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quinta-feira, 1 de junho de 2017

Internalismo e externalismo epistêmico

Cena do filme Ray Man, em que o protagonista,
um autista (Dustin Hoffman), diz, sem contar,
quantos palitos há no chão.

Antes de mais nada, algumas palavras sobre a origem dos termos "internalismo" e "externalismo". Estes termos são resultados e um anglicismo. Um anglicismo é um modo próprio de falar da língua inglesa, mas que acaba sendo adotado na língua portuguesa. Em inglês, "interno" é "internal", e "externo" é "external". Desses termos em inglês derivam-se os nomes ingleses das duas teorias "internalism" e "externalism". A tradução correta desses dois termos para o português deveria ser "internismo" (de "interno") e "externismo" (de "externo"). Todavia, os anglicismos "internalismo" e "externalismo" já estão, infelizmente, consolidados na literatura sobre o assunto no Brasil.[1]

Há várias formulações do internalismo epistêmico. A começar, ele pode ser uma teoria sobre o conhecimento ou sobre a justificação.[2] Seja como for, o externalismo é invariavelmente uma teoria cuja tese principal é a negação de alguma tese principal do internalismo. Como uma teoria sobra a justificação, podemos formular a principal tese do internalismo do seguinte modo (onde s é um sujeito cognoscente qualquer e p é uma proposição qualquer):
s está justificado em crer que p se s é consciente dos justificadores de p.
O ponto central dessa tese é que o que justifica a crença de que p (os justificadores de p, sejam esses quais forem) deve ser cognitivamente acessível a quem possui uma crença justificada. Mas que tipo de acesso seria esse, atual ou potencial? Muitas vezes não estamos atualmente conscientes daquilo que torna nossas crenças justificadas, embora possamos nos tornar conscientes delas por mera reflexão, ou seja, sem a necessidade de fazer inferências e adquirir novos conhecimentos. Sendo assim, uma versão fraca do internalismo sobre a justificação pode ser formulada assim:
s está justificado em crer que p se s pode tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores de p.
Outro ponto sobre os quais os internalistas podem discordar é sobre se o acesso cognitivo aos justificadores de uma crença deve ser completo ou parcial. Se uma pessoa precisa agir rapidamente e, no curso de sua ação, ela adquirir rapidamente muitas crenças, é implausível que ela seja consciente de todos os justificadores dessas crenças. E é irrealista exigir que ela lembre-se de todos os justificadores de suas crenças em um momento posterior, mais calmo. Por isso, parece mais plausível e realista que ela deve poder lembrar-se ao menos de parte desses justificadores. Qual parte? A parte essencial, isto é, a parte não poderia ser esquecida sem que a crença se torne injustificada. Com base nessas considerações, esta seria a principal tese do internalismo da justificação:
s está justificado em crer que p se s pode tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
A versão do internalismo do conhecimento correspondente a esta versão do internalismo da justificação seria, então, a seguinte:
s sabe que p se s pode tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
Mas o que são os justificadores essenciais de uma crença? Tanto o internalismo sobre a justificação quanto o internalismo sobre o conhecimento parecem implicar o mentalismo sobre os justificadores, ou seja, parece implicar que os justificadores são itens mentais, pois o que mais poderia ser cognitivamente acessível por mera reflexão? Todavia, entre tais itens mentais, um conjunto deles tem desempenhado um papel central no internalismo tradicional: a inferência dedutiva. De acordo com isso, ter uma justificação para uma crença C é ter outras crenças justificadas de onde C é inferida validamente. O problema dessa tese sobre a justificação é que ela parece implicar um regresso ao infinito. Para se ter justificação para se acreditar que p é necessário inferir p de q e ter justificação para se acreditar que q. Mas então é necessário ter justificação para se acreditar que q e, por isso, é necessário inferir q de r e ter justificação para se acreditar que r, inferir r de s e ter justificação para se acreditar que s, inferir s de t e ter justificação para se acreditar que t, e assim por diante ad infinitum.

Uma maneira e se apresentar o internalismo sobre o conhecimento é dizendo que, para o internalista, se uma pessoa sabe alguma coisa, então ela sabe o que constitui o conhecimento, ou seja, ela sabe que sabe. Por isso, ela estaria sempre em condições de responder corretamente à pergunta "Como você sabe?", apresentando as razões sobre as quais sua crença está baseada.

