(Mind 4: 14 (April 1895): 278-280), onde ele apresenta um paradoxo sobre a lógica da argumentação. Embora devido a algumas similaridades ele faça uma rápida alusão ao paradoxo da dicotomia (de Zenão) protagonizado por Aquiles e a tartaruga, tratam-se de dois paradoxos distintos. Para mais informação introdutórias sobre o presente paradoxo, ler este artigo da Wikipedia.
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Aquiles tinha alcançado a tartaruga e sentara-se confortavelmente no dorso do animal.
- Então você chegou ao fim de nossa corrida? - disse a Tartaruga. - Embora ela consista numa série de infinitas distâncias? Não houve aí um sabichão qualquer que provou que isso seria impossível de ser feito?
- Pode, sim - disse Aquiles. - E já foi feito! Solvitur ambulando. Veja bem, as distâncias foram diminuindo constantemente, e assim...
- Mas, e se elas tivessem aumentado constantemente - interrompeu a Tartaruga. - Que aconteceria, então?
- Então eu não estaria aqui - responde Aquiles, modestamente - e você, enquanto isso, já teria dado várias voltas em torno do mundo.
- Você me faz ficar tonta, isto é, torta - disse a Tartaruga - pois pesa um bocado, não há dúvida! Bem, vamos ver, você gostaria de que eu falasse sobre uma corrida que a maior parte das pessoas imagina poder acabar em dois ou três passos quando de fato ela consiste em um número infinito de distâncias, cada uma mais longa do que a anterior?
- Com todo prazer! - disse o guerreiro grego, enquanto tirava do seu capacete (eram raros os guerreiros gregos que tinham bolsos na época) uma enorme agenda e um lápis. - Continue! E vá devagar, por favor! Ainda não inventaram a estenografia!
- Ah, aquela linda Primeira Posição de Euclides - disse a Tartaruga, sonhadoramente. - Você é fã de Euclides?
- Sou louco por ele! Até o ponto, é claro, em que se pode admirar um tratado que só será publicado daqui vários séculos.
- Bem, vejamos uma pequena parte do argumento naquela Primeira Posição. Só as duas primeiras etapas e a conclusão que se tira delas. Tenha a bondade de anotar no seu caderninho. E, para facilitar as coisas, vamos chamá-las de A, B e Z:
(A) Duas coisas que são iguais a uma terceira são iguais entre si.
(B) Os dois lados deste triângulo são iguais a um terceiro.
(Z) Os dois lados deste triângulo são iguais entre si.
Os leitores de Euclides admitirão, suponho, que Z se deduz logicamente de A e B, e portanto que qualquer um que tenha aceito A e B como verdadeiro deve aceitar Z como verdadeiro, certo?
- Sem a menor dúvida! Qualquer menino de curso secundário, assim que se inventarem os colégios, o que não ocorrerá antes de dois mil anos, admitirá isso.
- E se algum leitor não tivesse aceito A e B como verdadeiros, ele poderia aceitar, penso eu, a sequência lógica como válida, ou não?
- Não há dúvida de que tal leitor poderia existir. Ele poderia dizer: "Aceito como verdadeira a Proposição Hipotética de que se A e B são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro; mas não aceito A e B como verdadeiros." Tal leitor faria muito bem se deixasse Euclides de lado e fosse cuidar de futebol.
- E não poderia haver também algum leitor que dissesse: "Aceito A e B como verdadeiros, mas não aceito a Proposição Hipotética"?
- Certamente poderia. Ele também faria melhor em ir cuidar de futebol.
- E nenhum desses leitores - continuou a Tartaruga - é forçado até aqui, por qualquer necessidade lógica, a aceitar Z como verdadeiro, não é assim?
- Inteiramente certo - concordou Aquiles.
- Bem, vamos dizer que você me considere como um leitor de segunda espécie, e que me obrigue, logicamente, a aceitar Z como verdadeiro.
- Uma tartaruga jogando futebol seria... - começou Aquiles.
- ... uma anomalia, é claro - interrompeu vivamente a Tartaruga. - Não se desvie da questão. Primeiro Z, depois o futebol.
- Então eu tenho de obrigá-la a aceitar Z, não é? - disse Aquiles pensativamente. - E sua posição atual é a de que aceita A e B, mas não aceita a Proposição Hipotética...
- Vamos chamá-la de C - disse a Tartaruga.
- ... mas você não aceita:
(C) Se A e B são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro.
