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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Minority Report, A Nova Lei

Lamar Burgess (Max von Sydow)

Este é o oitavo texto de uma série que estou escrevendo para uma disciplina da Graduação em Filosofia da UFPR denominada Filosofia e Cinema, em que procuro exercitar a reflexão acerca dos problemas filosóficos por meio de filmes. Creio que filmes podem ser bons meios de apresentação de problemas filosóficos na medida em que apresentam situações que desafiam nossas crenças fundamentais e, assim, desencadeiam a reflexão filosófica. Os textos dessa série são destinados àqueles que já assistiram os respectivos filmes, pois contêm revelações sobre seus respectivos enredos.

Minority Report conta a história de Lamar Burgess (Max von Sydow), o criador da empresa Pré-Crime, e seu pupilo, John Anderton (Tom Cruise). Essa empresa baseia todas as suas atividades no trabalho de três jovens, os precogs, que têm uma habilidade incomum: eles conseguem literalmente prever o futuro. Prever o futuro não é algo surpreendente quando não tomamos essa expressão literalmente. A ciência pode prever eclipses, tempestades e outros eventos. Mas isso não significa que a ciência pode ver com antecedência os eventos do futuros como nós podemos ver os eventos presentes. O que a ciência faz é inferir quais provavelmente serão os eventos futuros com base no conhecimentos da regularidade dos eventos passados. Mas o que os precogs fazem é ver o futuro como nós vemos o presente. Eles têm percepções sensíveis, dentre as quais visuais, dos eventos futuros como nós temos dos eventos presentes, como se eles estivessem vivenciando ou experimentando os eventos futuros tal como nós vivenciamos ou experimentamos os eventos presentes. Eles literalmente vêem o futuro.

Com base nessas previsões, Lamar criou uma policia que prende os criminosos que são flagrados em pleno crime "futuro". Eles são presos e julgados por crimes que, se o Pré-Crime for eficiente, eles não cometem. Eles não são julgados por tentativas de crime, coisa que nossas leis contemplam, mas por crimes futuros, como se tivessem de fato cometido tais crimes, mesmo que a Pré-Crime os tenha impedido de os realizar. Se os precogs prevêem que uma pessoa vai matar fulano e o Pré-Crime a impede de fazer isso a tempo, ela vai ser julgada por ter matado fulano no futuro, tal como se tivesse matado o fulano no presente.

Todavia, se alguém experimenta o futuro como experimenta o presente, então como é possível impedir que os eventos futuros aconteçam? Essa é a pergunta do policial Danny Witwer (Colin Farrell) em um diálogo em que ele questiona a inteligibilidade do Pré-Crime, alegando que o modo como o sistema é pensado implica um paradoxo. Quando experimentamos os eventos presentes, uma ida ao cinema, por exemplo, isso significa que aquilo que experimentamos é o caso, que é verdade que estamos no cinema. Se experimentamos o futuro, ida ao cinema amanhã, por exemplo, então isso deveria significar que aquilo que experimentamos será o caso, que é verdade que iremos ao cinema amanhã. Mas como pode ser verdade que iremos ao cinema amanhã, se podemos evitar ir ao cinema amanhã? Se hoje é verdade que vou ao cinema amanhã e eu não vou ao cinema amanhã, então isso significa que o que é verdade sobre o futuro hoje deixará de ser verdade amanhã? Se digo hoje que vou ao cinema amanhã e amanhã não vou ao cinema, isso não significa que o que eu disse hoje era simplesmente falso? Portanto, se alguém experimenta o futuro como experimenta o presente, então isso não significa que a ocorrência os eventos futuros não poderia ser evitados? Sendo assim, como pode a Pré-Crime evitar os crimes futuros?

John Anderton dá uma resposta a Danny Witwer que pode soar profunda a muitos à primeira vista. Ele joga sobre a bancada uma das bolas de madeira que enunciam quem é o criminoso que eles devem prender e, pouco antes de ela cair no chão, Danny a segura. John pergunta: "Porque você a segurou?" Danny responde: "Porque ela iria cair." John então diz: "O fato de que você impediu de acontecer não muda o fato de que iria acontecer." Todavia, essa resposta é baseada numa confusão conceitual. É verdade que a bola iria cair, se Danny não a tivesse pego. Mas ele a pegou. Portanto, ela não caiu. E se ela não caiu, antes de ela não cair não era verdade que ela iria cair. Dizer simplesmente que ela iria cair é diferente de dizer que ela iria cair, se ninguém a tivesse impedido de cair. Se uma proposição sobre hoje enunciada ontem se mostra falsa hoje, então ela não descrevia um evento de hoje e, portanto, não descrevia um evento futuro. Caso contrário, ela seria verdadeira. Sendo assim, não era verdade que a bola iria cair, embora seja verdade que ela iria cair, se ninguém a tivesse impedido de cair. Sendo assim, não era verdade que as pessoas presas na história do filme iriam cometer os crimes pelos quais foram responsabilizadas, embora seja verdade que elas iriam cometê-los, se ninguém as tivesse impedido. O máximo que uma tal verdade pode justificar é a responsabilização por tentativa de homicídio, não por homicídio. A expressão "responsabilidade presente por um crime futuro" não faz sentido e, portanto, todos os condenados por crimes futuros foram condenados injustamente.

Ademais, se os precogs prevêem o futuro, por que não prevêem que o Pré-Crime impedirá as pessoas de cometer os crimes que eles próprios previram? Porque, dessa forma, ficaria evidente a incompatibilidade entre as duas previsões: a previsão de um crime e a previsão do Pré-Crime evitando esse crime não podem ser ambas corretas. Se é verdade que o Pré-Crime vai impedir o crime, não é verdade que o crime ocorrerá.

O filme, portanto, tenta compatibilizar duas teses que são, se fato, incompatíveis:
(1) Os precogs podem ver o futuro.
(2) Os policiais da Pré-Crime podem impedir os eventos futuros previstos pelos precogs.
Esse tipo de incoerência é muito comum entre aqueles que acreditam em destino, entendido como uma sucessão inevitável de eventos, e na capacidade que temos de mudar nosso futuro. Se nossas vidas seguem um destino, então o futuro não pode ser mudado.

A incompatibilidade entre (1) e (2) se deve ao fato de que o conhecimento implica verdade. Se os precogs sabem que vai ocorrer um crime, então é verdade que esse crime vai ocorrer. Se é verdade que esse crime vai ocorrer, então ele vai ocorrer. Não é possível que seja verdade que esse crime vai ocorrer e que ele não ocorra. Se ele não ocorrer, não é verdade que ele iria ocorrer e, portanto, os precogs não sabiam que ele iria ocorrer, pelas simples razão de que eles não podem saber o que não é o caso.





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