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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Mito e ciência

Estátua de Poseidon em Atenas

Mito (do grego μυθος) é uma narrativa que conta uma história de certos personagens, humanos ou não, fictícios ou reais e que têm várias funções na cultura em que surge. O conjunto dos mitos de uma determinada cultura é a sua mitologia. Os mitos têm uma função moral, fornecendo exemplos de ações boas, que devem ser estimuladas, e más, que devem ser evitadas. Mas ele também pode fornecer exemplos de situações em que se enfrenta um dilema ou aporia moral. Um mito pode ter uma função social, fornecendo modelos de estruturas sociais ou situações sociais problemáticas que provocam reflexão. Uma das funções mais óbvias desempenhada por um mito é estética, como peça literária. Mas a função dos mitos que nos interessa aqui é a função explicativa. Mitos são usados para explicar os fenômenos naturais, sociais e psicológicos. Tais fenômenos seriam o efeito do exercício dos poderes dos personagens dos mitos. Por que houve um tsunami? Porque Poseidon estava furioso e sacudiu as águas. Por que as pessoas se apaixonam? Porque Eros flecha seus corações. Qual é a origem do Sol? Ele era um índio jovem que bebeu tintura de urucu fervente, começou a brilhar e irradiar calor e subiu aos céu. Dado que tais explicações estão baseadas no comportamento aparentemente irregular e, por isso, um tanto imprevisível de seres dotados de vontade, desejos, medos, temperamento, etc., os fenômenos naturais, sociais e psicológicos pareciam, a partir das explicações míticas, um tanto irregulares e, por isso, imprevisíveis.

Com o passar do tempo, por meio de cuidadosas observações os seres humanos começaram a notar mais e mais regularidades na natureza. Por exemplo: ele notaram que se mergulhassem verticalmente um tubo de extremidades abertas na água, tapassem a extremidade de cima e retirassem o tubo dá água, a água dentro do tubo não escorria para fora, mas apenas se a extremidade fosse destapada. O crescente conhecimento dessas regularidades permitiu aos seres humanos fazerem mais e mais previsões de eventos naturais. 

Mas a ciência deu seus passos mais decisivos quando se começou a elaborar teorias para explicar essas regularidades observadas e fazer previsões, não mais baseadas em raciocínios indutivos, isto é, em observações passadas, mas baseadas no conhecimento das propriedades de entidades postuladas por essas teorias. Um exemplo paradigmático precursor desse tipo de teoria é o atomismo de Demócrito e Leucipo, segundo o qual todas as entidades físicas são agregados de átomos, pequeníssimas partículas indivisíveis inobserváveis cujo comportamento determinado por suas propriedades determina a ocorrência dos eventos físicos e as propriedades das entidades físicas observáveis. 

As atuais teorias das ciências naturais seguem esse modelo explicativo, com a diferença que agora aplica-se a matemática para criar modelos dos fenômenos físicos. As teorias mais bem estabelecidas são aquelas que satisfazem as seguintes exigências: são as mais simples possível, permitem explicar tudo que já foi observado sobre os fenômenos acerca dos quais versam essas teorias e permitem fazer previsões que se confirmam.[1] Esse modo de justificar teorias científicas é chamado raciocínio abdutivo, ou abdução, ou inferência para a melhor explicação. Por exemplo: para explicar certos fenômenos físicos relacionados à força nuclear fraca e à força eletromagnética, em 1963, o físico Peter Higgs postulou a existência de uma partícula elementar, um bóson, que então passou a se chamar bóson de Higgs. A existência dessa partícula foi confirmada em 2013, por meio de um experimento feito no maior colisor de partículas do mundo. Esse experimento revelou a existência de uma partícula que tinha as propriedades atribuídas por Higgs ao seu bóson.[2]

Uma crença comum sobre a relação entre mito e ciência é que a ciência provou que os mitos eram histórias falsas, que as entidades míticas não existem, ou algo semelhante. Mas essa crença é, no mínimo, confusa. Em primeiro lugar, não há nenhuma teoria científica que diga qualquer coisas sobre os deuses do Olimpo, por exemplo. Portanto, nenhuma dessas teorias diz que esses deuses não existem. O que a evolução do trabalho científico fez, em vez disso, foi tornar a crença nas entidades míticas, no mínimo, inúteis para o trabalho explicativo. Há uma história que se costuma contar sobre Pierre Simon, marquês de Laplace, um físico francês da época de Napoleão: o imperador teria perguntado a Laplace por que Deus não desempenhava nenhum papel na sua última teoria sobre o movimento celeste, ao que Laplace teria respondido "Majestade, não precisei dessa hipótese". 

É claro que se a crença em seres mitológicos não rende a melhor explicação dos fenômenos naturais, tais crenças no mínimo carecem de justificação científica. E se, ainda pior, tais crenças contradizem as melhores teorias das ciências naturais, então temos justificação para acreditar que essas crenças são falsas. Mas o fato é que a ciência nunca esteve focada em refutar mitos, mas antes em elaborar as melhores teorias explicativas. Como bem notou Quine, os mitos já forneciam o modelo explicativo que ainda é empregado na ciência: a postulação de entidades inobserváveis cujo comportamento explicaria os eventos observáveis. A (grande) diferença é que os mitos não são eficientes para esse propósito como o são as teorias científicas.


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[1] Explicações e previsões possuem a mesma estrutura. Uma explicação de um determinado evento observado consistem em inferir esse evento da teoria. Uma previsão consiste em inferir da teoria um evento ainda não observado.

[2] De fato essas partículas não foram observadas. O que ocorreu foi que os dados capturados no experimento são compatíveis com a existência de uma partícula com as propriedades postuladas por Higgs.



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