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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Wittgenstein e o paradoxo de Moore

"Chove, mas creio que não chove".
Perece não haver sombra de dúvida que, se um determinado estado de coisas é possível, eu poderia enunciar esse estado de coisas sem absurdidade. É possível que esteja chovendo e que João não acredite que esteja chovendo. Portanto, eu poderia enunciar esse fato conjuntivo dizendo "Está chovendo, mas João acredita que não está chovendo". Parece não haver sobra de dúvida que é possível que esteja chovendo e que eu creia que não está chovendo. Posso muito bem estar enganado sobre isso. Mas, sendo isso possível, pela generalização anterior, a saber, se um determinado estado de coisas é possível, eu poderia enunciar esse estado de coisas sem absurdidade, eu poderia enunciar que está chovendo, mas acredito que não está chovendo. Todavia, essa conclusão parece falsa. É ela falsa? Por que? A frase "Chove, mas acredito que não chove" é significativa? Se não, por que? Se sim, então por que parece absurdo enunciá-la? As respostas de Moore e sua justificação para elas constituem o que se costuma chamar de paradoxo de Moore.

Segundo Moore, a frase "Chove, mas acredito que não chove" (uma das assim chamadas frases mooreanas[1]) é significativa, mas sua asserção é absurda. A frase "Chove" descreve o estado da atmosfera no local onde a asserimos. A frase "Acredito que não chove" descreve o estado da minha mente, que ela contém uma crença sobre o estado da atmosfera no local onde eu a enuncio, a saber: a crença de que não chove. Não há, segundo Moore, nenhuma relação lógica entre as descrições dos dois estados de coisas, ou seja, elas nem se contradizem, nem uma implica a outra. Portanto, se asserir a frase "Chove, mas não acredito que chove" é um absurdo, não deve ser por razões lógicas. O mesmo vale para frases do tipo "Não chove, mas acredito que chove".

O paradoxo de Moore é este: frases que parecem perfeitamente contraditórias, todavia, pelas razões aduzidas por Moore, não apenas têm sentido, mas podem ser verdadeiras, embora sua asserção seja absurda. Segundo Moore, não é contraditório dizer frases do tipo "Chove, mas acredito que não chove" ou "Não chove, mas acredito que chove". A absurdidade da enunciação dessas frases deveria ser encontrada não na sua lógica ou semântica, mas em algo que hoje chamamos de pragmática. Segundo Moore, devemos distinguir entre asserir uma certa proposição e dar a entender (to imply) essa proposição. Quando asserimos que chove, não estamos asserindo que acreditamos que chove, mas estamos dando a entender que acreditamos que chove ao asserirmos que chove. Por isso, seria absurdo asserirmos que chove e que acreditamos que não chove. A asserção da conjunção "Chove, mas acredito que não chove", embora não seja uma conjunção contraditória, seria absurda porque a asserção da segunda frase contradiz o que é dado a entender pela a asserção da primeira.

Wittgenstein não concorda com essa solução do paradoxo. Ele o formula de uma maneira diferente da maneira de Moore. Na sua formulação do paradoxo, Moore pressupõe que a frase "Acredito que chove" não é usada como a frase "Chove". Quando acrescento "Acredito que" à frente de "Chove", necessariamente mudo de assunto, do estado da atmosfera para o estado da minha mente, dois estados que não possuem nenhuma conexão necessária. Mas Wittgenstein chama atenção para o fato de que aprendemos a usar a expressão "Acredito que" em contextos em que frases da forma "Acredito que p" é usada como a frase "p", ou seja, para falar do estado da atmosfera, quando "p"="Chove". Nesse caso, "Acredito que chove" e "Chove" seriam equivalentes e, por isso, seria contraditório dizer "Chove, mas acredito que não chove". Todavia, Wittgenstein observa que, embora na primeira pessoa do presente o verbo "acreditar" seja normalmente usado dessa forma, nos demais tempos verbais isso não é o caso. Não podemos dizer que choveu dizendo "Acreditei que chove", por exemplo. Tampouco "Acredito que chove" é equivalente a "Chove" quando usamos a primeira frase para fazer a suposição "Suponha que acredito que chove". Para Wittgenstein é isso que parece paradoxal, não o fato de que não podemos asserir sem absurdidade algo que bem poderia ser o caso. Se em "Suponha que acredito que chove" "Acredito que chove" não equivale a "Chove", como podem essas duas frases serem equivalentes em outros contextos?

