uma maneira de se evitar o darwinismo moral consiste em apontar para a diferença entre, por um lado, explicar naturalisticamente por que adotamos determinados padrões de comportamento e, por outro, justificar esses comportamentos. Essa diferença pode ser explicada de modo claro por meio do exemplo do hábito de consumir produtos de origem animal. É um fato da nossa história evolutiva que nosso cérebro se desenvolveu ao ponto em que está porque consumimos proteína, especialmente aquela contida na carne. E graças ao nosso cérebro, temos uma história de sucesso na seleção natural. De acordo com o darwinismo moral, isso implicaria que é um dever moral comermos carne. Todavia, graças a esse mesmo cérebro, atualmente temos condições de saber que a proteína de que necessitamos para uma vida saudável pode ser encontrada em alimentos de origem vegetal. Portanto, embora seja um fato nosso cérebro evoluiu graças ao consumo de carne, esse fato não tem nenhuma força normativa. Uma reflexão análoga pode ser feita sobre o machismo: mesmo que a monogamia, a divisão de tarefas entre homens e mulheres, etc., tenham tido um importante papel casual no nosso sucesso evolutivo, o fato que essas coisas não são mais necessárias para a manutenção do nosso sucesso evolutivo mostra que tais padrões de comportamento não têm nenhuma força normativa. Por fim, o Darwinismo moral parece estar em si mesmo errado. Não parece ser contraditório que um certo padrão de comportamento, mesmo que prejudicial ao nosso sucesso evolutivo, seja moralmente correto.




segunda-feira, 25 de março de 2013

Bem em si e o bem que podemos realizar

Aristóteles apontando para o
chão e segurando o seu livro
sobre ética. Um símbolo
perfeito do que defendo
neste texto.
Temos duas intuições que parecem conflitantes entre si. Por um lado, parece que certas ações são em si mesmas más ou boas. Por outro, parece que em algumas circunstâncias, algumas dessas ações são aquilo que devemos fazer. Mas o que devemos fazer parece ser o que é bom. Por exemplo: parece que matar um ser humano é em si mesmo algo mau, mesmo quando esse ser humano é mau. Um sintoma disso é que não parece aceitável que alguém tenha prazer em matar um ser humano, mesmo quando esse ser humano é mau. Mas parece que, em algumas circunstâncias extremas, isso é justamente o que devemos fazer, como quando esse é o único meio de salvar um ser humano que está sob o risco de ser morto por outro, por exemplo. Como pode ser o caso que devamos fazer o que é em si mesmo mau? Se algo é em si mesmo mau, não se segue disso que é algo que não deve ser feito em nenhuma circunstância? Creio que não. O aparente conflito surge de uma confusão entre dois diferentes tipos de juízo moral.

Um tipo de juízo moral é aquele em que comparamos diferentes mundos possíveis para decidir qual deles é moralmente o melhor. Por exemplo: ceteris paribus, qual mundo possível é o melhor, um em que, em certas circunstâncias, devemos matar um ser humano, ou um em que não há nenhuma circunstância em que isso precise ser feito? Parece que o melhor é um em que não precisamos fazer isso. Esteja essa resposta certa ou errada, quem a dá está julgado que matar um ser humano é um mal em si. Mas ela parece ser a resposta que a maioria de nós daria, pois é por isso que não achamos correto que alguém tenha prazer em matar um ser humano, mesmo quando isso é necessário. Não toleramos o prazer em matar um ser humano porque isso seria ter prazer em fazer o que é um mal em si. Quando estamos escolhendo os melhores mundos possíveis do ponto de vista moral, estamos escolhendo valores, ideais éticos, independentemente das circunstâncias reais em que nos encontramos. Por isso dizemos que (para ficar no mesmo exemplo) a vida humana é um valor ou bem absoluto.

Mas não vivemos no melhor dos mudos possíveis, pois no mundo atual há circunstâncias extremas em que devemos matar seres humanos. Nessas circunstâncias, o melhor a ser feito e, portanto, o bem moral, é matar um ser humano, embora isso seja em si mesmo um mal, ou seja, embora um mundo possível em que não precisamos matar seja melhor que o mundo atual. Isso é a realização do bem moral porque é um meio moralmente bom (porque o melhor a ser feito nessas circunstâncias) para atingir um certo fim moral bom em si: salvar uma vida humana. Portanto, não há contradição em se dizer que matar um ser humano é um mal em si e que matar um ser humano é, em certas circunstâncias, a realização do bem moral. Aristóteles viu bem isso quando argumentou que, em algumas circunstâncias, o que devemos fazer e, portanto, é o bem moral, é o menor dentre os males.