- Essa é a minha posição atual.
- Nesse caso tenho de lhe pedir que aceite C.
- Eu o farei - disse a Tartaruga - desde que você tenha anotado isso nesse caderninho. Que mais você tem escrito aí?
- Só umas poucas anotações - disse Aquiles folheando as páginas nervosamente - umas poucas anotações das... das batalhas que me distingui.
- Está cheio de folhas em branco, estou vendo - observou a Tartaruga, com animação. - Vamos precisar de todas! (Aquiles estremeceu.) E agora, escreva o que vou ditar:
(A) As coisas que são iguais a uma terceira são iguais entre si.
(B) Os dois lados deste triângulo são coisas que são iguais a uma terceira.
(C) Se A e B são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro.
(Z) Os dois lados deste triângulo são iguais entre si.
- Você devia chamar este último de D, e não Z - disse Aquiles. - Ele vem logo depois dos outros três. Se você aceita A e B e C, deve aceitar Z.
- Por que devo?
- Porque se deduz logicamente deles. Se A e B e C são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro. Você não vai contestar isso, não é mesmo?
- Se A e B e C são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro - repetiu pensativamente a Tartaruga. - Esta é outra Proposição Hipotética, não é? E se eu não conseguisse ver a verdade desta proposição, poderia aceitar A e B e C e, ainda assim, não aceitar Z, poderia?
- Poderia - admitiu honestamente o herói - embora tal obtusidade fosse, com certeza, fenomenal. Em todo o caso, a coisa é possível. Portanto lhe peço para admitir mais uma Proposição Hipotética.
- Muito bem. Estou pronta para fazê-lo, assim que você a tenha anotado. Vamos chamá-la de:
(D) Se A e B e C são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro.
Já anotou no seu caderninho?
- Já- exclamou Aquiles jovialmente, enquanto colocava a caneta dentro do estojo. - E aqui chegamos ao fim da nossa corrida imaginária! Pois se você aceita A e B e C e D, é claro que aceita Z.
- Aceito? - disse a Tartaruga com ar inocente. - Vamos deixar as coisas claras. Aceito A e B e C e D. Mas, e se eu ainda recusar a aceitar Z?
- Então a Lógica lhe pegaria pelo gasnete e lhe forçaria a aceitar - replicou Aquiles com ar de triunfo. - A Lógica lhe diria: "Agora não tem mais jeito. Pois se você aceitou A e B e C e D, você têm de aceitar Z!" Portanto, você não tem saída, entendeu?
- Qualquer coisa que a Lógica me diga é digna de ser anotada - disse a Tartaruga. - Portanto, escreva aí no caderno, por favor. Chamaremos essa proposição de:
(E) Se A e B e C e D são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro.
Até que eu tenha admitido esta proposição, é claro, não é preciso admitir Z. Portanto, está é uma etapa necessária, entende?
- Entendo - disse Aquiles, e havia um acento de tristeza em sua voz.
Nesse ponto o narrador, tendo negócios urgentes a resolver no banco, foi forçado a deixar o feliz par e só pôde voltar ao mesmo ponto alguns meses depois. Ao fazê-lo, Aquiles estava ainda sentado no dorso da paciente Tartaruga, anotando no seu caderno de apontamentos, já todo rabiscado. A Tartaruga estava dizendo: "Já anotou esta última etapa? A menos que eu tenha perdido a conta, é a milésima primeira. Ainda tem vários milhões pela frente. Será que você se importaria de eu pedir um favor pessoal? Levando em conta a utilidade considerável que terá este nosso diálogo para os lógicos do século dezenove, você se importaria de que eu fizesse um trocadilho com você, tal como, nessa época futura, a minha prima, a Falsa Tartaruga, poderia fazer, e não levaria a mal se eu o chamasse de Desequilibrado?
- Fique à vontade! - replicou o exausto guerreiro, ocultando o rosto nas mãos, no auge do desespero. - Contanto que você, de sua parte, não se incomodasse de adotar para você mesma um trocadilho que a Falsa Tartaruga realmente fará, permitindo que os outros possam apelidá-la de Torturuga.
[Tradução de Sebastião Uchoa Leite, publicado originalmente em Aventuras de Alice - No país das maravilhas - Através do espelho que o que Alice encontrou lá - e outros textos, São Paulo: Summus Editorial, s.d.]
Resolvido: https://archive.org/stream/principlesofmath005807mbp#page/n77/mode/2up
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