Mas qual é o argumento de Wittgenstein para a afirmação de que "Acredito que chove" e "Chove" são normalmente equivalentes? Se "Acredito que chove" fosse um relato baseado no que eu observo, então seria baseado no que observo em meu comportamento, verbal e não verbal. Se fosse um relato baseado no que observo em meu comportamento, verbal e não-verbal, então faria sentido dizer "Parece que acredito que chove". Mas, na maior parte dos casos em que dizemos "Acredito que chove", não faz sentido dizer "Parece que acredito que chove". Isso é assim porque nas circunstâncias em que dizer "Parece que acredito que chove" não faz sentido, "Acredito que chove" é uma maneira de se asserir que chove. E é nessas circunstâncias que aprendemos a dizer frases da forma "Acredito que p".

De fato em alguns casos podemos tomar uma perspectiva em que pensamos em nós mesmos como pensamos em outras pessoas, observando nosso comportamento, verbal e não-verbal, e tirando conclusões dessa observação. Nesses casos faz sentido dizer frases da forma "Parece que acredito que p". Mas esses usos de "Acredito que p", segundo Wittgenstein, são parasitários dos usos em que frases dessa forma equivalem a "p". Para concluir que parece que acredito que p, devo saber que "Acredito que p" é usado como um meio de expressar meu juízo de que p, e não para fazer um relato de uma observação de mim mesmo. Se uma pessoa me perguntasse, por exemplo, se há leite na geladeira, e eu dissesse "Acredito que sim", seria sem sentido que essa pessoa dissesse "Eu não perguntei o que você acredita, perguntei algo sobre a geladeira". Ela perguntou algo sobre a geladeira e eu expressei meu juízo sobre isso, tal como expressaria se disse apenas "Sim". A única diferença que, nesse caso, pode haver entre "Acredito que sim" e "Sim" é no grau de certeza. Eu só posso tirar conclusões da observação do meu comportamento e dizer que parece que acredito que p, se já tiver aprendido a usar "Acredito que p" da forma recém descrita, ou seja, para expressar minha crença de que p, tal qual expresso quando digo que p.

Há quem creia que o paradoxo de Moore não é semântico ou lógico, mas epistêmico. Nessa formulação, o problema seria que haveria fatos contingentes que eu não poderia saber, a saber, os fatos descritos pelas frases mooreanas. Mas, apresentado dessa forma, o paradoxo parece de fácil resolução. Eu não posso saber que chove e que eu acredito que não chove, por exemplo, porque saber que chove implica crer que chove, o que contradiz a segunda frase que eu deveria saber ser verdadeira. Portanto, a impossibilidade aqui não é epistêmica, mas lógica. Ela pode ser colocada assim: as frases mooreanas, se verdadeiras, descrevem o fato de que estou enganado e, por isso, saber que elas são verdadeiras seria saber que estou enganado. Mas é simplesmente sem sentido dizer "Sei que estou enganado". Mais uma vez, a impossibilidade em questão é devida à lógica dos termos epistêmicos. Frases da forma "S está enganado em crer que p" implicam "S não sabe que S está enganado em crer que p". Na medida em que descubro meu engano, deixo de estar enganado.

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[1] Moore, na verdade, formula seus exemplos colocando a negação em uma posição diferente. Em vez de seus exemplos terem a forma "p, mas creio que não-p, elas têm a forma "p, mas não creio que p". Há uma diferença entre não crer em uma proposição e crer que essa proposição é falsa. "Não creio que p" não implica "Creio que não-p". É possível que eu não creia nem que p, nem que não-p. Isso ocorre quando suspendo o juízo. Há quem acredite que essa diferença na formulação das frases mooreanas tem consequências importantes para a compreensão e solução do paradoxo de Moore. Mas não vou abordar esse assunto aqui.


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