Essencialismo é a teoria metafísica segundo a qual há condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que algo seja um exemplo de um determinado tipo de coisas. O conjunto dessas condições necessárias e suficientes é tradicionalmente chamado a essência geral de um tipo de coisas. A essência, portanto, não é alguma coisa etérea que habita as coisas, como algumas vezes não-filósofos estão inclinados a pensar.
Uma consequência dessa teoria metafísica é uma teoria semântica sobre os conceitos: o conceito de um tipo de coisas que possui uma essência pode ser definido em termos de condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que ele se aplique verdadeiramente a alguma coisa. Portanto, essa definição é a expressão linguística da essência desse tipo de coisas.
Por exemplo: suponha que a definição tradicional de conhecimento esteja correta e que conhecimento, portanto, seja uma crença verdadeira justificada.[1] Nesse caso, essa definição apresenta as condições individualmente necessárias, a saber, ser uma crença, ser verdadeira e ser justificada, e conjuntamente suficientes para que algo seja conhecimento; apresenta a essência do conhecimento.
Na linguagem ordinária, há um uso do adjetivo "essencial" aparentado com o uso filosófico, porém com uma diferença importante. Uma propriedade é essencial em relação a um certo tipo de coisas quando possuir essa propriedade é uma condição necessária para ser um exemplo de uma coisa desse tipo. Mas nem sempre essa condição necessária é também suficiente. Por exemplo: ter um assento é uma propriedade essencial das cadeiras, ou seja, ter assento é uma condição necessária, embora não suficiente, para algo ser uma cadeira. Uma outra condição necessária (essencial, no sentido ordinário) mas não suficiente para que algo seja uma cadeira, é ter um encosto ou espaldar. Mesmo a conjunção dessas duas condições não é suficiente para algo ser uma cadeira. Por isso, no sentido filosófico tradicional de "essência", a conjunção dessas duas condições necessárias não constitui a essência das cadeiras, pelo simples fato que coisas que não são cadeiras podem muito bem satisfazer essas condições.
Esse exemplo das cadeiras é prefeito para ilustrar o seguinte ponto: negar que cadeiras tenham essência (no sentido filosófico tradicional), isto é, ser anti-essencialista em relação às cadeiras, é compatível com admitir que há condições necessárias para que algo seja uma cadeira. Portanto, em um sentido de "anti-essencialista", você pode ser anti-essencialista em relação a um certo tipo de coisas e admitir que há condições necessárias para que algo seja um exemplo de uma coisa desse tipo.
Penso que esse é exatamente o caso de Wittgenstein no que respeita à sua idéia de conceito de semelhanças de família. Tais conceitos não são definíveis em termos de condições necessárias e suficientes. Mas, o que eu defendo é que, para Wittgenstein, isso é compatível com haver condições necessárias para a sua aplicação. Wittgenstein introduz a idéia de conceitos de semelhanças de família por meio do exemplo do conceito de jogo. Esse conceito não é aplicado com base no conhecimento de condições necessárias e suficientes, mas com base nas semelhanças entre seus exemplos. Tais semelhanças não são propriedades que todos os exemplos possuem, mas são análogas às semelhanças fenotípicas entre os membros de uma família biológica. Os membros de uma família biológica não possuem todos as mesmas propriedades fenotípicas, mas se dividem em subgrupos de possuem propriedades comuns e esses subgrupos possuem zonas de intersecção com outros subgrupos. De forma análoga, os critérios de aplicação dos conceitos de semelhanças de família são semelhanças desse tipo entre os exemplos. Mas, e esse é o ponto importante, não apenas isso. Os conceitos de semelhança de família também são aplicados com base em condições necessárias. Voltando ao exemplo dos jogos, nada é um jogo se não for (a) uma atividade, (b) se não for governado por regras, (c) se não for inventado, etc. Ao aplicarmos o conceito de jogo a um caso particular, além de levarmos em conta essas condições necessárias, satisfeitas por tudo que é um jogo, levamos em conta as semelhanças entre o caso em questão e os demais exemplos de jogos, especialmente os exemplos paradigmáticos. Isso é assim porque aquelas condições necessárias, comuns a todos os jogos, não são conjuntamente suficientes para que algo seja um jogo. Creio que é isso que Wittgenstein quer dizer quando diz que os jogos não têm nada em comum: eles não têm nada em comum que permita definir "jogo" em termos de condições necessárias & suficientes.[2]
Mas essa última afirmação precisa ser qualificada para que fique claro em que sentido Wittgenstein é um anti-essencialista e em que sentido ele não é. A afirmação categórica que os membros de um conjunto, tal como o conjunto dos jogos, não possuem propriedades que todos e apenas os jogos possuem somente poderia ser justificada pelo exame de todos os jogos. Certamente Wittgenstein não fez isso quando escreveu as Investigações Filosóficas. Portanto, a caridade interpretativa demanda que não atribuamos essa afirmação a ele, se houver uma outra maneira de interpretá-lo. E há. O ponto de Wittgenstein era: a despeito de haver uma essência dos jogos, não aprendemos esse conceito nem o aplicamos com base no conhecimento (mesmo que implícito) dessa essência. Wittgenstein não era um essencialista com sinal negativo. Se fosse, estaria sustentando uma tese metafísica negativa. Em vez disso, ele argumentava contra o essencialismo semântico: a tese que nossos conceitos são aplicado com base no conhecimento de condições necessárias e suficientes. Não dispomos de um tal conhecimento, no caso dos conceitos de semelhança de família, como o conceito de jogo; não sabemos definir "jogo" em termos de condições necessárias e suficientes. Temos apenas o conhecimento de condições necessárias, mas não suficientes, e das semelhanças entre os jogos.
