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quarta-feira, 12 de abril de 2017

Didática filosófica

Sócrates filosofando momentos antes de beber sicuta.

Ensinar filosofia é ensinar a prática de filosofar. Aquilo que encontramos nos livros e artigos de filosofia é, no mais das vezes, o resultado (talvez parcial, provisório) dessa prática de filosofar. Muita coisa foi feita pelos filósofos antes de eles chegarem a tais resultados. Ensinar filosofia com o foco nos resultados da prática de filosofar é contribuir para uma visão livresca e, digamos, estática da filosofia, como se filosofia fosse um corpus acabado (provavelmente morto, embora não enterrado) de tesouros legados pelos grandes filósofos no conjunto de suas obras. Essa é a visão daqueles leigos que às vezes perguntam algo do tipo "O que a filosofia diz sobre tal e tal questão?". É claro, para dizer o óbvio, que os resultados da prática de filosofar fazem parte da filosofia e são extremamente importantes, tanto para essa prática quanto para objetivos que a transcendem. Todavia, se mudarmos o foco e o dirigirmos, diferentemente do que é habitual fazer, ao processo que leva a tais resultados, reforçaremos a visão da filosofia como a atividade de lidar com certos problemas específicos: os problemas filosóficos. A atividade de filosofar começa com a colocação de certas perguntas, cuja resposta, por alguma razão, não sabemos e, por algum razão também, é importante que saibamos. Os filósofos refletem sobre tais problemas e procuram lidar com eles da melhor forma possível, algumas vezes tentando resolvê-los, noutras tentando dissolvê-los, ou seja, tentando mostrar que sua formulação baseia-se em algum tipo de erro. Ensinar filosofia, na medida em que isso consiste em ensinar a filosofar, é ensinar a compreender tais problemas e a tentar lidar com eles da melhor forma possível.

Mas como devemos ensinar filosofia? Que método (ou métodos) devemos usar para ensinar filosofia? Quais recursos didáticos devemos usar para ensinar filosofia? Se ensinar filosofia consiste em ensinar a filosofar, então seja qual for o modo, o método, os recursos didáticos que usemos nesse ensino, uma condição necessária (embora provavelmente não suficiente) para o sucesso nesse ensino é que aquele que ensina possua uma habilidade mínima para filosofar, para realizar prática de filosofar. Alguém que não saiba formular de forma minimamente clara problemas filosóficos, não saiba refletir minimamente sobre tais problemas, não saiba lidar com eles da forma minimamente satisfatória (apresentando claramente algumas tentativas de se lidar com eles já realizadas por outros filósofos, por exemplo), não tem condições mínimas de ensinar filosofia, se ensinar filosofia é ensinar a filosofar. Preocupar-se com questões didáticas sobre o ensino de filosofia antes de se preocupar em desenvolver essa habilidade para filosofar é colocar a carroça na frente dos bois.

