"Eu tenho dor" |
Nas seções 243-315 das Investigações Filosóficas (IF), Wittgenstein lida com uma problema filosófico relacionado à linguagem fenomênica: o problema da linguagem privada, uma linguagem que apenas o seu usuário pode compreender. Geralmente denomina-se as reflexões contidas nessa parte do livro como “argumento da linguagem privada”, uma expressão infeliz porque enganadora, na medida em que sugere que Wittgenstein oferece um argumento a favor da linguagem privada. Todavia, embora Wittgenstein não ofereça um argumento a favor da linguagem privada, ele tampouco oferece um argumento contra a linguagem privada em geral. Naquelas reflexões, Wittgenstein não está interessado em examinar o conceito de linguagem privada in abstracto. O que lhe interessa examinar é a tese específica que a nossa linguagem fenomênica é uma linguagem privada. Por isso, é melhor denominar aquelas reflexões como “o problema da linguagem privada”.
Mas quem defende que a nossa linguagem fenomênica é privada? Aparentemente, Frege defendeu uma versão dessa tese no seu artigo tardio “O Pensamento” (Der Gedanke). O próprio Wittgenstein aparentemente também defendeu uma versão da mesma tese no seu período intermediário (entre o Tractatus e as Investigações Filosóficas), quando defendia o projeto da construção de uma linguagem fenomenológica (uma linguagem artificial que exibisse a mesma multiplicidade lógica dos "fenômenos", os dados da experiência sensível imediata). Mas mesmo que esse não seja o caso (adiante retornarei ao que Frege diz naquele artigo), com relação a esse problema, importa menos determinar se alguém defendeu essa tese do que determinar se alguém defendeu teses que implicam que a nossa linguagem fenomênica é privada.[1] Pois a Wittgenstein interessa examinar a tese que a nossa linguagem fenomênica é privada na medida em que ela é implicada por “teses” que ele julga serem irremediavelmente problemáticas, embora muito comuns a uma grande parte da tradição filosófica. Trata-se de duas teses: a tese da semântica agostiniana e a tese da privacidade cartesiana da mente. Vejamos a primeira.
As Investigações Filosóficas começam com uma apresentação da semântica agostiniana, isto é, das principais teses do modelo de análise semântica sugerido por uma passagem das Confissões, de Santo Agostinho, citada por Wittgenstein.[2] Essa semântica está operante na formulação da primeira premissa do argumento a favor da tese que nossa linguagem fenomênica é privada. Segundo esse modelo de análise semântica, uma expressão lingüística tem conteúdo semântico apenas se ela está associada de modo apropriado a uma entidade distinta da expressão lingüística. É realizando essa associação que significamos, que dotamos a expressão de conteúdo. E é conhecendo essa associação que compreendemos a expressão. A entidade associada à expressão lingüística tem uma natureza distinta, conforme for a versão mais específica da semântica agostiniana: ela pode ser física, mental ou abstrata. Mas o que todas essas versões têm em comum é a tese que significamos e compreendemos por meio de uma associação da expressão lingüística a uma entidade. Aplicada ao caso específico da linguagem fenomênica, a semântica agostiniana resulta na tese que o conteúdo semântico dos verbos fenomênicos é dado e compreendido por meio de uma associação entre esses verbos e os estados mentais fenomênicos. Por exemplo: o conteúdo semântico da palavra “dor” é dado pela associação da palavra “dor” à dor. Sendo assim, compreende essa palavra quem sabe ao que ela está associada.