Um outro bom exemplo de ação que geralmente é considerada em si mesma má, mas que é considerada como aquilo que, em certas circunstâncias, devemos fazer, é o ato de mentir.

Não quero dizer que as expressões "bem absoluto" ou "valor absoluto" tenham apenas o significado recém explicado. Alguns de fato a usam para falar do que é bom ou mau independentemente das circunstâncias, de tal forma que o que é absolutamente mau não pode ser bom em nenhuma circunstância em nenhum sentido moral de "bom". O problema com essa maneira de ver as coisas é que ela neglicencia uma ambiguidade de frases da forma "Fazer x é bom" e "Fazer x é mau", de tal forma que não consegue explicar a tensão apontada no início, salvo como uma pura contradição. Se "bom*" (ou "mau*") significa o que é absolutamente bom (ou mau) e "bom**" (ou "mau**") significa o que é bom (ou mau) em certas circunstâncias, então algo que é mau* não é bom* em nenhum circunstância, mas pode ser bom** em algumas circunstâncias. Julgar o que é melhor fazer em certas circunstâncias é diferente de julgar qual dentre alguns mundos possíveis é moralmente melhor, de tal forma que uma mesma ação pode ser julgada ser em si mesma má (má*) e ser a realização do bem moral em certas circunstâncias (boa**).

Alguém poderia dizer que do que eu digo se segue no máximo que a realização do bem moral, em algumas circunstâncias, se dá por meio de uma ação que não é boa em nenhum sentido moral de "boa" e que, portanto, fazer o menor dos males é ainda fazer um mal. Mas isso implicaria que o mal pode ser um bom meio para o bem, pois, afinal é o melhor meio em certas circunstâncias. A pergunta agora seria: em que sentido de "bom" esse seria um bom meio? Se se trata de algo que não é moralmente bom em nenhum sentido moral de "bom", então, se é um bom meio, não é no sentido moral de "bom". Entretanto, é claro que quando vamos decidir qual meio devemos adotar para atingir um fim bom em si, devemos julgar se esses meios são ou não moralmente bons, e dai vem nossa intuição que os fins não justificam os meios. Mas se não há justificação moral para os meios, se, pelo contrário, temos justificação moral para rejeitá-los, pois são maus, parece que ser um bom meio (num sentido não moral de "bom") para atingir um bem moral em si é irrelevante do ponto de vista moral, e, portanto, deveríamos rejeitar esses meios.

Bem, alguém poderia admitir isso e concluir que em algumas circunstâncias não podemos realizar o bem moral. Mas se ainda podemos realizar o que é melhor nessas circunstâncias, por que isso não seria um bem moral? Porque a realização do bem moral, segundo esse objetor, seria apenas aquilo que é a realização do que em si mesmo é bom, tanto os fins, quanto os meios. Mas se esse fosse o caso, teríamos uma situação possível em que ou a pessoa seria má mesmo tendo realizado sempre o que é moralmente melhor em cada circunstância, ou seria boa, mesmo tendo realizado sempre o que é em si mesmo mau e, portanto, mau em qualquer sentido moral de "mau". Isso ocorreria no caso de uma pessoa ter o azar moral de viver apenas circunstâncias em que ela não pode realizar o que é em si mesmo bom, mas apenas o que é o menor dentre os males. Nenhuma dessas consequências parece aceitável. E isso se deve ao fato de que há um sentido moral de "bem" de acordo com o qual a realização do bem moral em certas circunstâncias é a realização do que é moralmente melhor nessas circunstâncias.

Essas considerações concilam os papéis dos valores absolutos e da observância das circunstâncias na deliberação. Deliberar é algo que deve ser feito sempre tendo-se em uma mão os valores absolutos ou ideais e, na outra, a ponderação das circunstâncias. A última sem os primeiros é casuísmo. Os primeiros sem a última é um rigorismo moral impraticável.

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Dedico essa postagem à minha querida e saudosa amiga Nadia Ariella, com quem um dia tive uma discussão sobre essas questões em uma época em que as coisas não estavam tão claras para mim. Lamento ter demorado tanto pra chegar a essas conclusões. As idéias básicas desse textos me vieram quando ouvia uma palestra sobre e gramática da ética, do meu amigo Darlei Dall'agnol, no final de 2011, em Salvador.