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quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Critérios, exemplos e teorias



Certa vez eu discutia com um amigo sobre o amor e ele me disse que o amor que sentia pela esposa e que ela sentia por ele em alguns momentos era tão, tão intenso e qualitativamente idêntico que ele passou a acreditar que ambos, quando sentiam o amor, estavam percebendo uma e a mesma coisa, o amor deles. Essa é, na minha opinião, uma maneira bela de se descrever um amor recíproco e intenso. Mas eu estraguei um pouco o barato do meu amigo questionando sua tese.

Sua tese era: em alguns casos pelo menos, duas pessoas não apenas experimentam um sentimento qualitativamente idêntico, como o amor, mas suas experiências qualitativamente idênticas se devem ao fato de serem uma espécie de percepção de uma coisa numericamente idêntica a si mesma, o amor de ambas. É como duas pessoas que olham um objeto físico, digamos, um abajur, do mesmo ângulo: ambas terão experiências visuais qualitativamente idênticas e essa identidade qualitativa é parcialmente explicada pelo fato de serem percepções de um mesmo objeto nas mesmas condições.

Minha questão para meu amigo era a seguinte: você é capaz de fornecer critérios claros para decidir entre um caso em que se trata do sentimento de um e mesmo amor e um caso em que se trata de sentimentos qualitativamente idêntico de amores distintos (se é que se trata de algo análogo à percepção)?

A palavra "critério" é ambígua. Em um certo sentido amplo, dizer que, em um caso, trata-se de sentimentos qualitativamente idênticos de um e mesmo amor e, no outro, trata-se de sentimentos qualitativamente idênticos de amores distintos é dar "critérios" para se "distinguir" um caso de outro, em um sentido muito amplo de "critério" e "distinguir". Mas esse critério abstrato não ajuda em nada na prática, se não temos critérios operacionais, concretos, para decidir sobre casos particulares. A situação aqui é análoga a de uma lei que afirma ser crime caluniar uma pessoa sem fornecer nenhum critério operacional, concreto, para decidir quando uma pessoa foi caluniada e quando ela pensa que foi caluniada sem ter sido. Essa lei, sem tais critérios concretos, é inútil. Aquela distinção, sem tais critérios operacionais, concretos, é inútil, para se dizer o mínimo.

Eu diria que, nesse caso, essa distinção é inútil não apenas para sabermos se se trata de um caso ou de outro, mas para pensarmos os casos a partir dessa "distinção". A falta de tais critérios operacionais nos impede não apenas de encontrarmos casos reais ou imaginários que exemplifiquem essa distinção, mas mostram que tal distinção é, como se costuma dizer, uma distinção sem diferença nenhuma. Ou seja, a falta de tais critérios mostra que se trata de uma pseudo-distinção; é apenas um jogo de palavras, uma tentativa mal sucedida de aplicar a distinção entre identidade qualitativa e identidade numérica na experiência dos sentimentos. O que ocorre aqui é o que Wittgenstein descreve nesta passagem de Cultura e Valor:
Filósofos frequentemente se comportam como crianças pequenas que rabiscam algumas marcas em uma folha de papel ao acaso e então perguntam ao adulto "O que é isso?" -- Aconteceu desse modo: o adulto desenhou figuras para a criança várias vezes e disse: isso é um homem, isso é uma casa, etc. Então a criança faz algumas marcas também e pergunta: o que é isso, então?
Meu amigo, na época, não soube fornecer os critérios que pedi e chegou à conclusão de que ele estava tentando definir uma pseudo-distinção, embora hoje eu ache que ele poderia ter fornecido tais critérios, bastando, para isso, manter-se fiel à analogia com a percepção.

Seja como for, essa história serve para ilustrar um ponto mais geral que acredito ser de extrema importância em muitas discussões filosóficas: o papel dos exemplos na defesa da inteligibilidade, plausibilidade e verdade de uma tese ou teoria. A falta de critérios operacionais para a aplicação de um conceito nos impede de encontrar exemplos, concretos ou imaginários, casos aos quais o conceito se aplique ou se aplicaria verdadeiramente.

