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sábado, 30 de agosto de 2025

Ruptura (Severance)

O innie e o outie de Mark


Este é o décimo texto de uma série que estou escrevendo para uma disciplina da Graduação em Filosofia da UFPR denominada Filosofia e Cinema, em que procuro exercitar a reflexão acerca dos problemas filosóficos por meio de filmes. Creio que filmes podem ser bons meios de apresentação de problemas filosóficos na medida em que apresentam situações que desafiam nossas crenças fundamentais e, assim, desencadeiam a reflexão filosófica. Os textos dessa série são destinados àqueles que já assistiram os respectivos filmes, pois contêm revelações sobre seus respectivos enredos.

Comecemos pelo título, Ruptura. "Severance", no original, é o resultado de dividir algo em duas partes ou de romper uma ligação. Pode tanto ser o resultado de serrar uma peça de madeira para obter duas peças quanto recingir um contrato, romper uma ligação legal. O que ocorre na trama, entretanto, quero argumentar, não é nenhum dos dois tipos de ruptura. Não é que um todo constituído de partes tenha tido suas partes separadas. O que ocorre é que um novo todo é criado pela criação de um novo elemento. O título sugere que uma pessoa decide dividir a sua vida em duas partes: a parte em que ela vive fora do trabalho e a a parte em que ela vive no trabalho. O todo seria a vida de uma pessoa e suas partes seriam a sua vida privada e sua vida pública, no trabalho. Mas ela, nos dois casos, é a mesma pessoa?

A trama da série Ruptura (Severance) baseia-se em um procedimento fictício em que se implanta um dispositivo no cérebro dos protagonistas. Esse implante é usado por quase todos os funcionários da empresa Lumon. Quando estes funcionários tomam o elevador na empresa para ir para o local de trabalho, o implante é lido por escaners que produzem o seguinte efeito: a pessoa passa a não lembrar absolutamente nada sobre sua vida privada: onde mora, quais são seus parentes e amigos, seus hobbies, se são casados, se têm filhos, etc. O contrário também acontece: quando vão embora e o implante é lido novamente, os funcionários passam a não lembrar de absolutamente nada do que ocorre no local de trabalho: como é o local de trabalho, quem são seus seus colegas de trabalho, seus chefes, o que fazem, por que o fazem, etc. Aquele que vive a vida privada é chamado de externo (outie) e aquele que trabalha é chamado interno (innie). A ruptura, aparentemente, se dá entre esses dois elementos: a parte da pessoa que trabalha e a parte da pessoa que vive a vida privada. Dada a natureza da ruptura, os internos dos protagonistas não têm vida privada e os seus externos não têm vida no trabalho. 

O interessante dessa situação é que ela é criada voluntariamente pelo externo. Ele grava um vídeo declarando que receberá voluntariamente o implante e que sabe as consequências disso. Então ele se submete ao procedimento. Mark, o principal protagonista, resolveu se submeter à ruptura crendo que isso o ajudaria a lidar melhor com a morte de sua esposa em um acidente de carro. Ele ficaria oito horas por dia sem lembrar do que ocorreu com sua esposa e, por isso, sem sofrer. Ocorre que a decisão de reverter essa situação é uma prerrogativa exclusiva do externo. Somente o externo tem o poder de decidir que não quer mais trabalhar na Lumon e que quer ter o implante removido. Se o interno quiser pedir demissão, então ele deve fazer um pedido formal por escrito ao externo e esperar que o seu pedido seja atendido. E é precisamente no conflito entre os interesses do interno e do externo que algumas de nossas crenças fundamentais são colocadas em questão.

Não é um absurdo dizer que uma mesma pessoa tem interesses conflitantes ou incompatíveis. É perfeitamente possível que uma mesma pessoa tenha interesses que não podem ser ambos satisfeitos e que, por isso, ela tenha que abrir mão de um deles para realizar o outro. Por exemplo: por certas razões, uma pessoa pode querer trabalhar e uma determinada empresa, mas, por outras razões, ela pode não querer trabalhar nessa mesma empresa. Ela não pode trabalhar e não trabalhar nessa empresa ao mesmo tempo. Por isso, para realizar uma dessas vontades, ela deverá abrir mão da outra. Aparentemente, é isso que acontece com os protagonistas da série. Em um dado momento da trama, os seus internos não querem mais trabalhar na empresa, embora seus externos queiram permanecer trabalhando lá. Mas isso gera dois grandes problemas. O primeiro já foi mencionado: tomar essa decisão é prerrogativa exclusiva dos seus externos. Mas há um problema ainda maior: seus internos querem deixar a empresa como internos, sem passarem pelo escaner do elevador. Seus internos não se contentariam com a decisão dos seus externos de deixar de trabalhar na empresa. Por que?