Mas alguém poderia pensar que, embora uma pessoa possa não ter a habilidade para filosofar, resta a ela a possibilidade de ensinar os resultados da prática de filosofar apresentadas pelos filósofos nos seus escritos. Mesmo porque há escritos que não apenas apresentam os resultados da prática de filosofar, mas também o processo que levou a esses resultados, como as Meditações Metafísicas de Descartes, por exemplo. Em resposta a isso eu primeiramente diria que não estou dizendo que não se possa ensinar a filosofar por meio dos escritos filosóficos clássicos. Seria absurdo sustentar uma tese disparatada dessas. Entretanto, e essa seria minha segunda observação, o uso de tais textos, a leitura deles por parte dos alunos, não é necessária, especialmente em níveis introdutórios, se o objetivo é ensinar a filosofar. Ademais, se um professor tem alguma contribuição filosófica a dar no ensino do filosofar por meio de textos filosóficos clássicos, ela consiste em auxiliar o aluno a aprender a filosofar por meio desses textos e, para isso, esse professor já deve saber fazer isso minimamente. Se os textos não forem usados para ensinar a filosofar, o professor torna-se um mero veículo de transmissão de erudição sobre a história da filosofia, sobre os resultados da prática de filosofar que os filósofos deixaram registrados em seus escritos. Há algum sentido em que se pode dizer verdadeiramente que isso ainda seria ensinar filosofia? Sim, há. Mas isso encobriria a principal contribuição que o ensino de filosofia poderia dar à sociedade: melhorar o modo como as pessoas pensam sobre conceito e crenças fundamentais que são importantes para todos nós que pertencemos a essa sociedade. Numa aula de história da filosofia em que não se ensina o aluno a filosofar, o aluno seria uma espécie visitante em um mercado de idéias onde ele escolheria aquelas que lhe parecem mais maduras e saborosas, supondo-se que todas foram expostas sob a mesma luz em estandes iguais. Seja como for, a ordem correta entre as preocupações didáticas e as preocupações com o domínio do que se quer ensinar ainda é a mesma: um domínio mínimo do que se quer ensinar é condição necessária para o sucesso da escolha e aplicação de métodos didáticos. Não há mágica didática que substitua o domínio daquilo que se quer ensinar.

Mas não há nenhum maneira recomendável de se ensinar filosofia? Creio que, se ensinar filosofia é ensinar a filosofar, então a melhor maneira de se fazer isso é expondo o aluno à prática de filosofar e levando-o a engajar-se nessa prática. E as linhas gerais do modo de se fazer isso já foram traçadas no seu essencial há muitos séculos por um filósofo chamado Sócrates. O melhor meio de se ensinar a filosofar é praticando-se a filosofia nas aulas e levando-se o aluno a engajar-se nessa prática, por meio da formulação de problemas filosóficos e do estímulo, através de perguntas, para que o aluno se engaje na tentativa de lidar com eles. Mas, novamente, para isso, é necessário saber filosofar.




6 comentários:

  1. Então como filosofar? Como se faz isso para que se possa ensinar como fazer isso?

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  2. Caro Alexandre: que entendes por "didática"? Me parece que se não o esclareces, diversas passagens de tua postagem ficam de tal modo abertas que não se sabe do que se está a falar (por exemplo, os dois períodos finais do segundo parágrafo). Um abraço.

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    1. Obrigado, pelo comentário, Gisele! Para os propósitos do meu texto, não é necessário especificar mais do que isso: didática é o conjunto de meios, recursos, técnicas que tornam o ensino mais eficiente. Por exemplo: eu já lecionei um curso de filosofia e cinema, em que procuro ensinar filosofia através dos filmes, analisando os filmes de tal forma que identifico um ou mais problemas filosóficos e reflito sobre maneiras de se tentar lidar com esse problema. No menu Ensino/Filosofia e Cinema estão os textos que uso nesse curso. Meu ponto é que esse recurso didático, a análise filosófica de filmes, somente pode ser útil se quem o usa sabe filosofar. E digo isso porque frequentemente encontro alunos preocupados com didática muito mais do que com aprender a filosofar, como se eles pudessem ensinar o que não sabem fazer.

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    2. Oi Alexandre. Obrigada pela resposta. Eu talvez tenha estranhado a expressão "didática sobre ensino de filosofia", já que didática é, nessa acepção larga que usas, o conjunto de recursos que usamos para ensinar a filosofar (ou a matematizar, ou a "cienciar"). Concordo que às vezes as preocupações dos alunos parecem colocar a carroça na frente dos bois, mas também considero isso natural. Tem uma entrevista do Tugendhat em que esse assunto é tratado de modo bastante parecido com o que tu fazes: https://revistas.ufg.br/philosophos/article/view/3380 Abraço!

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    3. Eu acho que é natural porque boa parte dos alunos sempre procura atalhos no processo de ensino/aprendizagem... Obrigado pela dica do texto de Tugendhat! Abraço!

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