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domingo, 13 de setembro de 2009

O conceito de conhecimento

O cético, ou ao menos um tipo de cético, pretende mostrar que não satisfazemos ao menos uma das condições necessárias para saber. Mas, para nos convencer, ele deve nos convencer que essas, sejam quais forem, são condições necessárias para saber. Ele deve nos convencer que o conteúdo do conceito de conhecimento contém essas condições. Uma estratégia para isso é examinar o nosso modo ordinário e/ou científico de usar o verbo "saber" e as demais palavras dessa família. Austin adota essa estratégia, não para defender o ceticismo, mas para atacá-lo. Criticando Austin, Stroud procura mostrar que é inválido inferir teses sobre o conteúdo do conceito de conhecimento de afirmações sobre nosso modo de uso do verbo "saber", pois os critérios desse uso frequentemente obedecem a objetivos práticos, a despeito dos nossos objetivos epistêmicos. Mas como Stroud pode justificar isso, dado que não está aberta para ele a possibilidade de apelar para o exame do nosso uso do verbo "saber"? Ele poderia dizer, embora de fato não diga, que há uma distinção entre usos práticos e epistêmicos de "saber". Mas como ele poderia justificar essa distinção? Parece que apenas se ele já tivesse conhecimento sobre quais são nossos objetivos epistêmicos, isto é, sobre quais são as condições a serem satisfeitas para que saibamos. E voltamos a estaca zero. De nada adianta dizer que, de acordo com a definição ordinária de conhecimento, nós conhecemos, mas que, de acordo com a definição filosófica, seja isso o que for, não conhecemos. Sem uma justificação de que a definição filosófica é, de algum modo, melhor, a discussão seria meramente verbal. E dada a conseqüência cética contra-intuiiva dessa definição filosófica, ela parece ser justamente pior. A discussão, obviamente, não encerra aqui. Mas para ela avançar, o cético precisa dizer como ele conhece o conteúdo do conceito de conhecimento, o que já parece paradoxal o suficiente...

13 comentários:

  1. Alexandre,
    Entendo tua argumentação e não tenho nenhum bom argumento contra ela. O que vou dizer é uma tentativa de tornar mais plausívelo ponto de vista do cético e de Stroud. Stroud poderia justificar a distinção entre usos práticos e uso epistêmicos de saber a partir de um entendimento daquilo que qualquer ser humano consideraria, de um ponto de vista estritamente lógico ou teórico, necessário para saber. As condições obtidas seriam ideais e talvez não coincidam com as condições que seguimos no cotidiano, mas seriam suficientes para garantir que sabemos. A principal condição stroudiana para saber parece ser esta: sei que p implica p. (Nenhuma boa epistemologia, creio, admite menos do que isso). Ao tentar explicar como essa condição pode ser satisfeita Stroud parece exigir que eu tenha evidências para p que sejam, ao mesmo tempo, evidências para ~q(as possibilidades incompatíveis com p). Usando um exemplo do Putnam, sei que há leite no refrigerador se tenho evidências para p (comprei leite e coloquei na geladeira) e se tenho evidências que garantem que q não é o caso (evidências que nenhum ladrão roubou o leite ou meu filho tomou, p.e).No caso das hipóteses céticas, é plausível admitir que não tenho nunca evidências de sua falsidade, então não posso dizer que sei o que inicialmente pensava saber. Alguém que raciocina consequentemente poderia chegar nessa mesma conclusão. Isso não é uma justificativa para dizer que esse é o "nosso" conceito de conhecimento, mas permite dizer que talvez essas sejam as condições que melhor garantam que sabemos algo. Esse tipo de exercício me parece legítimo e caracteriza boa parte da história da filosofia. A questão é saber se esse tipo de conclusão (sei, entre outras condições, se e somente se sou capaz de excluir todas as possibilidades incompativeis com p) diz algo sobre nós, sobre nossa condição de conhecedores ou é apenas uma exercício de pensamento. Eu acredito que o saber, em sentido cotidiano, não exige tanto. Dizemos saber quando conseguimos reunir, até certo ponto, evidências favoráveis ás nossas crenças. Esse sentido mais fraco de conhecimento é suficiente para nossas finalidades. Ao mesmo tempo, eu admito que poderíamos estar errados, errados de um modo que sequer imaginamos nas coisas que dizemos saber. Isso quer dizer que, em última instância, o ceticismo é uma possibilidade para nós.