Os internos, como vimos, não têm vida privada e tampouco podem deixar as dependências da empresa como internos. Quando começam um dia de trabalho, saindo do elevador, sua última lembrança é deles próprios dentro do elevador, indo embora. Portanto, todas as experiências e lembranças dos internos se reduz ao trabalho: às dependências da empresa e ao que eles fazem lá. Essa situação passou a ser cada vez mais insatisfatória para os internos. Pouco importava a eles que seus esternos tivessem uma vida privada cheia de alegrias e prazeres fora da empresa, pois eles, os internos, não podiam desfrutar de nada disso. Os internos passaram a se sentir presos dentro da empresa. Uma solução para essa situação de sofrimento não seria que os externos pedissem demissão e revertessem a ruptura? Nesse caso, não haveria mais nenhum interno sofrendo dentro da empresa. Mas o problema é justamente esse: os internos não querem deixar de existir como internos. Isso, para eles, equivaleria à morte, pouco importando que os seus externos continuem a existir, pois a sua existência é a existência como internos. Eles querem deixar a empresa, mas não querem que as relações que eles estabeleceram lá, suas memórias, desapareçam. Ou seja, os internos se identificam como pessoas autônomas que, por isso, têm a disposição para a auto-preservação! Consequentemente, eles identificam os seus esternos como outras pessoas. Se isso for o caso, então o conflito de interesses entre um interno e o seu externo não é o conflito de interesses de uma mesma pessoa, mas de pessoas diferentes.

Mas o que é uma pessoa? Essa questão já foi abordada em textos sobre outros filmes. Muitos tendem a identificar pessoa a ser humano, de tal forma que o número de pessoas seria o mesmo que o número de seres humanos. Mas essa identificação é problemática por duas razões. A primeira é que ela impede o reconhecimento seres não humanos como pessoas, tais como seres artificias, por um lado, (ver Ela) e seres naturais não humanos. A segunda é que ela impede que se reconheça que mais de uma pessoa possam compartilhar o mesmo corpo humano. O problema que nos interessa imediatamente aqui é o segundo, pois parece que aquele que se submete à ruptura é um ser humano quer dá origem a uma nova pessoa

Embora polêmico, há um fenômeno patológico, o transtorno dissociativo de identidade (TDI), de acordo com o qual um único ser humano pode ser "habitado" por diferentes pessoas ou personalidades. Mas o que determina que são diferentes pessoas? O critério aqui é justamente o que torna esse fenômeno patológico polêmico: a memória. Uma pessoa é um ser que possui uma mente cujos conteúdos são unificados pela memória e pela capacidade de integrar esses conteúdos de maneira coerente, de tal forma que outras mentes não possuem acesso a esses conteúdos tal como essa pessoa o tem. O problema é que, em muitos casos, as supostas diferentes pessoas no TDI sofrem "vazamentos" de memória entre si, de tal forma que uma das "pessoas" lembra das experiências de outra pessoa. Mas isso apenas parece mostrar, no máximo, que a questão sobre a identidade pessoal envolve diferenças de grau. (Algo análogo parece acontecer com o protagonista de Amnésia.) Nos casos extremos, como aqueles exibidos na série, parece não haver dúvidas de que se tratam de diferentes pessoas compartilhando um mesmo corpo humano. Os internos e externos parecem claramente ser diferentes pessoas, pois eles não compartilham nenhum conteúdo mental, exceto aqueles que não são relevantes para a identidade pessoal, como saber os nomes das cores, por exemplo. A criação do interno pode ser corretamente descrita como a criação de um TDI artificial, dado que implica a criação de uma nova pessoa.

Por causa do modo como a situação dos internos se estabelece, tendemos a ter mais compaixão pelo sofrimento dos internos do que temos pelo sofrimento dos externos, ainda mais em alguns casos em que os externos parecem ter o caráter muito mais moralmente condenável que o de seus internos. O exemplo paradigmático é o de de da interna Helly R., cuja externa é Helena Eagan, filha e herdeira do CEO da Lumon, cúmplice de todas as ações moralmente questionáveis da empresa.  Mas o problema é que assim como os internos morreriam se os seus externos resolvessem pedir demissão da Lumon, os externos morreriam se os internos resolvessem sair da empresa como internos. Portanto, a solução do sofrimento dos internos que envolvesse a morte dos seus externos não pareceria mais moralmente correta do que se os externos pedirem demissão, matando os internos.

Por fim, um ponto curioso da trama é que, uma vez que admitimos que internos e externos são pessoas distintas, a concordância do interno com a, ou, ainda mais, a sua provocação da, decisão do seu externo de se demitir é um tipo de suicídio


Leitura complementar

Eric T. Olson, "Personal Identity" (Stanford Encyclopedia of Philosophy)



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