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A madre Beauvier (Meryl Streep) e a mãe de Donald (Viola Davis) em uma cena antológica. |
Este é o nono texto de uma série que estou escrevendo para uma disciplina da Graduação em Filosofia da UFPR denominada Filosofia e Cinema, em que procuro exercitar a reflexão acerca dos problemas filosóficos por meio de filmes. Creio que filmes podem ser bons meios de apresentação de problemas filosóficos na medida em que apresentam situações que desafiam nossas crenças fundamentais e, assim, desencadeiam a reflexão filosófica. Os textos dessa série são destinados àqueles que já assistiram os respectivos filmes, pois contêm revelações sobre seus respectivos enredos.
Dúvida, conta a história de quatro protagonistas: Padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman), responsável por um paróquia que inclui uma escola católica de ensino fundamental, Irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep), uma madre superiora, diretora da escola, Irmã James (Amy Adams), uma das professoras da escola e a Senhora Miller (Viola Davis), mãe de um dos alunos da escola, Donald Miller (Joseph Foster), o primeiro aluno negro da escola. A história se passa em 1964.
A irmã Beauvier é extremamente tradicional, conservadora, rígida e intolerante com seus alunos e subordinados, sempre exigindo o que, na concepção dela, é a perfeição moral de acordo com o catolicismo. Ela começa a levantar dúvidas sobre o Padre Flynn justamente quando ele faz um sermão em que defende que a dúvida pode ter um papel religioso tão importante quanto a certeza. A irmã James, então, testemunha alguns eventos envolvendo o Padre Flynn e Donald e leva um deles aos ouvidos da irmã Aloysius. Esses eventos são: ela vê o padre Flynn colocar no armário de Donald a camisa de Donald e observa um comportamento estranho do aluno em aula, se prostrando sobre o braço como se estivesse com sono ou cansado e exalando cheiro de álcool ao falar com ela. A irmã James conta apenas o último evento à irmã Beauvier, que fica ainda mais desconfiada e se torna convicta de que o padre está agindo de forma moralmente errada com o menino, abusando sexualmente dele. Mas, fora esse escasso indício, ela não tem mais nada para justificar a sua crença.
Em uma cena crucial do filme, a irmã Aloysius chama o padre Flynn para uma conversa na sua sala junto com a irmã James supostamente para tratar de preparativos para as festividades de Natal.. Como a irmã James chega atrasada, o padre Flynn tem de esperar a sua chegada para adentrar o escritório da madre, porque essa era a regra: um mínimo de duas mulheres quando a reunião era de um homem e uma mulher. A irmã Aloysius consegue conduzir a conversa de tal modo que acaba por mudá-la para um outro assunto. Ela relata que sabe que Donald Miller voltou para a aula de uma reunião com o padre se comportando de modo estranho e com hálito de álcool. O padre Flynn, então, desconfortável com aquela conversa, acabou contando que Donald, que é coroinha e auxilia o padre nas missas, havia sido flagrado tomando vinho do altar. O menino de doze anos implorou para não ser destituído do papel de coroinha. O padre Flynn concordou, desde que o acontecido não se tornasse público. A irmã James ficou aliviada com o relato do Padre, que foi embora. Mas a irmã Aloysius não acreditou nele e disse à irmã James que iria derrubá-lo. A irmã James então tem uma pequena explosão de indignação e diz que a Irmã Aloysius está convicta porque não gosta do padre Flynn, porque ele usa unhas compridas, porque ele colocou três torrões de açúcar no café, porque ele gosta de canções de Natal seculares (que a própria irmã James também gosta), porque ele escreve com uma esferográfica, etc.
