Translate

sábado, 1 de outubro de 2016

O paradoxo do conhecimento fácil: ou sobre a acrasia cognitiva

Logo do WikiLeaks

O advento da informática, da tecnologia da informação, e sua evolução assombrosamente rápida, em conjunto com um outro fato da sociedade contemporânea industrializada, contribui para o surgimento de uma situação paradoxal. O outro fato a que me refiro é um número assustador de pessoas que sofrem de um certo tipo de indigência cognitiva: um misto de ignorância e ilusão de conhecimento sobre assuntos fundamentais da nossa sociedade. Como pode ser o caso que boa parte das pessoas esteja nessa indigência cognitiva dado que o acesso à informação nunca foi tão fácil em toda a história da humanidade? Para ter esse acesso, não é necessário ter um computador. Basta uma pessoa ter um smartfone (ok, um smartfone é um minicomputador, mas você entendeu...) e acesso à internet para ela ter acesso, por exemplo, até a alguns dos segredos de governos de países poderosos revelados pelo site WikiLeaks (literalmente: vazamentos rápidos), entre outras muitas coisas. Há milhões de livros e artigos especializados, notícias de alta qualidade, enciclopédias, tudo disponível de graça. Para aqueles que lêem apenas em português, há dicionários bilingues, tradutores automáticos e cursos de línguas estrangeiras. Tudo isso está ali, a alguns toques em qualquer smartfone que tenha acesso à internet. Alguém disse que tal e tal coisa é o caso e você quer saber se isso é verdade? Basta digitar umas palavras-chave no Google e voilà! Você pode encontrar sites especializados confirmando ou negando que tal e tal coisa seja o caso. Não sabe o que "voilà" significa? Pronto: voilà. Você pode inclusive saber como se pronuncia essa palavra e se tornar um pouco mais erudito...

A facilidade de acesso à informação proporcionada pela informática parece nos levar à conclusão de que nunca foi tão fácil obter conhecimento. Mas o fato de que grande parte das pessoas sofre do que chamei de indigência cognitiva está em conflito com essa conclusão. Se é tão fácil obter conhecimento, por que essa indigência cognitiva pervade cada vez mais nossa sociedade industrializada? Há várias causas para isso, creio. Algumas estão relacionadas à própria natureza do processo de aquisição de conhecimento e outras têm uma natureza político-econômica.

A obtenção de conhecimento, principalmente sobre assuntos complexos como aqueles relativos à sociedade, demanda muito trabalho. Não basta acessar a informação. Ela deve ser processada, analisada, comparada, etc. Deve-se extrair as conclusões dessas informações com base em raciocínios bem feitos. E antes disso, deve-se buscar fontes confiáveis de informação. Ou seja, deve-se buscar informação sobre a informação. Tudo isso demanda tempo e muito trabalho. Mas não há outro jeito. Não há atalhos para o conhecimento. Toda essa complexidade também é devida a complexidade das questões importantes para a nossa sociedade. Elas são muitas e formam uma rede de conexões complexas. Responder a uma destas questões mais fundamentais, como, por exemplo, "O sistema capitalista é o melhor?", nunca é uma tarefa simples, pois envolve responder a muitas questões a ela subordinadas. Por tudo isso, embora a informação seja de fácil acesso, é bem mais fácil escolher um pacote pronto de crenças cuidadosamente escolhidas sobre a sociedade ricamente embalado, onde já estão todas as respostas prontas para as perguntas fundamentais sobre nossa sociedade, que podem ser consultadas sempre que for necessário, como quem consulta a Bíblia, do que adquirir conhecimento por conta e risco.

É claro que boa parte das pessoas sequer tem um celular, muito menos um smartfone, e, por isso, têm muito pouco acesso à informação. Mas isso não afeta o que eu disse cima, pois a indigência cognitiva de que falo é daqueles que possuem acesso à informação.

Mas há um outro empecilho para a aquisição de conhecimento. É um velho clichê dizer que conhecimento é poder. Clichê ou não, isso é bem verdade. Costuma-se atribuir a Napoleão a seguinte frase: "Se perco o controle da imprensa não aguentarei no poder nem por três meses." Se Napoleão disse mesmo isso é o que menos importa aqui. Importa é que essa frase expressa uma preocupação de uma boa parte daqueles que detém o poder político-econômico: o controle da informação. O romance de George Orwell, 1984, adaptado para o cinema, mostra isso de maneira dramática. Esse controle é exercido de muitas formas: ocultação de informação, propaganda, desinformação, boatos, monopólio dos grandes meios de comunicação, inculcação de medo da situação que os poderosos querem evitar, pseudo-cientificidade, etc. O objetivo desse controle é convencer o povo de que o que os poderosos fazem é o melhor a ser feito, que o sistema político-econômico em que se vive é o melhor possível, para que, assim, o poder possa ser exercido com o mínimo de resistência possível. Não há nenhum problema em se acreditar sinceramente nisso e tentar convencer as pessoas disso a fim de que a sociedade viva em paz. O problema é fazer isso manipulando a informação.

Esses dois fatos somados produzem o que eu chamo de indigência cognitiva de boa parte das pessoas. O controle da informação é imensamente facilitado pela comodidade de se escolher um pacote pronto de crenças sobre a sociedade ricamente embalado, ao invés de se escolher a busca autônoma pelo conhecimento. Kant já tinha percebido que a autonomia cognitiva é mais trabalhosa e dolorosa que a heteronomia. A aquisição de conhecimento, além de ser trabalhosa, pode gerar angústia, frustração e decepção. Pode ser doloroso abandonar crenças que foram inculcadas pela educação que recebemos quando crianças. A inércia que essa educação provoca na nossa mente está sempre a dificultar a aquisição de conhecimento. Não obstante ser difícil e muitas vezes doloroso, creio que é uma obrigação moral buscar a autonomia cognitiva. E uma das principais razões para isso é que não buscá-la facilita o controle da informação por parte dos poderosos e, por conseguinte, facilita as ações desses poderosos, que afetam a todos. Os poderosos contam com a acrasia cognitiva do povo para controlar a informação. A moderna forma de escravidão é voluntária, porque a escravidão agora é atraente, graças ao controle da informação.


Nenhum comentário:

Postar um comentário