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segunda-feira, 25 de março de 2013

Bem em si e o bem que podemos realizar

Aristóteles apontando para o
chão e segurando o seu livro
sobre ética. Um símbolo
perfeito do que defendo
neste texto.
Temos duas intuições que parecem conflitantes entre si. Por um lado, parece que certas ações são em si mesmas más ou boas. Por outro, parece que em algumas circunstâncias, algumas dessas ações são aquilo que devemos fazer. Mas o que devemos fazer parece ser o que é bom. Por exemplo: parece que matar um ser humano é em si mesmo algo mau, mesmo quando esse ser humano é mau. Um sintoma disso é que não parece aceitável que alguém tenha prazer em matar um ser humano, mesmo quando esse ser humano é mau. Mas parece que, em algumas circunstâncias extremas, isso é justamente o que devemos fazer, como quando esse é o único meio de salvar um ser humano que está sob o risco de ser morto por outro, por exemplo. Como pode ser o caso que devamos fazer o que é em si mesmo mau? Se algo é em si mesmo mau, não se segue disso que é algo que não deve ser feito em nenhuma circunstância? Creio que não. O aparente conflito surge de uma confusão entre dois diferentes tipos de juízo moral.

Um tipo de juízo moral é aquele em que comparamos diferentes mundos possíveis para decidir qual deles é moralmente o melhor. Por exemplo: ceteris paribus, qual mundo possível é o melhor, um em que, em certas circunstâncias, devemos matar um ser humano, ou um em que não há nenhuma circunstância em que isso precise ser feito? Parece que o melhor é um em que não precisamos fazer isso. Esteja essa resposta certa ou errada, quem a dá está julgado que matar um ser humano é um mal em si. Mas ela parece ser a resposta que a maioria de nós daria, pois é por isso que não achamos correto que alguém tenha prazer em matar um ser humano, mesmo quando isso é necessário. Não toleramos o prazer em matar um ser humano porque isso seria ter prazer em fazer o que é um mal em si. Quando estamos escolhendo os melhores mundos possíveis do ponto de vista moral, estamos escolhendo valores, ideais éticos, independentemente das circunstâncias reais em que nos encontramos. Por isso dizemos que (para ficar no mesmo exemplo) a vida humana é um valor ou bem absoluto.

Mas não vivemos no melhor dos mudos possíveis, pois no mundo atual há circunstâncias extremas em que devemos matar seres humanos. Nessas circunstâncias, o melhor a ser feito e, portanto, o bem moral, é matar um ser humano, embora isso seja em si mesmo um mal, ou seja, embora um mundo possível em que não precisamos matar seja melhor que o mundo atual. Isso é a realização do bem moral porque é um meio moralmente bom (porque o melhor a ser feito nessas circunstâncias) para atingir um certo fim moral bom em si: salvar uma vida humana. Portanto, não há contradição em se dizer que matar um ser humano é um mal em si e que matar um ser humano é, em certas circunstâncias, a realização do bem moral. Aristóteles viu bem isso quando argumentou que, em algumas circunstâncias, o que devemos fazer e, portanto, é o bem moral, é o menor dentre os males.

Um outro bom exemplo de ação que geralmente é considerada em si mesma má, mas que é considerada como aquilo que, em certas circunstâncias, devemos fazer, é o ato de mentir.

Não quero dizer que as expressões "bem absoluto" ou "valor absoluto" tenham apenas o significado recém explicado. Alguns de fato a usam para falar do que é bom ou mau independentemente das circunstâncias, de tal forma que o que é absolutamente mau não pode ser bom em nenhuma circunstância em nenhum sentido moral de "bom". O problema com essa maneira de ver as coisas é que ela neglicencia uma ambiguidade de frases da forma "Fazer x é bom" e "Fazer x é mau", de tal forma que não consegue explicar a tensão apontada no início, salvo como uma pura contradição. Se "bom*" (ou "mau*") significa o que é absolutamente bom (ou mau) e "bom**" (ou "mau**") significa o que é bom (ou mau) em certas circunstâncias, então algo que é mau* não é bom* em nenhum circunstância, mas pode ser bom** em algumas circunstâncias. Julgar o que é melhor fazer em certas circunstâncias é diferente de julgar qual dentre alguns mundos possíveis é moralmente melhor, de tal forma que uma mesma ação pode ser julgada ser em si mesma má (má*) e ser a realização do bem moral em certas circunstâncias (boa**).