No meio da conversa com a irmã Aloysius, o padre Flynn teve uma idéia para um novo sermão que ele anotou em uma caderneta com uma esferográfica, objeto odiado pela irmã Aloysius. O sermão era sobre a intolerância. No sermão, ele contou a história de uma mulher que fez fofoca e, ao se confessar, perguntou a um padre se ela tinha pecado. O padre disse que sim e pediu que ela fosse para casa, pegasse um travesseiro, o abrisse com uma faca em cima do telhado de suas casa e, no outro dia, voltasse para falar com ele. Ela fez isso e, no outro dia, o padre perguntou: o que aconteceu. Ela respondeu: um mundo de penas saiu do travesseiro e o vento levou. O padre então pediu a ela que recolhesse todas as penas que o vento levou. Ela respondeu que isso era impossível. O padre então concluiu: isso é o que acontece na fofoca. Uma vez espalhada, não é possível mais desfazer o seu dano. O sermão é uma clara referência ao fato de que o relato da irmã James havia causado na irmã Aloysius a crença de que o padre Flynn estava fazendo coisas erradas com Donald, mesmo com insuficiente evidência.
A irmã Aloysius telefona para a mãe de Donald e pede a ela para conversarem pessoalmente. Na conversa, a irmã, com algum rodeio, revela sua suspeita. A senhora Miller diz que o pai de Donald o espancou por causa do episódio do vinho. Ela procura minimizar as suspeita da irmã e pede a ela para tolerar qualquer coisa que esteja acontecendo até junho (até o verão), quando Donald se forma e vai para o ensino médio. A irmã então diz que acha que foi o padre Flynn que deu o vinho a Donald porque ambos estão tendo uma relação imprópria. A senhora Miller então chega ao ponto de dizer que se o padre Flynn o quer, que o tenha, que alguns garotos querem ser pegos, que o pai de Donald não bateu brutalmente nele por ele ter bebido vinho no altar, mas por causa da "natureza" do menino. Ela afirma que por ela ser negro e ter essa natureza, Donald precisa de um homem que cuide dele e o encaminhe na vida. A irmã fica horrorizada e pergunta que tipo de mãe ela é e as respostas da senhora Miller vão todas nas direção do cuidado especial que Donald precisa. As coisas que a senhora Miller diz sobre o assunto se desviam grandemente de um purismo moral, que é exatamente a posição da irmã Aloysius.
O último episódio importante a ser destacado é o fato de que, em uma discussão em que pressiona o padre Flynn para que confesse o que ela acredita ser seus crimes, a irmã Aloysius acaba mentindo que telefonou para a paróquia anterior do padre Flynn e que uma irmã daquela paróquia havia relatado comportamentos inadequados do padre. O padre fica indignado dizendo que é tudo mentira e pede que ela ligue para o atual padre daquela paróquia, porque esse é o procedimento segundo a hierarquia da igreja, procedimento não realizado pela irmã Aloysius. A pressão e ameaça de difamação da irmã Aloysius, de destruir a reputação do padre Flynn, é tão grande que o padre acaba por pedir transferência para outra paróquia e, no final, acaba sendo promovido pelos seus superiores.
O filme pode ser interpretado, à primeira vista, como uma crítica à Igreja Católica, ainda mais porque foi lançado em 2008, alguns anos depois da publicação da série de reportagens investigativas do jornal The Boston Globe, em 2002, que revelou um padrão de abuso de crianças por parte de padres católicos estadunidenses e que foi acobertado pelos seus superiores. Essa série de reportagens tornou esses escândalos sexuais e outros no mundo inteiro envolvendo padres católicos ainda mais agudo do que era nos anos 80 e 90, pois foi seguida de novas revelações e denúncias nos EUA e no resto do mundo. Boston, onde as investigações começaram, é próxima a Nova York, onde se passa a história de Dúvida. Todavia, o filme seria muito menos filosoficamente interessante se criticar a Igreja Católica fosse seu espírito. Ele é um filme genial e tão interessante filosoficamente justamente porque, em primeiro lugar, ele não decide a questão sobre se o padre Flynn abusa ou não de Donald, deixando o expectador na mesma condição epistêmica precária da irmã Aloysius, que deve decidir o que pensar sobre o caso com base nas evidências disponíveis a ela. E essas evidências estão longe de serem suficientes para se ter certeza de que houve abuso.
