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terça-feira, 8 de setembro de 2009

O quão radical é a tradução de Quine?

Em Word and Object (Cambridge/MA: The MIT Press, 1960; tradução no prelo), no famoso capitulo II, sobre a indeterminação da tradução, no início da descrição da situação de tradução radical, uma situação em que a linguagem traduzida é completamente desconhecida e não há auxilio de intérpretes, mas apenas o comportamento observável dos falantes, verbal e não-verbal, e os estímulos que ele recebe do ambiente, Quine diz:
Mas como ele [o lingüista numa situação de tradução radical] deve reconhecer o assentimento e dissentimento do nativo quando ele os ouve? Gestos não devem ser tomados pelo valor de face; os gestos dos turcos são aproximadamente o reverso dos nossos. O que ele deve fazer é adivinhar a partir da observação e ver como suas adivinhações funcionam. [...] Não obstante inconclusivos que são esses métodos, eles geram uma hipótese de trabalho. Se dificuldades extraordinárias advêm em todos os passos subseqüentes, o lingüista pode decidir descartar a hipótese e adivinhar novamente. [p. 29]
Mas aqui uma pergunta (que me incomoda desde que ouvi falar da reflexão de Quine pela primeira vez) se impõe: como o tradutor pode "ver como suas adivinhações funcionam"?

Na passagem omitida no trecho acima, Quine diz:
Desse modo, suponha que ao perguntar "Gavagai?", e coisa semelhante, na nítida presença de coelhos e coisas semelhantes, ele dê as respostas "Evert" e "York" com freqüência suficiente para ele supor que elas correspondem a "Sim" e "Não", mas não tem nenhuma noção de qual é qual. Então ele tenta o experimento de ecoar os pronunciamentos voluntários do próprio nativo. Se de modo bem regular ele responde "Evert" ao invés de "York", ele é encorajado a tomar "Evert" como "Sim". [p. 29]
Bem, sim, se o nativo dá assentimento ao uso de "Evert" quando o Tradutor está tentando testar a hipótese que "Evert" deve ser traduzido por "Sim", então ele é encorajado a manter sua hipótese. Mas, o problema não era saber qual é o comportamento de assentimento e dissentimento do nativo?

Isso me lembra a seguinte reflexão de Wittgenstein:
Suponha que você foi, como um explorador, a um país desconhecido com uma língua bem estranha para você. Em que circunstâncias você diria que as pessoas lá deram ordens, as entenderam, as obedeceram, rebelaram-se contra elas, e assim por diante?

O comportamento comum da humanidade é o sistema de referência por meio do qual interpretamos uma linguagem desconhecida. [Investigações Filosóficas, §206, Oxford: Blackwell, 1999]
A reflexão aqui, me parece, é paralela à uma reflexão que se pode fazer sobre o aprendizado. Para que seja possível que uma criança aprenda as primeiras lições a que a submetemos, ela deve reagir de um modo que nós não ensinamos. Ela deve ter reações naturais apropriadas, comuns a todas as crianças capazes de aprender. Analogamente, um substrato de reações comuns é necessário para que a interação com um povo desconhecido propicie as condições para uma tradução da sua língua para a nossa, por mais limitada que seja essa tradução.

9 comentários:

  1. Concordo plenamente. Há um texto do Mondée (Observation Sentences and Joint Attention, Synthese, V. 124, 2000) muito interessante a este respeito. Explorando o fenômeno da atenção compartilhada, ele argumenta que crianças bem pequenas são capazes de coordenar a sua atenção seletiva, pelo contato olho a olho, com o foco de atenção do falante. Isto sugere que temos um sistema natural para o compartilhamento de foco. Ou, se quisermos, temos um sistema natural mínimo pré-lingüístico de individuação, o qual não elimina a indeterminação da tradução, mas a restringe consideravelmente. Se isto está correto, cai por terra pelo menos a tese mais radical de Quine de que a individuação é sempre relativa a um aparato linguístico.

    Abraços,
    Eros.

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  2. Eros: Quine de fato diz que quanto mais perto dos estímulos diretos está um termo (ou frase), mais difícil haver divergência nas traduções. Mas, é claro, "mais difícil" aqui não implica "impossível", para Quine. É sempre teoricamente possível...