Alguém poderia dizer que do que eu digo se segue no máximo que a realização do bem moral, em algumas circunstâncias, se dá por meio de uma ação que não é boa em nenhum sentido moral de "boa" e que, portanto, fazer o menor dos males é ainda fazer um mal. Mas isso implicaria que o mal pode ser um bom meio para o bem, pois, afinal é o melhor meio em certas circunstâncias. A pergunta agora seria: em que sentido de "bom" esse seria um bom meio? Se se trata de algo que não é moralmente bom em nenhum sentido moral de "bom", então, se é um bom meio, não é no sentido moral de "bom". Entretanto, é claro que quando vamos decidir qual meio devemos adotar para atingir um fim bom em si, devemos julgar se esses meios são ou não moralmente bons, e dai vem nossa intuição que os fins não justificam os meios. Mas se não há justificação moral para os meios, se, pelo contrário, temos justificação moral para rejeitá-los, pois são maus, parece que ser um bom meio (num sentido não moral de "bom") para atingir um bem moral em si é irrelevante do ponto de vista moral, e, portanto, deveríamos rejeitar esses meios.

Bem, alguém poderia admitir isso e concluir que em algumas circunstâncias não podemos realizar o bem moral. Mas se ainda podemos realizar o que é melhor nessas circunstâncias, por que isso não seria um bem moral? Porque a realização do bem moral, segundo esse objetor, seria apenas aquilo que é a realização do que em si mesmo é bom, tanto os fins, quanto os meios. Mas se esse fosse o caso, teríamos uma situação possível em que ou a pessoa seria má mesmo tendo realizado sempre o que é moralmente melhor em cada circunstância, ou seria boa, mesmo tendo realizado sempre o que é em si mesmo mau e, portanto, mau em qualquer sentido moral de "mau". Isso ocorreria no caso de uma pessoa ter o azar moral de viver apenas circunstâncias em que ela não pode realizar o que é em si mesmo bom, mas apenas o que é o menor dentre os males. Nenhuma dessas consequências parece aceitável. E isso se deve ao fato de que há um sentido moral de "bem" de acordo com o qual a realização do bem moral em certas circunstâncias é a realização do que é moralmente melhor nessas circunstâncias.

Essas considerações concilam os papéis dos valores absolutos e da observância das circunstâncias na deliberação. Deliberar é algo que deve ser feito sempre tendo-se em uma mão os valores absolutos ou ideais e, na outra, a ponderação das circunstâncias. A última sem os primeiros é casuísmo. Os primeiros sem a última é um rigorismo moral impraticável.

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Dedico essa postagem à minha querida e saudosa amiga Nadia Ariella, com quem um dia tive uma discussão sobre essas questões em uma época em que as coisas não estavam tão claras para mim. Lamento ter demorado tanto pra chegar a essas conclusões. As idéias básicas desse textos me vieram quando ouvia uma palestra sobre e gramática da ética, do meu amigo Darlei Dall'agnol, no final de 2011, em Salvador.

6 comentários:

  1. Adorei o texto! Pareceu-me consideraçoes importantíssimas para quem se interessa por ética! Ao menos me esclareceu muito sobre a «birra» comum que se tem sobre aceitar que existam valores absolutos ou ideais. Realmente, por este ângulo, a busca por valores absolutos ou ideais parece escapar de um rigorismo moral impraticável. Se eu entendi bem o texto... Porém, resta-me ainda a dúvida de como podemos saber se um valor é realmente absoluto ou ideal ou se ele é apenas circunstancialmente visto como tal. Seria pela intuiçao?

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    1. Cinelli: Embora extrapole o objetivo do meu texto, essa é uma boa pergunta. Minha hipótese é que não é uma maneira geral de se argumentar em favor do caráter absoluto de um valor. Temos que examinar a justificativa oferecida para cada um individualmente. Mas também acho que alguns valores muito fundamentais são como que definitórios do que entendemos por "moral" ou "ética", na medida em que são casos paradigmáticos do que é um valor moral.

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    2. Parece uma boa hipótese, nao digo com segurança que a aceito, pois precisaria pensar mais a respeito. Embora, pessoalmente, eu concorde fortemente que "alguns valores muito fundamentais são como que definitórios do que entendemos por "moral" ou "ética", na medida em que são casos paradigmáticos do que é um valor moral". De qualquer forma, mesmo eu ainda nao tendo condiçoes para ter uma posiçao definida sobre sua hipótese, foi interessante conhecê-la para tentar entendê-la. Obrigada.

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    3. Eu é que agradeço pela oportunidade para pensar mais profundamente sobre esses assuntos. Eu tenho a idéia de publicar uma versão mais longa do que está nessa postagem, se eu não estiver arrombando uma porta aberta...

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    4. Se fizer isso, por favor me avise. Acompanhar seu trabalho nao é como conviver com você, mas dada nossa distância, «é o melhor que tá tendo!» rsrsrs.

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