E esse ponto está relacionado a outro: o uso dos experimentos mentais na investigação filosófica. Um experimento mental é a descrição de uma situação que, à primeira vista, parece possível, a fim de se extrair conclusões sobre a inteligibilidade, plausibilidade e valor de verdade de uma tese ou teoria. A situação descrita, portanto, contém um exemplo ou contra-exemplo de uma tese ou teoria no que respeita ao ao menos uma daquelas características: inteligibilidade, plausibilidade e valor de verdade. Mas se essa tese ou teoria contém um conceito para o qual não se pode especificar critérios operacionais para sua aplicação, então não conseguiremos construir experimentos mentais em que haja exemplos ou contra-exemplos dessa tese. Isso foi o que aconteceu, creio, com a tese do meu amigo sobre o amor.

Mas pode acontecer também o seguinte: uma tese filosófica pode implicar que não existem (nem nunca existiram) exemplos de coisas de um certo tipo. Isso é o que acontece justamente com teses existenciais negativas, tal como "Não existe verdade". Se o conceito dessas coisas não é definido estipulativamente, então com base no que sua definição é obtida? Certamente não é com base no exame dos exemplos de coisas desse tipo.

Vou ilustrar o ponto em questão com uma discussão sobre a tese central do ceticismo global. Segundo o ceticismo global, de modo geral, não existe conhecimento (na sua versão mais fraca) ou não pode existir conhecimento (na versão mais forte).[1] É claro que, para negar a existência ou possibilidade de uma coisa, deve-se já ter (minimamente) claro o que essa coisa é. Um ateu, por exemplo, tem de ter claro o que é Deus para que sua negação da existência de Deus seja compreensível. Mas como o cético esclarece o conceito de conhecimento, dado que, se sua principal tese estiver correta, ele não conhece um exemplo sequer de conhecimento? Ele não pode basear seu esclarecimento no modo como usamos a palavra "conhecimento" ou "saber", pois, segundo ele, toda vez que dizemos algo da forma "s sabe que p", estamos dizendo algo falso. Sendo assim, ou nunca satisfazemos os critérios para aplicar a palavra "conhecimento", ou os satisfazemos, mas esses critérios são insuficientes para o conhecimento. Seja qual for o caso, com base em que o cético pode dizer quais são esses critérios? Com base em que ele sabe que tais critérios, no segundo caso, são insuficientes para o conhecimento? Não é examinando os casos em que a palavra é aplicada. Entretanto, esse não é um termo definido estipulativamente,  ou seja, por meio de uma definição por meio da qual não se pretende de expressar um conteúdo já previamente determinado. A definição ou esclarecimento do conteúdo de "conhecimento" deve ser o resultado de uma análise desse nosso conceito que já é de posse comum a todos nós. Na ausência de exemplos de conhecimento, parece que o que resta a um cético apelar para explicar como ele obteve clareza sobre o que o conhecimento é ou dizer que o conceito de conhecimento é inato e acessível por algum tipo de introspecção, ou dizer que esse conceito é uma entidade abstrata e acessível por meio de algum tipo de intuição intelectual. Mas isso, me parece claro, seria explicar o obscuro por meio do pouco claro.[2] A tese existencial negativa do cético o deixa com a tarefa de esclarecer o conteúdo de um conceito definível não estipulativamente sem apelar para o conhecimento de exemplos aos quais o conceito se aplica verdadeiramente. E essa parece ser uma tarefa inexequível.

A negligência com relação a exemplos ou a critérios operacionais dos nossos conceitos parece ser, como procuro mostrar nessa reflexão, uma fonte de problemas filosóficos.

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[1] Teses existenciais negativas em filosofia são geralmente entendidas da seguinte forma: embora o verbo "existe", nessas teses, esteja no presente, a tese está afirmando que nem existe, nem nunca existiu o tipo de coisas em questão. É o que queremos dizer quando dizemos, por exemplo, que unicórnios não existem. Quando queremos relatar a extinção de uma espécie de animais, por exemplo, não dizemos que tais animais simplesmente não existem, mas que eles não existem mais, deixando subentendido que eles já existiram. O conceito de tais animais foi definido com base no conhecimento de exemplos de tais animais, conhecimento esse constituído pelas evidências históricas sobre tais exemplos.

[2] O problema não é tanto um conceito ser inato ou ser uma entidade abstrata, mas ser acessível por uma introspecção ou intuição intelectual,  independentemente do seu uso e, portanto, da competência do seu usuário.



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