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  3. Não estou certo de que este é um argumento sólido, mas penso o seguinte: na extensão dos comportamentos que podemos denominar como linguísticos constam não apenas vocalizações (falas) mas também gestos. Chamemos de 'linguagem corporal'o conjunto de comportamentos linguísticos. A fala seria um comportamento pertencente ao conjunto em questão. Ora, se o comportamento da fala é amplamente difundido, por que esperar que os demais comportamentos expressivos do conjunto não sejam? Grosso modo: se todos falam com a boca, por que não assentiriam inclinando a cabeça para baixo? Não é dedutivamente válido fazer esta inferência (basta pensar nos turcos). Mas porque deveríamos esperar somente uma resposta a priori? Temos ótimas razões empíricas para discordar de Quine quando ele diz que não devemos tomar gestos pelo valor de face. Não que devamos tomá-los por valor de face, só não é o caso que eles não devam ter valor algum.

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  4. Greg: Não sei se entendi teu argumento. Acho que não é uma crítica ao meu, pois não vejo como seria. Se é um argumento a priori ou não, acho que isso é o de menos, o que importa é se tem premissas verdadeiras e é válido. Mas pense no seguinte exemplo: alguém tenta adentrar um recinto várias vezes e toda vez outra pessoa coloca sua mão no peito do adentrante e para sua caminhada. isso parece expressar o que? Concordância com a visível intenção de adentrar o recinto? E se não for, como descobrimos, **se não há nenhuma, digamos, ação expressiva comum entre nós e os nativos**?

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  5. Não é uma crítica ao teu. Na verdade ele está de acordo com o teu. O ponto é que penso que Quine erra ao dizer que gestos não possam ser tomados como componentes de certos conteúdos expressivos em valor de face. Não é que eles devam ser tomados em valor de face, ocorre apenas que eles não são destituídos de qualquer valor como o Quine acaba assumindo. E por que eles não devem ser destituídos de qualquer valor? Não há razão a priori, mas é o que a experiência nos indica: há um tesouro comum de comportamentos entre as pessoas, comportamentos em princípio podem compartilhar o mesmo conteúdo expressivo.

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  6. Greg: "há um tesouro comum de comportamentos entre as pessoas, comportamentos em princípio podem compartilhar o mesmo conteúdo expressivo."

    Mas o ponto é: se não houver, não podemos nos comunicar. Portanto, se a comunicação é possível, deve haver. por isso, procuramos essa base comum na tradução. Doutra forma, não saímos da estaca zero. Não temos como interpretar uma linguagem desconhecida se **todo** o comportamento expressivo for incomum.

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  7. "Mas o ponto é: se não houver, não podemos nos comunicar. Portanto, se a comunicação é possível, deve haver."

    Penso que seja logicamente possível um caso de comunicação entre seres que não possuem qualquer comportamento expressivo em comum. Imagine duas tribos, alfa e beta, com idiomas e comportamentos completamente distintos (talvez como nós e os turcos de Quine), o que impediria estas tribos de se comunicar por sinais de fumaça?

    O que estou tentando enfatizar é que o fato da comunicação ser viabilizada por este tesouro comum de comportamentos é uma questão empírica. E é atualmente confirmada. Entretanto, posso estar errado, o que neste caso significaria que há não apenas uma conexão empírica entre 'comportamento comum' e 'possibilidade de comunicação', mas uma conexão de estatuto lógico.

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  8. Greg: "o que impediria estas tribos de se comunicar por sinais de fumaça?". Ora, a impossibilidade de saber o que os sinais significam, porque, por exemplo, não há uma base de comportamento expressivo comum no uso desses sinais. Não vejo por que sinais de fumaça têm alguma diferença essencial relevante (para o presente problema) em relação a palavras faladas e escritas.

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  9. Se os sinais de fumaça surgissem em uma relação regular com a proximidade da chuva, poderia se dizer que os sinais significariam 'chuva' ou 'chuva próxima'. Porém, é bem possível que você esteja certo, eu apenas não consigo me convencer plenamente ainda de que esta não seja uma questão empírica, que a relação entre comportamentos comuns e possibilidade de comunicação não seja contingente.

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