A importância filosófica dos conceitos de semelhança de família vem da alegação que conceitos tradicionalmente importantes para a filosofia, tal como os conceitos de verdade, conhecimento, bem, linguagem, etc., são conceitos de semelhança de família e, portanto, não possuem uma definição em termos de condições necessárias e suficientes, como os essencialistas sustentam.
Essa considerações são importantes para uma discussão que se deu no século passado sobre a definição de "obra de arte". Weitz[3], ao atribuir a Wittgenstein um anti-essencialismo, chega ao ponto de dizer que, para ele, não há nenhuma condição necessária para algo ser uma obre de arte. Um exemplo que ele usa para ilustrar seu ponto é o de troncos secos de madeira que encontramos à beira de rios, lagos e mares (driftwoods, em inglês). Ele afirma que alguém poderia chamar isso de "obra de arte", devido às suas qualidades estéticas. E isso, supostamente, mostraria que a propriedades de ser um artefato, de ser produzido por alguém, não é uma condição necessária para algo ser uma obra de arte, pois aqueles troncos certamente não a satisfazem.
Todavia, ao dizer isso, Weitz negligencia uma distinção que ele próprio formula: a distinção entre o uso descritivo e o uso avaliativo de "obra de arte". No seu uso avaliativo, quando dizemos que algo é uma obra de arte, estamos fazendo um elogio estético a essa coisa, ressaltando suas qualidades estéticas excelentes. Nesse sentido da expressão, não pode haver uma obra de arte ruim, de má qualidade. Mas quando se discute se as obras de arte possuem ou não uma essência, o que está em questão é se o que chamamos de obra de arte no sentido descritivo possui uma essência. No sentido descritivo, algo pode ser uma obra de arte ruim, de má qualidade (seja quais forem os critérios para isso), pois para ser obra de arte, nesse sentido, embora seja necessário ser um artefato produzido por alguém com finalidades estéticas, não é necessário que seja algo que atinge esse objetivo de forma excelente. Alguém pode negar que certos tipos de música, por exemplo, sejam obras de arte de qualidade excelente. Mas negar que sejam obras de arte em absoluto somente pode fazer sentido se "obra de arte" estiver sendo usada no sentido avaliativo. Por mais ridículas que sejam as rimas que alguém faz ao tentar levar a cabo suas aspirações poéticas, o simples fato de avaliá-las como ridículas já denuncia que as estamos avaliando como obras de arte, ou seja, como um artefato produzido com finalidades estéticas.
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[1] Edmund Gettier apresentou dois contra-exemplos dessa definição, dois casos que satisfazem as condições especificadas mas não são conhecimento.
[2] Por outro lado, há condições suficientes mas não necessárias para que algo seja um jogo. Por exemplo: ser uma atividade regrada inventada em que dois adversários, ou dois times de adversários, procuram marcar mais pontos com uma bola dentro de um tempo limitado. Vários atividades satisfazem essas condições e, por isso, são jogos. Mas muitos jogos não satisfazem ao menos algumas dessas condições. O tênis, por exemplo, satisfaz todas as condições, exceto a última: uma partida de tênis não tem um tempo limitado.
[3] Weitz, Morris (1956) “The Role of Theory in Aesthetics,” Journal of Aesthetics and Art Criticism, 15, pp. 27–35.
o conceito de jogo é daqueles cuja definição é impossível.
ResponderExcluirImpossível? Qual a justificação para essa afirmação modal?
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