O externalismo da justificação, sendo a simples negação do internalismo da justificação, baseia-se fortemente na apresentação de contra-exemplos da tese internalista. Desta forma, sua principal tese é a seguinte:
Em alguns casos, s está justificado em crer que p, mesmo que s não possa tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
A principal tese do externalismo do conhecimento seria a seguinte:
Em alguns casos, s sabe que p, mesmo que s não possa tornar-se consciente por mera reflexão dos justificadores essenciais de p.
Um caso que seria um contra-exemplo da tese internalista seria o de algumas pessoas que são capazes de dizer o dia da semana de cada data. Sabemos que elas geralmente estão certas porque podemos conferir com um calendário o que elas dizem. Entretanto, elas não consultam o calendário para dizer o dia da semana de cada data. Se perguntarmos a algumas delas como elas sabem o dia da semana de cada data, elas não sabem responder. Podemos inferir da percentagem da correção do que elas dizem, muito cima da adivinhação sortuda, que há algum tipo de mecanismo gerando nelas crenças geralmente verdadeiras. Mas elas próprias são incapazes de dizer que mecanismo é esse. Elas são incapazes de ensinar outras pessoas a desenvolverem a mesma habilidade. Mas isso, segundo o externalista, não impede que elas saibam ou tenham crenças justificadas. A ação desse mecanismo desconhecido é justamente o que justifica as suas crenças verdadeiras, na medida em que esse mecanismo conduz à verdade, ou seja, é confiável.

Uma motivação adicional para o externalismo, além dos contra-exemplos das teses internalistas, é a possibilidade de evitar o regresso infinito das justificações implicado pelo internalismo. Se estar justificado em acreditar que p nem sempre é realizar uma inferência dedutivamente válida cuja conclusão é p e cujas premissas são proposições suja crença é também justificada, então abre-se espaço para a possibilidade de crenças básicas justificadas de uma outra maneira.

Há uma objeção ao externalismo baseada numa concepção normativa ou deontológica da justificação. De acordo com essa concepção, um sujeito cognoscente obtém justificação para suas crenças quando cumpre com os sua obrigações ou deveres epistêmicos de forma excelente. Isso significa que um sujeito cognoscente obtém justificação quando segue as normas para a obtenção de crenças justificadas. A idéia de uma ética da crença é justamente a idéia de um conjunto de normas que devemos seguir para a obtenção de crenças justificadas. Ocorre que normas devem especificar as condições que, se satisfeitas, elas são seguidas. Por exemplo: se houver uma placa no meio fio que contém um círculo vermelho com fundo branco, no interior do círculo há um "E" maiúsculo preto cortado por uma linha vermelha diagonal, não estacione naquele local. Para garantir que as pessoas possam em geral seguir as placas de trânsito, os responsáveis por elas procuram deixar essas placas sempre facilmente visíveis. Caso contrário, elas não poderiam ser seguidas. Mas como se poderia seguir as normas para a obtenção de crenças justificadas, se os justificadores das nossas crenças fossem cognitivamente inacessíveis por meio de uma mera reflexão? Se o justificador de minha crença é algum processo regular no meu cérebro cognitivamente inacessível à mera reflexão, como posso saber que estou seguindo normas para a obtenção de justificação quando ele ocorre? O argumento, em suma, é este:
Nossas crenças adquirem justificação por meio de um processo normativo, em que se segue regras epistêmicas para a obtenção de crenças justificadas.
Seja o que for que aconteça nos casos que os externalistas apresentam como contra-exemplos do internalismo, não se trata de um processo normativo em que se segue regras epistêmicas para a obtenção de crenças justificadas.
Logo, seja o que for que aconteça nos casos que os externalistas apresentam como contra-exemplos do internalismo, não se trata de aquisição de justificação para crenças.
Há uma resposta a esse argumento que ataca um pressuposto da concepção normativa ou deontológica da justificação. Como vimos, segundo essa concepção, um sujeito cognoscente obtém justificação quando segue as normas para a obtenção de crenças justificadas. Dado que se tratam normas para a aquisição, manutenção e revisão de crenças, elas têm as seguintes formas gerais:
Se tais e tais condições forem satisfeitas, você deve acreditar que p.
Se tais e tais condições não forem satisfeitas, você deve não acreditar que p.
Mas, deveres implicam possibilidades.[3] Se uma norma determina que eu devo fazer X, deve ser possível, em todos os sentidos de "possível", que eu faça X. Mas não apenas isso: deve ser possível que eu não faça X. Não faz sentido obrigar alguém a fazer o que ele não pode não fazer. Analogamente, não faz sentido proibir alguém de fazer algo que que não pode fazer. Em outras palavras, as normas para se fazer X implicam que fazer X é algo voluntário, ou seja, é algo que está sob o controle direto da vontade. Sendo assim, as normas para a aquisição, manutenção e revisão de crenças implicam que a aquisição de crenças é voluntária, está sob o controle direto da vontade. Todavia, há o seguinte argumento contra essa tese:[4]
Se a aquisição de crenças fosse voluntária, então alguém poderia crer que não-p, mesmo depois de aceitar as premissas e a validade de um argumento cuja conclusão é p.
Ninguém poderia crer que não-p, depois de aceitar as premissas e a validade de um argumento cuja conclusão é p.
Logo, a aquisição de crenças não é voluntária.
O problema com essa concepção não voluntarista da aquisição de crenças é que, aparentemente, de acordo com ela, não faz sentido dizer que uma crença falsa é errada. Correta é uma ação voluntária que é realizada de acordo com uma norma. Errada é uma ação voluntária realizada em desacordo com uma norma. Se a crença não é voluntária, então ela não pode ser nem correta nem errada. E se não faz sentido dizer que uma crença falsa é errada, então não podemos punir ou repreender alguém por ter crenças falsas.

