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segunda-feira, 22 de março de 2010

Definições e condições necessárias e suficientes


Quando uma pergunta da forma "O que é ___?" é feita, uma das coisas que se pode querer com essa pergunta é uma definição, num certo sentido de "definição". Por exemplo: "O que é circunferência?" Uma resposta seria a seguinte definição: "Circunferência é uma figura fechada em que todos os pontos eqüidistam de um determinado ponto". Esse tipo de definição apresenta certas propriedades que, necessariamente, toda circunferência possui e que apenas circunferências possuem. Para algo ser uma circunferência, deve possuir essas propriedades e se algo possuir essas propriedades, não precisa possuir mais nenhuma outra para ser uma circunferência. Em outras palavras, essa definição apresenta as condições necessárias e suficientes para que algo seja uma circunferência.[1]

De modo geral, se A é uma condição necessária para que algo x seja F, então se x não for A, então x não é F e, necessariamente, se x for F, então x é A. Por outro lado, se B for uma condição suficiente para que algo x seja F, então se x for B, então x é F. Consequentemente, as seguintes inferências são válidas (embora não devido à sua forma) [2]:

(1) x é F.
(2) Portanto, x é A.

(3) x não é A.
(4) Portanto, x não é F.

(5) x é B.
(6) Portanto, x é F.

Nem toda condição necessária é suficiente e nem toda condição suficiente é necessária. Por exemplo: ter assento é uma condição necessária para que algo seja uma cadeira. Se algo não tiver assento, então não é uma cadeira. Mas não basta que algo tenha assento para que seja uma cadeira. Essa não é uma condição suficiente para que algo seja uma cadeira. Muitas outras coisas têm assento e não são cadeiras.

Agora suponhamos que exista um clube de subtenentes e sargentos do exército, cuja condição necessária para ser sócio seja ou ser subtenente do exército, ou ser sargento do exército. Se uma pessoas não for nem subtenente do exército, nem sargento do exército, essa pessoa não poderá ser sócia desse clube. Ser subtenente do exército é uma condição suficiente para uma pessoa ser sócia do clube. O mesmo vale para a propriedade de ser sargento do exército. Todavia, ser subtenente do exército não é uma condição necessária para que uma pessoa seja sócia do clube. Se ela for sargento do exército, como vimos, isso é suficiente. Por outro lado, ser sargento do exército tampouco é uma condição necessária para que uma pessoa seja sócia do clube. Se ela for subtenente, como vimos, isso é suficiente. Portanto, cada uma dessas propriedades, consideradas isoladamente, é uma condição suficiente, mas não necessária, para que uma pessoa seja sócia do clube. O que é uma condição necessária é ser, ou subtenente do exército, ou sargento do exército. Outro exemplo: ser o vermelho é uma condição suficiente para que algo seja uma cor, mas não é uma condição necessária. Nada necessita ser o vermelho, para ser uma cor.

Um terceiro exemplo: de acordo com a definição tradicional de "homem", no sentido de "ser humano", uma homem é um animal racional. Se essa definição está correta (e não precisamos decidir isso para entender o exemplo), então ser um animal e ser racional são condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que algo seja um ser humano. Nenhuma dessas condições é individualmente suficiente, ou seja, não basta ser animal para ser um ser humano, nem basta ser racional para ser um ser humano.

As noções de condições necessárias e suficientes estão tradicionalmente associadas ao que se costuma chamar de essência ou ser de alguma coisa. A definição de "homem" acima apresentaria a essência do ser humano, aquilo que faz com que algo seja um ser humano e não outra coisa, ou seja, o seu ser. De modo geral, a essência de X nada mais é do que as condições necessárias e suficientes para que algo seja X.

Parte do que se costuma chamar de método socrático de filosofar (o método usado por Sócrates) consiste em fazer perguntas da forma "O que é ___?" e dar contra-exemplos das definições oferecidas como respostas. Por exemplo: "O que é coragem?" Suponha que alguém responda a essa pergunta com a seguinte definição: coragem é a disposição para enfrentar qualquer perigo. Podemos facilmente encontrar um contra-exemplo dessa definição. Um soldado que tivesse a disposição para enfrentar sozinho um exército inimigo não é corajoso, mas temerário. Esse é um contra-exemplo daquela definição de "coragem", porque, embora esteja de acordo com a definição, não é um caso de coragem. Essa definição, portanto, é muito permissiva, pois permite chamar de coragem algo que não é coragem. Outro exemplo: "O que é jogo?" Suponha que alguém responda a essa pergunta com a seguinte definição: "Jogo é uma atividade divertida onde alguém ganha e alguém perde". Também é fácil encontrar um contra-exemplo dessa definição. Paciência é um jogo e nele ninguém ganha e ninguém perde.[3] Esse é um contra-exemplo daquela definição de "jogo", porque, embora esteja em desacordo com a definição, é um caso de jogo. Essa definição, portanto, muito restritiva, pois proíbe chamar de de jogo algo que, na verdade, é jogo. Uma definição adequada, portanto, nem pode ser muito restritiva, nem muito permissiva.

Mas devemos notar algo importante: se ainda não estamos de posse de uma definição de "F" e somos capazes de julgar se as definições propostas possuem ou não contra-exemplos, então somos capazes de identificar casos de coisas que não são F sem estar de posse de uma definição de "F". Mas como podemos fazer isso se não soubermos distinguir entre as coisas que são F e as coisas que não são F? Devemos saber, ao menos em casos paradigmáticos, reconhecer exemplos de coisas que são F e de coisas que não são F a fim de poder reconhecer contra-exemplos de uma definição de "F". Mas como podemos saber isso sem saber o que é F? Parece que, em algum sentido, devemos saber o que é F para sermos capazes de reconhecer exemplos de F e de não-F. Mas se devemos saber o que é F sem ter uma definição de "F", então saber o que é F não é o mesmo que estar de posse de uma definição de "F".

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* Agradeço ao meu amigo e colega Tiago Falkenbach por comentários à uma primeira versão desse texto.

[1] As condições necessárias e suficientes que constituem uma definição não podem ser triviais. Por exemplo: há uma condição necessária e suficiente trivial para que algo seja um jogo, a saber, ser um jogo. Mas "Jogo é jogo", obviamente, não é uma definição de "jogo".

[2] Alguém poderia pensar que essas inferências são entimemas, isto é, inferências com ao menos uma premissas oculta. Mas isso não é o caso, pois elas são válidas do jeito que estão. Devido ao seu conteúdo, não é possível que as premissas dessas inferências sejam verdadeiras e suas conclusões sejam falsas.

[3] Paciência se joga sozinho. Os termos "ganhador" e "perdedor" aplicam-se a quem compete e ninguém compete consigo mesmo jogando paciência.

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Leituras

Definitions (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Necessary and Sufficient Conditions (Stanford Encyclopedia of Philosophy)

Um comentário:

  1. Salve!

    Texto interessante professor!
    Pena que utilizou a definição de esfera para circunferência.

    Att.,

    Aderlan

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