-- Estou intrigado com uma questão.
-- Qual?
-- Em virtude do que a minha afirmação de que fui ao cinema ontem é verdadeira -- ou falsa?
-- Em virtude de teres ido ao cinema ontem -- ou de não teres ido. O que mais seria?
-- Mas veja: para que uma afirmação seja verdadeira, não é necessário que um determinado estado de coisas seja o caso?
-- No caso de afirmações sobre o presente, sim.
-- Não, isso vale para qualquer afirmação. Uma afirmação é verdadeira em virtude de o mundo ser como ela afirma que ele é. E o que ela afirma é a existência de um certo estado de coisas. Se esse estado de coisas existe, então a afirmação é verdadeira. Caso contrário, é falsa. Mas agora resposda: qual estado de coisas a afirmação "Fui ao cinema ontem" afirma existir?
-- Tu teres ido ao cinema ontem?
-- Não, o estado de coisas é eu no cinema. Ontem é o tempo em que esse estado de coisas deve ser o caso para que a afirmação seja verdadeira.
-- Bem, de certa forma, sim.
-- Então me diga: esse estado de coisas é o caso agora?
-- Não.
-- Mas se ele não é o caso, então como a afirmação pode ser verdadeira?
-- Ela é verdadeira porque ele foi o caso.
-- Mas se agora não há nada que torne essa afirmação verdadeira, se nenhum estado de coisas existente a torna verdadeira, como ela pode ser verdadeira agora?
-- O que a torna verdadeira é esse estado de coisas ter sido o caso ontem.
-- Mas se ele não é mais o caso, então como ela pode ser verdadeira agora? Não é necessário que esse estado de coisas esteja lá no passado sendo o caso? Esse estado de coisas precisa ser o caso no passado. Portanto, o passado, de certa forma, deve ser tão real quanto o presente. A diferença entre um estado de coisas presente e um estado de coisas no passado não é que um é real e o outro não é. A diferença é que um é o caso no presente e o outro é o caso no passado. Dessa forma, as afirmações "Eu estou no cinema" e "Eu fui ao cinema" são verdadeiras pela mesma razão: porque o estado de coisas que ambas afirmam existir é o caso no passado e no presente, respectivamente. E algo análogo pode ser dito sobre o futuro. Não concordas?
-- De modo algum!
-- Mas como pode ser verdade que fui ao cinema ontem, se nenhum estado de coisas real corresponde ao que é afirmado?
-- Para que seja verdade que fui ao cinema ontem, tudo que é necessário é que o estado de coisas de eu estar no cinema tenha sido o caso ontem, não que ele esteja sendo o caso no passado.
-- Mas então afirmações sobre o passado, diferentemente das afirmações sobre o presente, não correspondem a nada real?
-- Você certamente pode dizer que a afirmação "Fui ao cinema ontem" corresponde ao fato de que fui ao cinema ontem. Mas você não vai estar dizendo nada muito substancial.
-- Nada substancial?
-- Nada. Negar essa "realidade" do passado não é defender uma tese metafísica substancial e problemática, mas é reconhecer uma confusão conceitual advinda da falsa analogia entre frases no presente e frase no passado. A falsa analogia consistem em pensar que um certo estado de coisas deve ser o caso para que ambas as frases sejam verdadeiras. No caso do presente, não parece haver problema, pois há uma coincidência entre o tempo do verbo da frase e o tempo da exigência metafísica: um certo estado de coisas deve ser o caso para que a frase "estou indo ao cinema" seja verdadeira. Mas no caso da frase no passado, o que significa dizer que um certo estado de coisas deve ser o caso para que a frase "fui ao cinema ontem" seja verdadeira? Como pode esse estado de coisas ser o caso, se a frase é sobre o passado? Parece então que esse estado de coisas deve ter alguma realidade, embora esteja no passado, como se os estados de coisas passados e presentes fossem igualmente reais, só que em tempos diferentes. Mas nenhum estado de coisas deve ser o caso para que a frase "fui ao cinema ontem" seja verdadeira. Um determinado estado de coisas deve ter sido o caso, para que essa frase seja verdadeira. "Estou indo ao cinema" é verdadeira se e somente se estou indo ao cinema. "Fui ao cinema ontem" é verdadeira se e somente se fui ao cinema ontem.
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