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domingo, 25 de maio de 2008

Kripke e Wittgenstein: Contingente a priori e identidade


Em uma famosa passagem de Naming and Necessity, Kripke cita uma passagem das Investigações Filosóficas de Wittgenstein para em seguida criticá-la:
"Há uma coisa da qual não se pode dizer nem que tem um metro de comprimento nem que não tem um metro de comprimento, e esse é o metro-padrão em Paris. Mas isso, naturalmente, não é atribuir uma extraordinária propriedade a ele, mas apenas marcar o seu papel peculir no jogo de linguagem de medir com uma régua de um metro." (Investigações Filosóficas, §50) Essa é uma muito "extraordinária propriedade ", de fato, para qualquer barra possuir. Acho que ele deve estar errado. Se a barra é uma barra de 39'37 polegadas de comprimento [...], por que não tem um metro de comprimento? Seja como for, suponhamos que ele está errado e que a barra tem um metro de comprimento. Parte do problema que está incomodando Wittgenstein é, naturalmente, que essa barra serve de padrão de medida e, portanto, não podemos atribuir medida e ela. Mas seja como for (bem, pode não ser), o enunciado "A barra S tem um metro de comprimento" é uma verdade necessária? É claro que seu comprimento pode variar no tempo. Podemos tornar a definição mais precisa estipulando que um metro de comprimento será o comprimento de S no tempo fixo t0. É uma verdade necessária que que a barra S tem um mentro de comprimento em t0? Alguém que pensa que tudo que se sabe a priori é necessário poderia pensar: "Essa a é a definição de metro. Por definição a barra S tem um metro de comprimento em t0. Essa é uma verdade necessária." Mas parece não haver nenhuma razão para concluir isso, mesmo para um homem que usa a enunciada definição de "um metro". Pois ele está usando essa definição não para dar o significado do que ele chamou de "metro", mas para fixar a referência. (Para uma tal coisa abstrata como uma unidade de comprimento, a noção de referência pode não ser clara. Mas vamos supor que ela é clara o suficiente para o presente propósito.) Ele a usa para fixar uma referência. Há um certo comprimento que ele deseja destacar. Ele o destaca por meio de uma propriedade acidental, a saber, que há uma barra daquele comprimento. Uma outra pessoa poderia destacar a mesma referência por meio de outra propriedade acidental. Mas em qualquer caso, embora ele use isso para fixar a referência do padrão de comprimento, um metro, ele ainda pode dizer "Se calor fosse aplicado a essa barra S em t0, então em t0 a barra S não teria um metro de comprimento". [pp. 54-55]
E Kripke segue dizendo que "um metro" designa rigidamente em todos os mundos possíveis um certo comprimento que no mundo atual é o comprimento de S em t0. A expressão "O comprimento de S em t0", por sua vez, não designa rigidamente. Ele então continua:
Qual é o estatuto epistemológico do enunciado "A barra S tem um metro de comprimento em t0" para alguém que tenha fixado o sistema métrico por referência à barra S? Parece que ele o conhece a priori. Pois se ele usou a barra S para fixar a referência de "um metro", então, como resultado dessa espécie de "definição" (que não é uma abreviação ou definição por sinônimos), ele sabe automaticamente, sem investigações adicionais, que S tem um metro de comprimento. [p. 56]
Gostaria de destacar as seguintes teses contidas nessas passagens:

(1) Qualquer objeto que, no tempo t, for tomado como o padrão de uma certa unidade de medida M possui, contingentemente, 1M em t.

(2) Qualquer sujeito que crie uma unidade de medida M no tempo t tomando um certo objeto O como um padrão dessa unidade sabe, a priori, que O tem 1M em t.

A combinação das teses (1) e (2) dá fundamento para a tese que há verdades contingentes a priori. O que quero fazer aqui é chamar a atenção para uma curiosa conseqüência das teses (1) e, principalmente, (2). A conseqüência é: apenas por meio do pensamento, sem que tenhamos que mover um dedo, podemos saber o comprimento de qualquer objeto ao qual podemos nos referir. Eu posso saber a altura que Winston Churchill tinha quando pronunciou a famosa frase "I have nothing to offer but blood, toil, tears, and sweat", por exemplo. Eu agora "defino" (fixo a referência de) "1Churchill" assim:

1Churchill=a altura de Churchill quando pronunciou a frase "I have nothing to offer but blood, toil, tears, and sweat".

Agora eu sei a priori que Churchill tinha 1 Churchill naquele momento. É fácil ver como isso pode ser generalizado para qualquer comprimento de qualquer objeto a que possamos nos referir em qualquer tempo que possamos especificar. Mas também é fácil de ver que o que vale para medidas de comprimento, vale para medidas de peso, de volume, de tempo, enfim, para qualquer medida.

Em uma famosa passagem das Investigações Filosóficas, que, tenho a impressão, ou Kripke não leu ou dela não se recordava quando comentava §50, Wittgenstein diz:
Imagine alguém dizendo "Mas eu sei que altura tenho!" colocando sua mão no topo da sua cabeça para provar isso. [§279]
De acordo com como eu interpreto essa passagem, o que Wittgenstein está a fazer é chamar a atenção para o fato de aquilo que o sujeito da cena inusitada oferece como justificação para sua afirmação que sabe que altura ele próprio tem não a justifica, assim como o que eu ofereci não justifica minha alegação de saber a altura de Churchill. A razão disso é que a frase, implicitamente sugerida na passagem das Investigações recém citada e explicitamente formulada no caso de Churchill, é, em certo sentido, tautológica. Ela não diz mais que "A altura que o sujeito possui em t é igual à altura que ele possui em t". Se alguém acha que nesses contextos alguém sabe a altura de alguma coisa, então está considerando inteligível que se possa medir a altura de um objeto em t ao se comparar esse objeto consigo mesmo em t. Podemos saber que altura um objeto O possui em t, comparando O com a altura que O possui em t. E isso, é claro, podemos fazer apenas pensando...

No que considero o seu melhor artigo, o brilhante "How Long is the Standard Meter in Paris?" (McCArthy, T. & Stidd, S.C. (ed.) (2001) Wittgenstein in America. Oxford: OUP), Cora Diamond explora essa tensão entre Kripke e Wittgenstein. Eu concordo com ela que o que, de modo geral, está em jogo nessa tensão é o que se pode denominar "concepção absoluta de identidade", como uma relação que um objeto mantém consigo mesmo. A propósito, em uma outra passagem famosa das Investigações Filosóficas, Wittgenstein diz:
Mas o mesmo não é, ao menos, o mesmo?

Parecemos ter um paradigma infalível de identidade na identidade de uma coisa consigo mesma. Tenho vontade de dizer "Aqui, de qualquer modo, não pode haver variedade de interpretações. Se você está vendo uma coisa, está vendo identidade também."

Então, duas coisas são a mesma quando elas são o que uma coisa é? E como devo aplicar o que uma coisa me mostra ao caso de duas coisas?

"Uma coisa é idêntica a si mesma" - Não há melhor exemplo de uma frase inútil, que no entanto está conectada com um certo jogo da imaginação. É o jogo em que colocamos uma coisa na sua própria forma e vemos que se ajusta. [§§215-6]

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