A segunda premissa do argumento a favor da tese que nossa linguagem fenomênica é privada é a tese da privacidade cartesiana da mente.[3] Há dois tipos de privacidade, mas uma delas é mais importante para o problema da linguagem privada. Segundo a concepção cartesiana da mente, um estado mental tem privacidade ôntica (ou da posse), pois é impossível que outra pessoa, além daquela que o possui, o possua. Por exemplo: nenhuma outra pessoa pode ter a dor que uma pessoa tem em um determinado momento. Outras podem no máximo ter uma dor exatamente igual. O outro tipo de privacidade, o mais importante, está relacionado com uma certa assimetria existente entre enunciados fenomênicos de primeira pessoa do presente e os demais enunciados fenomênicos, em tempos e/ou pessoas diferentes. Que haja algum tipo de assimetria entre, por exemplo, "Eu tenho dor" e "Ele tem dor", parece que não há muita controvérsia. Mas a tradição cartesiana em filosofia da mente e epistemologia se baseia na tese que trata-se de uma assimetria epistêmica. Na sua versão mais fraca, essa tese é defendida em conjunto com a tese da simetria semântica entre esses dois tipos de enunciados. Dizer que há uma simetria semântica entre eles significa dizer, por exemplo, os enunciados "Eu tenho dor" dito por mim e "Ele tem dor" dito por outra pessoa se referindo a mim por meio de "Ele" têm exatamente o mesmo conteúdo semântico, enunciam o mesmo estado de coisas. A diferença estaria apenas no modo como o valor de verdade é conhecido por cada um que realiza tais enunciados. E essa seria a assimetria epistêmica entre eles. Eu sei que tenho dores de modo direto e infalível. Outros, na melhor das hipóteses, podem saber apenas de modo indireto e falível, nunca com o tipo de certeza que eu mesmo posso ter.
O modo tradicional de se explicar o conhecimento de outras mentes nessa tradição consiste em dizer que esse conhecimento se baseia em um argumento por analogia. Eu sei que tenho dores de modo direto e infalível e percebo que há uma correlação empírica entre minhas dores e de meu comportamento: geralmente, embora nem sempre, quando tenho dor, me comporto de uma determinada forma e, quando não tenho dor, não me comporto dessa forma. Embora essa correlação seja contingente, ela parece ser suficiente para que possamos realizar um raciocínio por analogia que nos daria conhecimento provável das outras mentes. Com base no conhecimento dessa correlação entre meus estados mentais fenomênicos e meu comportamento, infiro que outros, provavelmente, quando exibem um comportamento semelhante, têm o mesmo estado mental. De modo igualmente provável, quando não exibem tal comportamento, não têm esse estado mental.
Mas há problemas com essa explicação. Em primeiro lugar, se conhecimento de uma mente é o que eu tenho da minha própria mente, então aquilo que tenho a respeito de outras mentes, seja o que for, não é conhecimento.[4] Em segundo lugar, o argumento por analogia parece pressupor que outros têm mente. Se eles têm mente, então meu argumento por analogia parece justificar de algum modo minhas crenças sobre seus estados mentais. Mas se é assim, então meu argumento por analogia não serve para justificar minha crença de que eles têm mente. A existência de um dos termos da analogia, a mente alheia, não é conhecida por meio desse tipo de argumento, mas é pressuposta por ele. Em terceiro lugar, a assimetria epistêmica parece implicar uma assimetria semântica entre enunciados fenomênicos em primeira pessoa e enunciados fenomênicos em terceira pessoa. Assim pensou Frege. Se "vermelho", por exemplo, refere-se a uma sensação visual que eu tenho, então dizer que outro vê vermelho seria dizer que outro tem a sensação que eu tenho. Mas outro não pode ter a minha sensação. E mesmo que pudesse, eu não poderia saber. Portanto, se eu sei que outro vê vermelho, então "vermelho" em "Ele vê vermelho" não pode significar o mesmo que significa em "Eu vejo vermelho". Portanto, parece que, afinal, "Eu vejo vermelho" dito por mim e "Ele vê vermelho" dito por outra pessoa se referindo a mim por meio de "Ele" não têm o mesmo conteúdo semântico. Mas Frege defendeu uma espécie de esquizofrenia semântica dos nomes de cores: eles se referem tanto a uma sensação privada, quando digo que vejo vermelho, por exemplo, quanto a algo objetivo, quando digo que um certo objeto é vermelho, por exemplo.
Seja na sua versão mais fraca, seja na sua versão mais forte, a tese da assimetria epistêmica implica que apenas eu posso saber que meus enunciados fenomênicos de primeira pessoa do presente são verdadeiros. Apenas eu posso saber que tenho dor, por exemplo. Outros podem apenas conjecturar.
