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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Ceticismo e conversa-fiada

As virtudes argumentativas da posição cética são bem conhecidas. Essas virtudes são exercitadas na busca por dúvidas racionais que visam destruir as convicções dogmáticas e, por meio disso, suspender o juízo sobre uma determinada questão. E mesmo não-céticos podem se beneficiar dessas virtudes imaginando dúvidas sobre aquilo que estão defendendo. A diferença em relação aos céticos está no fato de que os não-céticos acreditam que podem refutar tais dúvidas.

Entretanto, há o risco de que céticos involuntariamente adotem uma atitude dogmática com relação à própria dúvida racional. Isso ocorre quando o cético passa a pensar que deve haver uma dúvida racional irrefutável para toda tese sustentada pelo dogmático. Nos piores casos, um sintoma possível dessa atitude é o que quero chamar de conversar fiado (bullshitting, em inglês)[1]: argumentar a partir de premissas que não se sabe se são verdadeiras nem plausíveis -- e tampouco se está interessado em saber -- apenas com o intuito de "ganhar" o debate, que, nesse caso, seria fazer crer que se apresentou uma dúvida racional à tese que está sendo defendida pelo interlocutor do cético. Quem se engaja na conversa-fiada, por isso, não está interessado na verdade. Essa é, claro, uma atitude intelectualmente desonesta.

Não estou dizendo nem que todo cético se engaja em conversa-fiada, nem que todo que se engaja em conversa-fiada é cético. Não estou nem mesmo dizendo que todo cético que escorrega para a atitude dogmática em relação à dúvida racional se engaja em conversa-fiada. Estou dizendo apenas que, para os céticos dogmáticos intelectualmente desonestos, a conversa-fiada é uma estratégia conveniente, quase inevitável. E, obviamente, não é conveniente apenas para eles. Mas para eles a conveniência é maior, dado que estão tentando fazer o interlocutor ver a necessidade de suspender o juízo.

A partir disso quero apontar para a importância que uma ação reflexiva da dúvida tem para uma saudável posição cética (seja ela local, seja global): o mesmo cuidado que dedicamos para formular dúvidas de primeira ordem contra os dogmatismos de primeira ordem devemos dedicar para formular dúvidas de segunda ordem contra o ceticismo dogmático, procurando sinais da sua versão desonesta, a conversa fiada.

Para uma postagem relacionada a essa, leia Fanatismo por uma crença justificada.
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[1] Para uma análise detalhada desse conceito, ver o livro de Harry Frankfurt, On Bullshit (traduzido para o Português como Sobre Falar Merda.)

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