Mas é possível responde a esse argumento da seguinte forma. Nossa vontade tem controle direto apenas sobre ações básicas, isto é, ações que, para serem realizadas não é necessário realizar nenhuma outra ação, tal como levantar o braço, por exemplo. Basta que eu queira levantar o braço e nada esteja me impedindo de fazer isso para que eu faça. Da mesma forma, basta que eu não queira levantar o braço para que não o faça. O mesmo não é o caso em relação a ações não-básicas, como atirar uma flecha com um arco para atingir o alvo. Não basta que eu queira atirar para que a ação seja em seguida realizada. Eu preciso querer mover meus braços para agarrar o arco, querer mover meu corpo para me posicionar frente ao alvo, querer agarrar a flecha, querer posicioná-la adequadamente no arco, querer erguer o arco e a flecha para fazer mira, querer flexionar o braço para puxar a flecha para trás e fazer tensão na corda do arco, querer soltar rapidamente a flecha e a flecha, então, não mais sob o meu controle, deve atingir o centro do alvo. Mas embora não esteja sob o controle direto da minha vontade, ações não-básicas estão sob o controle indireto da vontade. É por isso que somos responsabilizados por elas. Realizar uma ação não-básica consiste justamente em fazemos tudo que está sob o controle direto da nossa vontade (ações básicas) que constitui a ação não-básica. A aquisição de crenças, embora não seja uma ação básica, pode ser concebida como uma ação não-básica e, por isso, como estando sob o controle indireto da vontade. Há um conjunto de ações básicas e não-básicas que podemos realizar para adquirir uma crença tal como ler um livro que argumenta em favor da verdade dessa crença. Essa aquisição pode não ocorrer? Pode. Mas da mesma forma, a flecha pode não atingir o alvo devido a uma série de fatores que escapam ao controle, direto ou indireto, da minha vontade. Isso não faz com que as ações que realizei não constituam a ação de atirar uma flecha com um arco para atingir o alvo.Se a vontade tem controle indireto da aquisição de crenças, então faz sentido falar de normas da aquisição de crenças e da responsabilização pelas crenças que temos e que não temos.

__________

[1] Um outro infeliz anglicismo na literatura filosófica brasileira é a tradução de "sentence" por "sentença", quando o correto seria "frase".

[2] Afinal, podemos ter crenças justificadas que, no entanto, são falsas e, por isso, não são conhecimento e, desde que Gettier apresentou os seus contra-exemplos para a definição tradicional de conhecimento, alguns epistemólogos focaram certas discussões no conceito de justificação para, entre outras coisas, evitarem ter de dar uma solução para o problema de Gettier.

[3] Essa tese é geralmente atribuída a Kant.

[4] Esse argumento é geralmente atribuido a Bernard Williams.


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