O clima de denúncias contra padres católicos naquela época pode nos inclinar a tomar o lado da irmã Aloysius, pois alimenta nossa sede por justiça. Mas isso seria precipitado, não apenas pela escassez de evidências, mas porque vai contra um dos pilares do direito contemporâneo: o princípio da presunção da inocência. Nossa sede por punir culpados não pode ser maior que nossa sede por não punir inocentes. Por isso, o ônus da prova é sempre de quem acusa. O acusado não necessita nunca provar que é inocente. Parte-se da suposição inicial de que ele é inocente, até que o acusador ofereça evidências, que estão para além de toda dúvida razoável, de que o acusado é culpado. Ocorre muitas vezes que as evidências, mesmo sendo insuficientes para mostrar que o acusado é culpado, são tais que nos despertam a suspeita de que ele seja culpado. Entretanto, uma suspeita baseada em evidências insuficientes não é uma crença devidamente justificada, e todo juízo sobre assuntos tão delicados deve ser formado com base em evidências que justifiquem a crença, seja sobre a culpa, seja sobre a inocência, seja sobre o fato que o melhor é suspender o juízo, ou seja, reconhecer que não há evidência suficientes nem para se crer que o acusado é culpado, nem para se crer que ele é inocente.
O filme explora muito a nossa sede por justiça combinada com nossa falta de evidências suficientes para justificar nossa crença. Mas ele também provoca a reflexão sobre como corremos o risco de sermos injustos quando deixamos nossa sede por justiça prevalecer em uma tal combinação. Nossa convicção de que o acusado é culpado não pode ser a justificação para acreditar que ele é culpado, mas justamente o contrário: nossa justificação para acreditar que o acusado é culpado, se suficiente, é a justificação para a nossa convicção. Mesmo que o acusado seja, de fato, culpado, crer que ele é culpado sem evidências suficientes é contar coma mera sorte de que essa crença seja verdadeira. Esse ponto se evidencia muito na fala da irmã Aloysius, quando ela diz que seu juízo é baseado na sua experiência, como se essa experiência fornecesse uma regra infalível para julgar certos tipos de casos, quando, de fato, isso não é o caso. Mesmo que na maioria dos casos suspeitos tenha havidos abuso, disso não se segue que no caso em questão tenha havido abuso. São necessárias provas para cada um dos casos particulares para se chegar a uma crença justificada sobre cada um deles.
O que pode motivar alguns a ficarem do lado da irmã Aloysius é o fato do padre Flynn ter, no final, pedido transferência. Afinal, quem não deve não teme, não é? Mas não nos esqueçamos que ela ameaçou a acabar com a sua reputação com base em uma confessa mentira, com base em mera fofoca. E reputações podem ser destruídas dessa forma. O caso da Escola Base, em São Paulo, é paradigmático aqui. A reputação do casal Shimada, proprietários da escola de ensino fundamental, e de dois funcionários, foi irreversivelmente destruída sem nenhum reparo proporcional, depois que uma professora da escola e um motorista foram acusados de abusar sexualmente de alguns alunos, sem nenhuma prova. Vários veículos da grande imprensa foram condenados a pagar indenizações aos acusados, mas isso nunca trouxe uma compensação pelos danos causados por esse linchamento midiático. Os Shimada morreram antes de receberem todas suas indenizações.
Um outro filme que dramatiza bem esse tipo de situação é A Caça, em que um professor primário é acusado de assédio com base nos relatos de uma criança, aluna dele, que se apaixona por ele e se revolta ao ver sua paixão não correspondida.
A principal lição filosófica de Dúvida é chamar a atenção para a importância da suspensão do juízo em certas ocasiões. Essa é uma atitude comum na ciência, que às vezes se abstém de um juízo sobre certos assuntos durante séculos, antes que evidências suficientes finalmente surjam para tal juízo. É uma visão ingênua e cognitivamente arrogante acreditar que devemos responder com certeza a todas as questões, mesmo que as evidências para as hipóteses disponíveis sejam todas insuficientes.
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