    Flavio

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  2. Flávio: Entendo teu argumento stroudiano. Mas se meu argumento é cogente, então o que tens que fazer a seguir é mostrar como sabes que não oferecer evidência para saber que não roubaram o leite da tua geladeira é suficiente para ser verdadeiro que tu não sabes que há leite lá. Ou seja, como sabes que essa exigência faz parte do nosso conceito de conhecimento? Se admites que na linguagem ordinária e científica não fazemos isso, não podes apelar para ela para responder à ultima pergunta. Do ponto de vista ordinário e científico, não parece nem um pouco plausível exigir que excluamos todas as possibilidades incompatíveis com aquilo que alegamos saber. Por isso, os exemplos céticos como o de Putnam não parecem nem um pouco plausíveis. O que é plausível admitir é o seguinte: se sei que p e não pode ser o caso que eu saiba que p e seja o caso que q, então não-q. Mas apenas disso não se segue a exigência cética.

    Considere o seguinte diálogo:

    -- Sei que há leite na geladeira.
    -- Como sabes?
    -- Comprei leite há pouco e coloquei lá.
    -- Se alguém roubou o leite nesse meio tempo, então não sabes, certo?
    -- Certo. Mas ninguém roubou.
    -- Mas como tu sabes que ninguém roubou?
    -- Não tenho nenhuma razão para pensar isso.
    -- Mas mesmo assim, ele pode ter roubado sem que tu soubesses, certo?
    -- Sim, e ele poderia ter sofrido uma rara mudança quântica e estar no outro lado da Via-Láctea. Tenho que te mostrar que sei que isso também não é o caso para saber que há leite na geladeira? O que tenho que fazer é justificar minha alegação de conhecimento de acordo com o que aprendemos a tomar como justificativa ao aprendermos a palavra "conhecimento". E para que minha alegação seja verdadeira, basta que eu acredite saber, que seja verdade o que eu acredito saber e que eu esteja justificado em crer.
    -- Mas o que estou dizendo é que não estás justificado em crer se não mostrar que sabe que ninguém roubou o leite.
    -- Uma coisa eu já fiz: justifiquei, de acordo com os critérios ordinários, que sei que há leite na geladeira. Sei que isso é incompatível com alguém tê-lo roubado. Portanto, minha justificação serve também para acreditar que essas incompatibilidade não são o caso.
    -- Mas o que quero mostrar é que não serve.
    -- Não? Para quem? Para mim e as pessoas que não são céticas, serve muito bem. Por que eu deveria adotar tuas exigências mais fortes? Por que deveria mudar meu uso de "saber" e "conhecimento"?

    Eu teria mais a dizer, principalmente sobre a frase "Se sei não posso estar enganado". Mas vou deixar isso para uma próxima postagem. Um abraço.

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  3. Eu assisti a palestra que Flavio apresentou no Seminário de Semântica e Cognição realizado na UFRGS. Qualquer que seja o conteúdo do conceito de conhecimento, o que me parece um desiderata de qualquer Teoria do Conhecimento (que defina 'conhecimento') é que ela acomode o 'conhecimento científico' como conhecimento legítimo. Ocorreu uma discussão durante a palestra em que se percebeu o quão nocivo para a legitimidade epistêmica da ciência seria um conceito de conhecimento adequado ao ceticismo cartesiano. O 'conhecimento científico' não seria realmente conhecimento se fosse para atender ao cético.Isto me parece absurdo e me fez investigar algumas questões cuja conclusão apresentarei em meu blog. Mas a ideia é a de que existiriam dois tipos de conhecimento, um deles seria científico e o outro não, entretanto, nenhum deles seria realmente conhecimento para o cético.

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  4. Greg: "Qualquer que seja o conteúdo do conceito de conhecimento, o que me parece um desiderata de qualquer Teoria do Conhecimento (que defina 'conhecimento') é que ela acomode o 'conhecimento científico' como conhecimento legítimo."

    Desiderata é uma coisa, fato é outra. Tmabém tenho esse desiderata. Todavia não posso usá-lo para refutar o cético, mas apenas para apontar meu norte filosófico, digamos assim. Meu argumento é um de muitos passos que pretendo dar para seguir nessa direção. Ele inclusive pode ser visto como o que oferece o fundamento desse desiderata.

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  5. Sim, ele não pode ser usado para refutar o cético. Eu em princípio penso que o cético não pode (e nem deve) ser refutado. O ceticismo sustenta um eixo que inculca da devida humildade toda empreitada epistêmica. O que deve ser feito, penso eu, é reservar o espaço certo para o cético. O espaço em que ele move o conhecimento mas sem movê-lo em círculos.