Mas se, de acordo com a semântica agostiniana, compreende "dor" quem sabe ao que ela está associada, e, no meu caso, ela está associada aquilo que apenas eu posso conhecer, minha dor, então outros não podem compreender esse termo quando digo "Eu tenho dor". Portanto, minha linguagem fenomênica é uma linguagem privada. E aqui estamos diante de um paradoxo, ou seja, de um argumento aparentemente válido, cujas premissas parecem verdadeiras mas a conclusão parece falsa. Aparentemente, foi para evitar esse paradoxo que Frege defendeu aquilo que chamei de esquizofrenia semântica.
Wittgenstein ataca ambas as premissas desse argumento. O ataque à semântica agostiniana se dá por meio do que se costuma denominar expressivismo sobre enunciados fenomênicos em primeira pessoa do presente, ou manifestações (Äusserungen, em alemão, avowals, em inglês). Essa análise das manifestações faz parte do seu ataque à tese que há uma assimetria epistêmica entre as manifestações e os demais enunciados fenomênicos, na medida em que é um ataque à tese que as manifestações são cognitivas. Segundo Wittgenstein, as manifestações substituem a expressão natural dos estados mentais, tal como o choro, no caso da dor, por exemplo (cf. IF §244). A função de "Eu tenho dor" consiste em expressar a dor, tal como o choro o faz. A enunciação de "Eu sinto dor" é um comportamento artificial de dor, por oposição ao comportamento natural. Porém, em ambos os casos esse comportamento torna a dor manifesta.
Mas alguém poderia pensar que a função expressiva das manifestações não está em contradição com o seu caráter cognitivo (assim como a função expressiva dos enunciados assertivos sinceros - eles expressam crenças - não está em contradição com seu caráter cognitivo). Entretanto, Wittgenstein tem um argumento contra o caráter cognitivo das manifestações. Se ser uma crença verdadeira justificada é uma condição necessária para ser conhecimento, então não pode ser o caso que a justificação seja idêntica ao fator de verdade. A justificação para "Sei que p" (onde p é um fato qualquer) não pode ser o fato que p. Todavia, o que poderia justificar a crença que tenho dor? O que eu poderia dar como resposta à pergunta "Como você sabe que tem dor?"? A inclinação natural seria dizer "Eu sei que tenho dor porque eu a sinto". Mas qual seria a diferença entre "Eu tenho dor" e "Eu sinto dor"? Se não há diferença, então a resposta natural tem a seguinte forma: Eu sei que p porque p. Entretanto, parece que o fato que minha crença é verdadeira não pode ser o que a justifica.
Mas da negação do caráter cognitivo das manifestações se segue que elas não têm valor de verdade, não são apofânticas? A maioria dos intérpretes de Wittgenstein pensa que sim, porque pensam que do caráter apofântico de um enunciado se segue que ele é cognitivo. Mas isso somente seria o caso se o conceito de verdade tivesse alguma implicação epistêmica. Entretanto, ele somente teria implicação epistêmica se a teoria deflacionista da verdade fosse falsa. Se essa teoria está correta, então atribuir valor de verdade a um enunciado não tem nenhuma implicação metafísica ou epistêmica. De acordo com uma versão do deflacionismo, o minimalismo de Paul Horwich, embora o predicado verdade não possa ser eliminado da linguagem sem perda da sua capacidade expressiva, sua função é meramente lógico-sintática. Ele apenas cumpre um papel lógico-sintático na construção de certas generalizações e de certas asserções de proposições desconhecidas ("Tudo que fulano disse é verdadeiro" e "A primeira coisa que fulano disser amanhã é verdadeira", p.ex.). Wittgenstein parece defender uma espécie de concepção deflacionista da verdade. Ele diz que
'p' é verdadeira = pE ele oferece um critério absolutamente deflacionista, lógico sintático, para o reconhecimento de portadores de verdade:
'p' é falsa = não-p
(IF §136)
...uma criança poderia ser ensinada a distinguir entre proposições e outras expressões ao se dizer a ela “Pergunte a si mesmo se podes dizer ‘é verdadeira’ depois dela. Se as palavras se ajustam, então é uma proposição”. (IF §137)E é claro que as palavras em "'Eu sinto dor' é verdadeira" se ajustam. E enunciados estéticos, morais e normativos também passam nesse teste. Mas disso não se segue nenhuma tese metafísica ou epistêmica sobre esses enunciados. Portanto, o caráter apofântico das manifestações não implica que elas sejam cognitivas.
