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terça-feira, 10 de maio de 2016

"Queria ver o que você faria, se fosse você nessa situação!"

Primeira cadeira elétrica

Uma das principais contribuições que os filósofos podem dar à sociedade é a clarificação de certos conceitos e argumentos usados em debates sobre questões de importância fundamental, dado que essa é uma das habilidades que os filósofos cultivam, ou deveriam cultivar... Essa contribuição do filósofo serve para dissipar ilusões, expor confusões e até mesmo falsas discordâncias, entre outras coisas. Mesmo que isso não seja suficiente para decidir quem está correto no debate, se alguém estiver, é uma condição necessária para isso.

Uma das confusões mais comuns em debates sobre questões de filosofia moral e/ou filosofia política é aquela entre o discurso sobre o que é normativo e o discurso sobre o que não é normativo. Por exemplo: já me deparei várias vezes com tentativas de se argumentar em favor da pena de morte (e de outras normas) que seguem mais ou menos as linhas do seguinte diálogo imaginário:
A: A pena de morte é injustificada.
B: Você já teve algum parente querido que morreu a tiros em um assalto a mão armada, mesmo depois de ter entregue tudo o que o assaltante pediu, tendo sido inclusive estuprada?
A: Felizmente, não.
B: Então é por isso que você está dizendo que é contra a pena de morte! Queria ver o que você faria se você tivesse uma filha que tivesse sido assaltada, estuprada e morta, e tivesse a oportunidade de matar o criminoso. Queria ver o que você faria, se fosse você nessa situação!
O que uma pessoa como B não percebe é algo que a sabedoria de várias gerações sintetizou na expressão "Explica, mas não justifica". Se o pai de uma jovem que é assaltada, estuprada e morta por um criminoso matar esse criminoso quando tiver oportunidade, então essa circunstância ajudará, sem dúvida, a explicar causalmente o seu ato e atenuar uma provável pena a que fosse condenado a cumprir. Mas essa explicação não necessariamente é suficiente para justificar o seu ato. Talvez a pessoa A, se estivesse naquela circunstância, ou seja, se fosse o pai daquela jovem, matasse o criminoso que assaltou, estuprou e matou a sua filha. E talvez ele admita isso, que faria isso naquela circunstância. Mas admitir isso não o obriga a admitir que isso que ele faria é o que ele deveria fazer, ou seja, que estaria justificado fazer isso que ele faria.

Esse ponto se mostra de forma mais didática no fato que, por vezes, temos a disposição para fazer o que não deveríamos fazer em certas circunstâncias. Mas se temos essa disposição, então, nessas circunstâncias, isso é o que provavelmente faríamos. Entretanto, se é a disposição para fazer o que não deveríamos fazer, então esse é uma caso em que faríamos algo que não deveríamos fazer. Logo, mostrar que uma pessoa provavelmente faria isso e aquilo em tais e tais circunstâncias está longe de ser suficiente para mostrar que isso é o que ela deveria fazer.

O discurso sobre o que faríamos em determinadas circunstâncias é o discurso sobre o que não é normativo, sobre o que é ou seria o caso, por oposição ao que deveria ser o caso. O discurso sobre o que deveríamos fazer em determinadas circunstâncias é um discurso sobre o que é normativo. Essa normatividade pode ser instrumental ou moral. Ela é instrumental quando consiste no que deveríamos fazer para atingir certos fins, não importando se tais fins são ou não são moralmente bons. Ela é moral quando levamos em conta a moralidade dos fins, não apenas dos meios. Mesmo que haja casos em que o que faríamos e o que deveríamos fazer coincidam, disso não se segue que seja válido inferir o que deveríamos fazer do que faríamos. Por isso, não há nenhuma contradição em se dizer: "Se eu tivesse oportunidade, eu provavelmente faria tal e tal coisa em tal e tal circunstância, embora eu ache que eu não deveria fazer isso."

Não é raro que o desejo de institucionalizar a vingança seja aquilo que motiva alguém a inferir o que deveria ser feito em determinada circunstância daquilo que essa pessoa faria nessa circunstância. Mas fazer justiça não é o mesmo que se vingar. Se alguém merece morrer (e esse é uma grande "se"), certamente não o é para saciar a sede de vingança de alguém. Ambas as coisas podem coincidir, mas não necessariamente coincidem, pois é extremamente subjetivo o que satisfaria o desejo de vingança de cada um e muitos não têm desejo de vingança.

Um comentário:

  1. Creio ser isto um erro muito comum por maior parte das pessoasm, fazer seus julgamentos através de suas emoções. O argumento é logicamente construído com o suporte da emoção, não da razão. A emoção tende a ser subjetiva, a razão objetiva. Por isso, "explica, mas não justifica". Isso é algo que todo ser humano está sujeito, sendo que um julgamento racional sobre isso, com argumentos que defendam A ou B construídos na razão, na lógica, só é possível se aqueles que analisam tem muito pouca ou nenhuma influência emocional sobre o tema em debate, do contrário, sempre tenderá a satisfação seus interesses, algo que notamos com uma incrível presença no corpo político.

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