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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Toda crença injustificada é irracional?

Chapada Diamantina, Bahia
Alguns acreditam que do fato de não haver justificação epistêmica para uma proposição segue-se que não deveríamos tomá-la como verdadeira, ou seja, não deveríamos acreditá-la, sob pena de irracionalidade. Mas isso é mesmo o caso? Toda crença epistemicamente injustificada é mesmo irracional? Qual é o melhor argumento para essa alegação? É certo que nossa melhor situação, quando o objetivo e conhecer, é ter uma crença verdadeira epistemicamente justificada. Mas e se nosso objetivo não é conhecer? É irracional acreditar em algo sem justificação epistêmica quando o objetivo não é conhecer? Bem, se essa crença contradiz crenças para as quais temos excelente justificação epistêmica, e a pessoa que crê sabe dessa contradição, então essa crença é, certamente, irracional. Mas e se não houver tal contradição? Se o objetivo não é conhecer e se a crença não contradiz nenhuma crença para a qual temos excelente justificação epistêmica, ou, mesmo contradizendo, essa contradição é desconhecida por aquele crê, por que essa crença seria irracional?

Se a crença não é justificada, então podemos dizer que ela não é apoiada pela razão epistêmica. Nesse sentido, ela não é epistemicamente racional. Chamo uma crença assim de crença epistemicamente não-racional. Se uma crença contradiz crenças para as quais temos excelente justificação epistêmica, então essa crença não apenas não é apoiada pela razão epistêmica, mas está em conflito com ela. Se esse conflito é conhecido por aquele que crê, chamo uma crença assim de crença epistemicamente irracional. Parece claro que o fato de uma crença ser epistemicamente não-racional não implica que ela é epistemicamente irracional. Crenças epistemicamente não-racionais que não são epistemicamente irracionais eu chamo crenças epistemicamente gratuitas. Proposições em relação às quais, de um ponto de vista epistêmico, poderíamos suspender nosso juízo, por falta de justificação epistêmica tanto para ela quanto para sua negação, são excelentes candidatas a crenças epistemicamente gratuitas. Talvez a proposição que há vida em outros planetas seja um bom exemplo aqui.

Claro que se há boa evidência de que a verdade de uma proposição é muito improvável, essa e uma evidência para no mínimo não se acreditar com muita convicção na verdade dessa proposição. Portanto, acreditar nessa proposição com muita convicção seria epistemicamente irracional. Mas para o que estou chamando de crenças epistemicamente gratuitas não há nem mesmo esse tipo de evidência desfavorável.

Alguém poderia argumentar: acreditar é tomar uma proposição como verdadeira e, portanto, aquele que assim o faz ao asserir sinceramente essa proposição está assumindo o compromisso epistêmico de apresentar justificações. Sendo assim, parece que não cumprir com esse compromisso quando solicitado é incoerente com asserir essa proposição e, portanto, é irracional. Essa incoerência deveria ser explicada em termos de algum aspecto pragmático da linguagem, como a implicatura conversassional, pois é claro que o conteúdo de "p" não implica nem "Sei que p" nem "Estou justificado em afirmar que p".

Entretanto, essa objeção parece enfrentar no mínimo dois problemas. Em primeiro lugar, ela parece assumir uma concepção internista de conhecimento em que estar justificado é o mesmo que ser capaz de apresentar justificações. Porém, se o externismo epistêmico está correto, então pode-se ter uma crença verdadeira justificada sem se seja capaz de fornecer uma justificação. Nesse caso, estar justificado não implica ser capaz de apresentar uma justificação, mas é determinado por fatores objetivos, independentes do conhecimento do agente epistêmico e, por isso, esse agente pode estar justificado sem saber que está. Sendo assim, mesmo que a asserção sincera de uma proposição envolva um compromisso com estar justificado em assim fazê-lo, isso não implica o compromisso com oferecer uma justificação para essa asserção. Todavia alguém poderia argumentar em favor do internismo.