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  6. Greg: Se o cético não pode ser refutado, então és cético? Pois como não seria, se acreditas que o argumento do cético é válido e com premissas verdadeiras? Não deve ser refutado por que? Porque não tem importância filosófica? Ou justamente porque está certo?

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  7. Entendo o cético não como alguém que desafia a definição de conhecimento (crença verdadeira e justificada), possivelmente ele concorda que esta definição expressa condições necessárias e suficientes (não entrando no mérito dos problemas de Gettier). O que ele faz é incrustar os critérios de suficiência da justificação de um rigor descabido. O que devemos fazer é mostrar porque é descabido. No entanto, sempre que descobrimos que estávamos errados, os rigores do cético se tornam mais 'cabíveis'. Dito isto, creio que o cético esteja errado. Nem por isso seu ceticismo deve ser tomado como contra-senso, ele apenas deve ser mitigado.

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  8. Greg: Não tenho certeza se entendo o que disseste, principalmente porque não consigo entender a relação do que dizes com meu último comentário. O que significa "descabido", dado que não implica "sem sentido"? Acho que concordamos que, até certo ponto, podemos entender as exigências do cético. O que estou tentando argumentar é que não conseguimos entender *por que* ele faz essas exigências. Bem, é porque ele define "conhecimento" de uma certa forma? Sim, mas se essa não é a definição do conceito de conhecimento que temos, por que deveríamos adotá-la? Sendo assim, ou ele mostra que essa é a definição do nosso conceito de conhecimento, ou ele justifica a troca. Na ausência das duas coisas, ai sim, podemos deixá-lo falando sozinho.

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  9. Não vejo como ele poderia nos convencer de uma troca, o critério que ele espera que compartilhemos é demasiado rigoroso. Todavia, discutirei isto mais detalhadamente no meu blog em breve, aí te aviso para que, caso tu te interesse, avalie aquilo com que concorda ou discorda.

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  10. Não creio que exitam "céticos profissionais" - empenhados em provar que não conhecemos ou que a filosofia (e as explicações filosóficas) não faze sentido. Se existem, seu trabalho é artificial e infantil.

    O cético, para mim, é um filósofo que, por uma razão objetiva, resolveu examinar um conceito que, até aqui parecia não necessitar de melhores explicações. Como é o caso do conceito de "conhecimento" quando é usado para ilustrar a eficiência (e as vantagens) de uma regra de condução do espírito (p. ex. um certo método de investigação científica, uma certa prova teológica, um certo uso retórico da autoridade etc.).

    Dizer que não faz sentido uma "teoria geral do conhecimento" (uma regra geral de como adquirir conhecimento seguros) não é o resultado de um raciocinio cético, mas de qualquer filósofo honesto - posto a falibilidade do noso raciocínio, a incompletudo das nossas crenças etc.

    [A distiñção entre uso prático e uso filosófico serve, paa mim, apenas para atestar que a definição filosófica é falsa ou inócua.]

    Depois de ter estudado filosofia esses anos todos (como alguém que saiu do psicanalista depois de anos de terapia), posso apenas aceitar uma concepção modesta de conhcimento: aquilo que tenho razões para acreditar. Ter "razões" aqui envolve processos confiáveis que, muitas vezes, escapam à minha capacidade de dizer "porquê".

    "Porque tenho razões para acreditar" e "Como me relaciono com os conteúdos da minha crença", são, para mim, problemas filosóficos que devem ser resolvidos para entendemos melhor o lugar de uma teoria filosófica do conhecimento.

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  11. Grande Waldomiro: Obrigado pelo comentário. Para mim não é muito importante se o filósofo que apresenta o (ou um) raciocínio cético o paresenta para defender uma posição cética ou apenas como recurso eurístico. O que importa é sabr quais são os pressupostos explícitos ou implícitos desse raciocínio e se eles são aceitáveis. Tentei mostrar que um deles é, no mínimo, problemático. Deixei claro que não estou dizendo que todo ceticismo assume esse pressuposto. Mas creio que um certo tipo de ceticismo muito influente o assume. Mas sei também que **posso estar enganado**...

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  12. Grande Alexandre,

    Como era minha primeira postagem, tive de fazer um tipo de inscrição e minha mensagem acabou saindo "cortada". No início da mensagem eu dizia que "concordava contigo integralmente... e que iria apenas fazer um comentário..."

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  13. Waldomiro: Se discordasse de mim integralmente, não haveria problema. No mínimo me ajudaria a pensar melhor sobre o assunto... Abraço.

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