Um problema sério é enfrentado por aquele que negam o caráter apofântico das manifestações é o que Peter Geach chama de "o ponto de Frege". Como explicar enunciados que são funções de verdade e a validade das inferências nas quais as manifestações ocorrem? Como explicar o enunciado "Ou eu sinto dor, ou ele sente dor"? Como ele pode ser uma função de verdade se uma de suas partes não é nem verdadeira nem falsa? Como explicar a validade da seguinte inferência?
Eu tenho dor.Uma inferência é válida quando é impossível que suas premissas sejam verdadeiras e sua conclusão seja falsa. Mas essa explicação não se aplicaria ao caso acima, se uma das premissas não fosse nem verdadeira, nem falsa.
Ele tem dor.
Logo, há pelo menos duas pessoas que têm dor.
Wittgenstein oferece um espécie de experimento mental para atacar frontalmente a tese que nossa linguagem fenomênica é privada (IF §258). Ele nos convida a imaginar como seria a gênese de uma linguagem privada. Suponha que eu queira manter o diário da ocorrência de uma sensação, marcando "S" em um calendário a cada dia em que ela ocorre. Nenhuma definição de "S" pode ser formulada, pois trata-se da primeira expressão da linguagem privada, e uma definição com termos da linguagem pública a tornaria uma expressão da linguagem pública. Mas parece que posso dar a mim mesmo uma definição ostensiva de "S", não do modo usual, mas concentrado a atenção na sensação. Wittgenstein então argumenta que essa cerimônia não estabelece o significado de "S", pois, para tal, ela deveria me fazer lembrar corretamente da conexão entre "S" e a sensação. Mas não há nenhum critério de correção para a memória. O problema não se origina de um ceticismo sobre a confiabilidade da memória. O problema é que, sem critério de correção para a memória, não tenho sequer como saber se ela é ou não confiável. Em última análise, sequer posso saber se tenho memória de eventos privados, seja confiável, seja não-confiável. Por isso, o que quer que me pareça correto será correto. Mas isso implica que o conceito de correção não tem uso nessa circunstância.
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[1] Peter Hacker (em Insight and Illusion) toma o exemplo de John Locke como o defensor das teses que implicam que a linguagem fenomênica é uma linguagem privada.
[2] Para a apresentação do problema aqui não importa determinar se Santo Agostinho realmente defendeu tal semântica. Basta que a referida passagem citada por Wittgenstein a sugira.
[3] Pode haver alguma controvérsia sobre se Descartes realmente sustentou essa concepção da mente. Mas também nesse caso, para a apresentação do problema, não importa determinar se esse é ou não caso. Basta que os textos de Descartes ao menos a sugiram.
[4] Acredito que a concepção cartesiana de conhecimento, baseada na noção de certeza absoluta, origina-se de tomar o conhecimento da mente de si como o modelo para o conhecimento em geral.
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Leituras
Hacker, P.M.S. O argumento da linguagem privada (Crítica)
Machado, Alexandre N. Expressivismo e Verdade
Machado, Alexandre N. Frege, Psicologismo e o Problema da Linguagem Privada
Candlish, Stewart, Private Language (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Lendo esse texto lembrei dessas duas irmãs. Não sei até que ponto é verdadeiro que elas "dividem pensamentos", mas o que elas conseguem fazer algumas coisas no mínimo desconcertantes.
ResponderExcluirhttp://hypescience.com/a-incrivel-historia-das-gemeas-siamesas-que-podem-dividir-pensamentos/