Mas, e esse é o segundo problema, parece que esse compromisso, seja ele entendido de modo mais forte, internista, seja entendido de modo mais fraca, externista, não ocorre em todos os casos, embora possa ocorrer na maior parte. Por um lado, de fato ao menos parece ser epistemicamente irracional que, para a maior parte dos casos, uma pessoa não disponha de uma justificação para as asserções que faz, ou que suas asserções não estejam sequer justificadas de modo externista, principalmente quando o contexto deixa claro que se espera que a pessoa assira apenas aquilo que ela sabe ou ao menos julga saber. Mas disso não se segue que ela deva dispor de uma justificação para todas elas. Exigimos o tal compromisso apenas em casos em que a asserção tem alguma importância prática ou teórica, ou seja, apenas quando o objetivo, no contexto, é o conhecimento, seja para agir, seja para obter mais conhecimento. Suponha, por exemplo, que, baseado apenas em um sentimento, o qual me ocorre depois de pensar no meu desejo de conhecer a Chapada Diamantina, sobre a qual não sei nada, exceto o que vi em algumas fotos, eu diga que nesse exato momento há uma pessoa nua sentada sobre o morro mais ao norte da Chapada contemplando a paisagem em direção ao sul. É difícil imaginar por que alguém exigiria que eu tivesse uma justificação para isso ou que minha asserção fosse objetivamente justificada, independentemente de eu saber. E isso é assim porque, entre outras coisas, parece não fazer sentido dizer que em um tal contexto eu assumi o compromisso de fornecer uma justificação para minha asserção ou que estou asserindo por que acredito, embora não saiba, que estou objetivamente justificado. Por que eu deveria estar justificado, dado que essa asserção não tem nenhuma importância para minha economia epistêmica ou de qualquer um? Em contextos desse tipo, isto é, quando asserimos algo que não tem nenhuma importância para nossa economia epistêmica, podemos dizer "Eu não sei se isso é o caso, mas eu acredito que é." Portanto, se em tais contextos não assumo esse compromisso, não sou incoerente por não cumpri-lo. Se esse não parece um bom exemplo do tipo de asserção que estou caracterizando, isso pouco importa para meu propósito. Importa que esse tipo de asserção seja possível. Mas vejamos mais de perto que tipo de asserção é essa?

Crenças epistemicamente gratuitas são crenças inertes do ponto de vista da nossa economia epistêmica global. Elas nem são epistemicamente frutíferas, não nos levam a saber mais (na medida em que não são justificadas), nem epistemicamente danosas, não nos impedem de saber nada (na medida em que suas negações tampouco são justificadas). Algumas delas podem ser frutíferas ou danosas do ponto de vista prático. Algumas podem nos levar a realizar ações úteis para nossos objetivos, enquanto que outras podem nos levar a realizar ações que nos impedem de atingir nossos objetivos. E os objetivos aqui podem ser tanto morais quanto neutros do ponto de vista moral. Uma crença epistemicamente gratuita verdadeira pode nos levar ao sucesso na ação apenas porque é verdadeira, embora não justificada, ao passo que uma crença epistemicamente gratuita falsa pode nos levar ao fracasso na ação apenas porque é falsa, não porque tê-la nos tenha impedido de saber alguma coisa. Mas não é necessário que uma crença epistemicamente gratuita seja danosa ou frutífera do ponto de vista prático. Ele pode ser inerte também a esse respeito. É esse o tipo de crenças que, se possível, torna uma falácia concluir que uma crença é irracional do fato de não ser racional. Uma crença epistemicamente gratuita e inerte é uma terceira possibilidade.

Alguém poderia dizer que estou usando as palavras "racional" e "irracional" de modo errado, que o que eu chamo de crença não-racional é, na verdade, um tipo de crença irracional, porque irracional é simplesmente o que não é racional. Não vou discutir as razões para tal objeção, mas apenas dizer que não vou discutir sobre palavras. Para essa pessoa eu diria: há dois tipos de irracionalidade: uma que consiste em ter uma crença não apoiada pela razão e outra que consiste em ter uma crença que está em conflito com a razão, do modo explicado acima, de tal forma que não há nenhum problema em se ter crenças do primeiro tipo que não são crenças do segundo tipo, salvo se são danosas do ponto de vista prático, o que não é necessário, dado que podem ser frutíferas a esse respeito.

Um outro exemplo de crença epistemicamente gratuita, se somos agnósticos, é a crença em Deus. Se ela é frutífera ou danosa de um ponto de vista prático é uma discussão que fica para outra ocasião.

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Agradeço a Felipe Rocha por importantes comentários sobre uma primeira versão desse texto.

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